30 de setembro de 2001

O futuro do livro

Jornal O Estado do Maranhão
Na palestra do brasilianista francês Jean Soublin, na Academia Maranhense de Letras, sobre as imagens do Brasil na França ao longo dos séculos, encontro Sálvio Dino. Somos amigos desde o começo dos anos setenta, quando ele era um deputado estadual cassado “por atividades subversivas”, mas não ainda imortal, e eu um recém-formado economista. Naquela época éramos assessores de Jayme Santana, meu ex-colega de faculdade, então Secretário da Fazenda do Governo Pedro Neiva de Santana.
Sálvio pergunta à saída do auditório se conheço o famoso Jean Paul Jacob, que anda prevendo a morte do livro de papel, esse antigo e querido companheiro. Olho para os lados, certificando-me da ausência de testemunhas da minha ignorância e, meio envergonhado, confesso baixinho que não, mas que já tinha tido notícia dessa conversa em algum lugar. Talvez, em algum canto de um suplemento dominical de um jornal qualquer.
Ele, que prepara um livro sobre a dinâmica da ocupação do território maranhense, na suposição, naturalmente, de que livros continuarão a existir, fará uma palestra para estudantes do segundo grau, como representante da Academia, sobre a importância e valor do livro nos dias de hoje. Quer todas as informações que possa reunir sobre o assunto.
Corro para a internet. Confirmo a existência do tal Jacob. Ele é engenheiro da IBM e conferencista do Departamento de Engenharia Eletrônica e Ciência da Computação da Universidade da Califórnia. É brasileiro, formado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA. Não lhe faltam credenciais.
Esse engenheiro se dedica ao estudo da tecnologia e seus desenvolvimentos futuros, incluindo engenharia de software, inteligência artificial e multimídia. Entre suas previsões está, por exemplo, a de que futuramente, ao fazer compras em supermercados, ninguém precisará preocupar-se em usar cartão de crédito e, muito menos, em pagar com cheque ou dinheiro em espécie. Ao sair da loja, os consumidores serão automaticamente identificados por sua “aura digital”. Com isso, um débito automático será feito em sua conta bancária.
Não duvido de previsões desse tipo. Afinal de contas, inovações tecnológicas inconcebíveis até há pouco tempo são, agora, parte de nosso cotidiano. Vejam a telefonia celular e a própria internet. Quem apostaria, alguns anos atrás, na viabilidade de podermos carregar telefones no bolso e de termos uma rede mundial de computadores que nos permitisse ver imagens e textos armazenados em computadores a milhares de quilômetros de distância? Ou de nos comunicarmos, rapidamente e a baixo custo, por meio do correio eletrônico?
Mas, com o livro a história é outra. O próprio Jacob admite a inviabilidade econômica de algumas tecnologias novas. Ou a rejeição delas pelos usuários, por não representarem vantagens reais para eles, em comodidade de uso ou longevidade dos produtos que as utilizam.
Até agora, pelo menos, não há nenhuma tecnologia de suporte para a escrita com a durabilidade do papel nem com sua comodidade ou praticidade. Nenhum meio de armazenamento eletrônico dura tanto quanto o papel. Ninguém consegue ler um livro numa tela de computador, com as tecnologias atualmente disponíveis. O livro eletrônico, hoje, é apenas uma idéia. Poderá ser um complemento, não um substituto do livro tradicional. Este é portátil, fácil de ser manuseado e não depende de eletricidade Por muito tempo será assim, acredito.
Mas o Dr. Jacob despreza outro fator, o mais importante em qualquer avaliação sobre o futuro do livro. É a relação emocional com esse objeto cultural. O leitor quer tocá-lo, alisar sua capa, sentir o cheiro do papel, a textura. Quer olhá-lo e saber que quando precisar dele, o terá ali, ao alcance da mão e da vista, para atendê-lo, informá-lo, iluminá-lo. Quer senti-lo como seu.
Mas, como tudo passa, o livro um dia passará. Como passará o nosso planeta, engolido pelo sol. Nesse dia, porém, tudo o mais também terá passado: a vida e a morte, os deuses e os homens.

