20 de setembro de 2015

Ensaio de Milton Torres

Jornal O Estado do Maranhão

         Tenho aqui “A Epopeia Amazônica de frei Pedro de Santo Eliseu”, um estudo crítico, por Milton Torres, do poema épico “Viagem”, de autoria do frade carmelita, publicado pela Edusp, editora da Universidade de São Paulo. Um apógrafo localizado por Milton (autógrafo algum foi encontrado) nos Reservados da Biblioteca Nacional, de Portugal, serviu-lhe como texto de referência. O tema é a longa viagem em que os portugueses levaram prisioneiros espanhóis de Belém, rio Solimões acima, até Nova Cartagena, em 1714, a fim de devolvê-los a seus compatriotas, trinta e dois anos, portanto, antes do ano colocado pelo copista ao final do apógrafo (1746).
          Tão dilatado tempo entre a realização da jornada e o ano indicado pelo copista terá sido consequência das disputas pela posse do Solimões entre portugueses e espanhóis, não interrompidas pela da Paz de Utrecht – conjunto de acordos destinados a pôr fim à Guerra da Sucessão da Espanha (1701-1714) –, senão por breve tempo, tendo as contendas perdurado até quase a assinatura do Tratado de Madri, em 1750, que estabeleceu, na América, as fronteiras entre Portugal e Espanha.
         Não se sabe quando a “Viagem” foi escrita: se logo após o retorno do frade a Belém, tendo o autor mandado fazer uma cópia em 1746; ou se foi terminada pouco antes deste ano, às vésperas do Tratado, quando as relações entre os rivais ibéricos já eram amistosas. Evidente, publicar a epopeia no período anterior, de incertezas, seria arriscar-se à acusação de cavalheirismo com o inimigo, pois o poema mostra clima amistoso entre os contendores.
        Milton Torres analisou cuidadosamente a “Viagem” sob todos os aspectos relevantes a sua correta compreensão, sobretudo sua inserção no âmbito do universo mental português do século XVIII, ao fim do reinado de d. João V. Seu estudo se filia, assim, à corrente historiográfica conhecida como História das Mentalidades. Como ele observa, Os Lusíadas e As Metamorfoses, de Ovídio, estão evidentes como modelo do épico do frade.
          Vejamos, “en passant”, algumas das características do poema analisado por Milton Torres. Nele, o monarca absoluto é perfeito e, por derivação, sua escolha do capitão-mor e de todos as pessoas da cadeia de súditos alocados à organização e realização da viagem confere-lhes virtude. Também, dado que a colônia americana não carregasse na memória coletiva feitos comparáveis aos dos portugueses no Oriente, forçoso é, no poema, a transformação, pelo frade, sempre fiel à épica portuguesa ali ancorada, do grande rio em “Mar Oceano”, da jornada fluvial, em marítima e das canoas, em baixéis. A despeito das convenções do gênero, porém, ele mantém as realidades locais, como no caso dos toponímicos.
         Onde a realidade amazônica, no entanto, irrompe com força no épico de Santo Eliseu, em contradição com a retórica oficial, é nas referências à realidade do terrível tratamento dado aos índios, submetidos a evangelização pela “espada adamantina”, em trechos que seriam vetados, se submetido à costumeira censura oficial.
         Estudo erudito, que repele a erudição estéril e vaidosa, objetivo e brilhante. Conjunto impressionante de referências literárias e históricas em curto espaço.

6 de setembro de 2015

Igualdade: na partida ou na chegada?

Jornal O Estado do Maranhão
          
          Uma das falácias esquerdistas mais influentes no Brasil é aquela da necessidade de “uma sociedade mais igual”, sem menção ao tipo de igualdade. Nesse entendimento, todas as sociedades têm como objetivo quase único a igualdade de resultados econômicos. Qual o significado de tal afirmação, na prática? O nível de renda de todos deveria ser igual, ou quase. Se não for, dizem, a sociedade será injusta, mas, a culpa pela distorção nunca será de escolhas individuais, ou de decisões equivocadas dos governos, e sim de um ser abstrato, “a sociedade”. Uma perna de pau, cuja contribuição aos bons resultados de sua equipe de futebol seja pequena, deveria receber, em salários, para evitar que a sociedade se torne “injusta”, tanto quanto Neymar recebe, embora este contribua com muito mais nas vitórias. Mas, qual a razão de uns contribuírem mais do que outros?
          Há diversas fatores explicativos, chamados de variáveis, tais como motivação individual, treinamento sistemático, adaptação ao ambiente de atuação dos atletas e outros. Esse conjunto pode ser alterado, em maior ou menor grau, por meio de acompanhamento metódico por equipes especializadas, em benefício do atleta, aumentando seu rendimento. Contudo, algo há que não pode ser alterado nas pessoas, pelo menos não de maneira eticamente aceitável. Trata-se da genética. Nenhum sistema, entre os melhores à disposição das comissões técnicas, irá transformar um jogador medíocre num Neymar, num Pelé, num Maradona, num Messi. Estes merecem ganhar mais, relativamente a seus companheiros “normais”, não pelo talento em si, mas, principalmente, pela valoração feita pelo mercado das habilidades fora de série deles. Isso tem expressão concreta sob a forma de compra de ingressos aos milhares e de produtos recomendados por eles, etc. A produtividade deles é tão alta que o valor por eles acrescentados ao produto (jogos vitoriosos) é, correspondentemente, muito alto também. Os clubes, assim mesmo, podem lhes pagar altíssimos salários e ainda ter lucros. Empresas futebolísticas estão no mercado com o fim de lucrar, não de ter prejuízo. Elas atendem à demanda dos consumidores de jogos de futebol.
          A analogia pode ser feita com uma competição de 100 metros. Na linha de largada, todos os atletas têm de estar em condições de igualdade. Se não estão, a responsabilidade é deles mesmos, para o bem ou para o mal. Em princípio, eles partem igualados quanto a treinamento, equipamento usado, etc. Chegará em primeiro, sistematicamente, o mais talentoso. Esse terá, “ceteris paribus”, a remuneração mais elevada, surgindo daí a diferença monetária em rendimentos. A Análise Estatística estuda esses casos por meio da técnica de regressão estatística, entre outras, introduzindo nas equações do sistema todos as variáveis já conhecidas. Cada uma delas, como as já mencionadas, explica um percentual da remuneração. O restante, aparentemente sem explicação, a fim de chegar aos 100%, é o talento, que é desigual entre os corredores, como o é na população. Na economia em geral, igualmente.
          No ponto de partida, o ingresso no mercado de trabalho, todos deveriam estar em igualdade de condições, com ajustes para as aspirações individuais, em informação, educação básica, saúde e demais variáveis que permitam uma competição equilibrada. Não é essa, no entanto, a situação atual. As pessoas começam em condições desiguais já na partida. Os de trás jamais poderão chegar ao final na frente. Onde o mercado pode falhar, como na educação, por exemplo, é papel do Estado, oferecê-la em alto padrão de qualidade aos de renda mais baixa. Porém, tal não se vê aqui. Tentar impor igualdade de resultados por decreto é matar a habilidade, o espírito empreendedor e o incentivo ao aumento de produtividade, elemento crucial no crescimento. Tantos talentos feneceram nos países socialistas por não receberem remuneração adequada a seu talento e sua produtividade. As disparidades só diminuirão quando as condições inicias forem iguais na largada. Cota nenhuma poderá mudar esse desarranjo nem evitá-lo.

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