23 de setembro de 2001

Tragédias

Jornal O Estado do Maranhão
Não há justificativa de espécie alguma para os atentados ao povo norte-americano, com a perda de milhares de vidas de pessoas inocentes na destruição do World Trade Center e de parte do edifício do Pentágono. Perder apenas uma vida já seria suficientemente doloroso para qualquer povo.
Os americanos conheceram, de repente, o sentimento de viver sob a ameaça do terror que aflige outros povos. Como o do Iraque. Lá, crianças morrem diariamente, como resultado do bloqueio econômico americano ao país, sem contar as outras mortes resultantes das bombas dos Estados Unidos na Guerra do Golfo. Ela foi feita para defender a ditadura do Kwait, tão odiosa quanto a iraquiana. A única diferença é que uma é a favor dos Estados Unidos, a outra contra.
O povo iraniano viu os Estados Unidos treinarem e armarem esse mesmo Iraque, da mesma ditadura de Sadan, para a invasão do Iran. Armado e treinado por eles foi também Osama bin Laden quando combatia as tropas russas que foram obrigadas a sair correndo do Afeganistão. O uso da força bruta havia se revelado inútil. De anjo justiceiro ele passou a ser o diabo na Terra.
Um outro exemplo de vida sob o terror é o dos palestinos. Eles não vêem os Estados Unidos como um mediador neutro nos conflitos do Oriente Médio. O papel dos americanos, pela sua força, é fundamental para a paz naquela área. No entanto, há décadas, raras vezes têm se empenhado imparcialmente para solucionar os problemas da região.
Esses povos e outros têm sido estereotipados, há muito tempo, pela mídia americana, como bárbaros, ao mesmo tempo em que a política externa dos Estados Unidos ignora a cultura deles. Não é o caso de defender um relativismo cultural que justifique atitudes contrárias a valores universais de respeito à vida, sob o argumento de que “é assim na cultura deles”. Trata-se apenas de, num sistema imperial globalizado, sob o comando dos Estados Unidos, oferecer a todas as “províncias” do império um mínimo de boa fé na análise de suas queixas referentes às desigualdade na distribuição da riqueza mundial e às injustiças do sistema capitalista globalizado. Não estão isentos de culpa, porém, os governos corruptos dos países pobres, apoiados pelos próprios Estados Unidos se favoráveis a seus interesses.
A posição americana tem sido de arrogância e menosprezo pelos pontos de vista alheios, com o respaldo de suas armas de destruição em massa. Essa atitude gera ódios e ressentimentos que vêm se acumulando não apenas no mundo islâmico, que ajudou a civilizar a Europa durante séculos, mas no resto do mundo.
E o comércio internacional? São bem conhecidas as barreiras não tarifárias que os Estados Unidos criam à entrada em seu mercado de produtos do Brasil e dos países emergentes. O livre comércio é bom, contanto que o mercado de lá não seja aberto à concorrência “inimiga”. O presidente Bush foi claro recentemente ao dizer que só lhe interessa a defesa dos interesses econômicos de seu país. Os outros que se danem.
O que dizer da indiferença dos Estados Unidos com relação ao ambiente? Eles emitem 25% dos gases estufas gerados no planeta, mas recusam-se a ratificar o Protocolo de Kyoto que poria limites às emissões. E da retirada da conferência contra o racismo? E da rejeição do tratado de eliminação de armas bacteriológicas que eles tanto condenam nas mãos dos outros? E da quebra unilateral do acordo com a Rússia sobre armas nucleares? É o isolacionismo insensato e egoísta.
Lamentamos sinceramente a tragédia americana. Mas, não se podem esquecer as outras pelo mundo afora. As vítimas da violência, de qualquer nacionalidade – americana, iraquiana, afegã, irlandesa ou líbia –, são igualmente merecedoras de nossa compaixão. Cada vida tem um valor incomensurável, igual ao de qualquer outra. O uso de mais violência, o espírito belicoso e a histeria coletiva são o caminho mais rápido para outros morticínios. Somente soluções políticas, negociadas entre todos e para todos, evitarão novas tragédias.

16 de setembro de 2001

Atenas, mas uma vez?

Jornal O Estado do Maranhão
Entre o vasto material reunido por Jean-Michel Massa no seu Dispersos de Machado de Assis, há uma crônica de 3 de abril de 1866, publicada no Diário do Rio de Janeiro. Nela, Machado faz comentários sobre o primeiro volume, de um total de cinco, da obra de Sotero dos Reis, Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira, produto de suas atividades de professor no Maranhão. Lamenta, então, a negligência no estudo da língua portuguesa no Brasil da época para afirmar que “ [...] o autor do Curso de Literatura é uma das raras exceções, e para avaliar o cuidado e o zelo com que ele estuda a língua de Camões e de Vieira, basta ler este primeiro volume [...]”.
Em uma das notas a essa crônica, Massa afirma que Machado sempre manifestou certa benevolência com relação ao chamado Grupo Maranhense. Talvez, em sua opinião, por causa da amizade de Machado com Joaquim Serra. De fato, há referências elogiosas e freqüentes do escritor carioca ao amigo maranhense e a diversos intelectuais do Maranhão, em muitas ocasiões, ao longo de sua carreira de cronista.
Mas, claro, apenas a amizade com Joaquim Serra não pode ser uma boa explicação. No início de 1866 os dois ainda não se conheciam. Eles somente se encontraram mais para o fim do ano, quando Serra foi ao Rio de Janeiro representar seu Estado, do qual era Secretário de Governo, na Exposição Industrial. Ainda que se tivessem conhecido em abril, somente a amizade, tão recente, não justificaria o entusiasmo pelo nosso Estado.
 Creio numa sincera admiração pelo talento do grupo como melhor explicação para as constantes menções. Lembremos que, naquele tempo, o Rio de Janeiro ainda tinha muito de cidade provinciana, embora em rápido crescimento em função da economia cafeeira, e o Maranhão gozava de grande e justificado prestígio literário em todo o Império.
O Grupo que nos dera fama surgira como se viesse do nada, de um passado de extrema pobreza sem expressão literária alguma. Fora, todavia, uma conseqüência não obrigatória, por certo, da riqueza temporária, é verdade, mas bastante produtiva culturalmente, com origem na economia do algodão no século XIX. Como bem diz Jomar Moraes na Bibliografia Crítica da Literatura Maranhense, isso tudo dá o que pensar.
A freqüência da citação de maranhenses é um reflexo da importância do Grupo. Não se trata de benevolência. Basta citar alguns nomes, além de Sotero e Serra, para ver-se isso: Odorico Mendes, João Lisboa, Gonçalves Dias, Sousândrade, Trajano Galvão, Henriques Leal, Gomes de Sousa. De Odorico, aliás, Machado disse que naturalizara Virgílio e Homero na língua de Camões.
Mais importante, porém, do que descobrir os maranhenses nas crônicas de um escritor da importância de Machado de Assis, é buscar as razões para o surgimento do Grupo. Certamente haverá alguma relação entre o ciclo do algodão e o aparecimento de uma geração tão brilhante. Ou será apenas coincidência que, findo o período de grandeza econômica no Maranhão, os herdeiros da tradição de Atenas Brasileira, não tenham nunca, como grupo e consistentemente, superado em quantidade e qualidade as realizações daquela geração?
É uma tese marxista a afirmação de que a infra-estrutura eco­nômica condiciona as instituições das sociedades em todos os seus aspectos, inclusive os culturais. Em sua versão vulgar isso aconteceria mediante uma relação linear direta de causa e efeito. Mas, não se precisa recorrer a nada disso para admitir que uma base material, dada pelo excedente econômico, é necessária, embora não suficiente, ao desenvolvimento da cultura até o limite de suas potencialidades. Pode dar-se, no entanto, por várias razões, que essas precondições materiais existam, mas a cultura não floresça.
Aí está, portanto, um tema importante para discussão. Podemos, hoje, ter a esperança de ter um fenômeno semelhante ao do século XIX? Existem os pré-requisitos? Se existem, o resultado será similar ao do passado? É possível, afinal, ser Atenas, mais uma vez?

9 de setembro de 2001

Magia

Jornal O Estado do Maranhão
O patriotismo está em baixa no Brasil, a julgar pela atitude de um brasileiro famoso mundialmente, Paulo Coelho. Ele é homem de mil talentos, entre os quais os de compositor roqueiro, com várias parcerias com Raul Seixas, e escritor com mais de 32 milhões de livros vendidos em todo o pla­neta.
Possui, ainda, poderes mágicos. Gera ventos e chuvas, desengarrafa o trânsito com a força do pen­samento, torna-se invisível, prevê o desempenho de presidentes da República, adivinha o nome de namorados de ministras da Fazenda. Não se compreende, por isso, sua recusa a usar tais capacidades em benefício da pátria, justamente quando atravessamos uma séria crise de energia.
É evidente que ele não iria vulgarizar sua força, usando-a por um motivo sem importância. Mas, seria fora de propósito pedirmos a utilização tão-somente de sua capacidade de fazer chover? Afinal, o país não está precisando de um bom dilúvio bíblico? A prioridade nacional não é encher os reservatórios de água das hidrelétricas, para geração de energia?
Embora sem renegar seu passado de mago, em entrevista recente à revista Veja, ele afirma não precisar mais dar prova de nada, especialmente de público. Ventos ele disse já ter produzido enquanto dava uma entrevista ao jornal O Globo. No programa da apresentadora Marília Gabriela, na televisão, previu a derrocada do governo Collor. No de Jô Soares, deu as iniciais do namorado de Zélia Cardoso de Melo. Naquela época, ninguém sequer imaginava que por trás da sisudez da ministra da Fazenda pudesse haver um coração tão terno e amoroso a ponto de fazê-la dançar o bolero com seu amado BC, Bernardo Cabral. Ou terá sido o tango argentino, como no poema?
Entende-se o desejo dele de não fazer demonstrações públicas, ante olhos indiscretos e maldosos. Que faça chover no Brasil, então, quando estiver em casa, reservadamente, longe dos curiosos. O importante é o resultado, muita água Ele diz não querer gastar energia novamente com nada disso. Está certo, mas só parcialmente. Cruzando os braços, indiferente, estaria seguramente contribuindo para a poupar sua energia. Gastaria zero kilowatt de seus próprios recursos energéticos, afinal parte dos nacionais.
Todavia, ele deveria considerar que, ao fazer chover, seu dispêndio seria compensado várias vezes pela energia gerada nos reservatórios reabastecidos. Trabalho, talvez, de uns seis dias. Esse pequeno sacrifício não valeria a satisfação de ver milhões de brasileiros felizes? Onde está seu sentimento patriótico? No sétimo dia ele poderia descansar e contemplar com satisfação sua obra.
Na hipótese de insistir em não cumprir, ele mesmo, essa obrigação, seja por cansaço, por não ter mais saco, ou por outra razão qualquer, não é de crer que não se dispusesse a convocar para a tarefa seus amigos de todos os cantos dos céus e da terra, magos como ele. Poderíamos, assim, empregar recursos alienígenas, sem prejuízo dos nossos. Para comunicar-se com os colegas, não importando a distância, ele poderia lançar mão de seus poderes telepáticos. Com essa legião do bem, o Brasil estaria, enfim, salvo de racionamentos e apagões.
Se algum patriota mais exaltado, porém, inconformado com a indiferença dele, ameaçasse reagir com violência, ele recorreria a seu poder de tornar-se invisível, que exige uma quantidade ínfima de energia. Para maior segurança, ele poderia, até, fugir em sua limusine, abrindo, com a força do pensamento, caminho através do trânsito confuso, já que não parece ter o dom de voar. Será mesmo? Fiquei em dúvida. Vai ver, ele tem.
Por fim, caso sua insensibilidade frente aos sofrimentos da nação venha a prevalecer, a única coisa a fazer será torcer para que o mesmo sinal vindo de seu interior, que o aconselhou a desistir de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras (“Não se candidate”), no momento em que ele sentou na areia para fumar um cigarro, manifeste-se novamente, sussurrando desta vez: – Paulo, ajuda teu povo. Cumpre tua missão. Manda chover!

1 de setembro de 2001

Doutrinas em conflito?

Jornal O Estado do Maranhão
Há uma luta na cidade. Não chega a ser uma guerra, daquelas onde vale tudo, com repercussões imensas e imprevisíveis, com ódios irreconciliáveis. Mas não se trata também de um conflito corriqueiro, vulgar. Em verdade vos digo, caríssimos leitores, ser essa luta de outro tipo. Não tem nada em comum com outras, profanas, vistas diariamente nos meios de comunicação. Não provoca dores físicas. Apenas as espirituais, de difícil avaliação pelos padrões banais do cotidiano. Não fere o corpo, mas a alma.
O caso apareceu na imprensa de São Luís há algumas semanas. Da leitura da notícia redigida de forma um tanto obscura, pude entender que uma igreja, ostentando em seu nome a palavra paz, entrou com um pedido de reintegração de posse de um templo no qual funciona uma outra igreja intitulada evangélica. O advogado desta disse que iria apresentar ao juiz, na audiência de justificação, um termo de concessão de direito de posse fornecido pela extinta Cohab-MA em 1994.
Fez, o ilustre causídico, uma revelação interessante e curiosa: o hoje desfeito ajuste entre as igrejas foi de caráter espiritual, por tempo indeterminado. Ele dá a impressão de compreender, com essa afirmativa, a impossibilidade de submeter-se um acordo de natureza tão etérea a cartórios, registros, contratos, tabeliães, traslados e emolumentos, negócios meramente materiais. Deveria o acordo, então, ser levado a julgamento por cortes celestiais as quais devem julgar questões de salvação ou condenação de almas e, pode ser, de pactos es­pi­rituais rompidos? Talvez sim. Além disso, como se poderia marcar um tempo certo para a eternidade do espírito?
Contudo, o jeito foi apelar para a imperfeição humana. Apesar de seu caráter, podemos dizer, imaterial, a aliança terminou num desacordo sobre a materialidade do templo e do direito a sua ocupação. O problema terá de ser resolvido pela justiça dos homens, sempre tão falha, parcial e influenciada pelos freqüentemente irresistíveis vícios mundanos.
Isso tudo me faz lembrar as justamente famosas brigas judiciais por ocasião da maioria dos divórcios vistos por esse mundo todo. O começo da união é de promessas de eterna felicidade, simbolizada pela troca de alianças entre os parceiros em meio a incontáveis e sinceras, naquela hora, juras de amor perene. Todavia, há, no fim, troca de acusações cruéis e uma fria decisão judicial.
Ou, o que era para ter o aval e a direção de forças espirituais, resultou, no nosso caso, em apelo aos pobres pecadores das imperfeitas cortes da Terra. O advogado da igreja, por sinal, talvez pensando exclusivamente nas recompensas extraterrestres, em um futuro que todos nós, mortais, esperamos estar distante pela medida do tempo feita pelos homens, afirma trabalhar vo­lun­ta­riamente, sem cobrar um tostão de seus irmãos. Não se pode duvidar.
Ele admitiu, no entanto, a ocorrência de divergência doutrinária como causa do lamentável des­entendimento. Ora, nisso não há surpresa. A história da humanidade está repleta de disputas religiosas, muitas vezes transformadas em desapiedadas guerras. Não chego, porém, ao absurdo de considerar a possibilidade de acontecer o mesmo aqui.
Vejo, apenas, uma aversão perigosa àquilo que diverge de nossas próprias crenças. Em ambientes de ódio e exacerbação do espírito de seita, como atualmente na Irlanda do Norte e no Oriente Médio, isso conduz a mortes e destruição. Contra tal sentimento, não sei se inato no ser humano, devemos estar sempre alertas. Algo semelhante ocorre com o nacionalismo xenófobo, tribalismo disfarçado, que tem, até em regiões supostamente civilizadas, como a Europa, conduzido a tragédias como as dos Bálcãs.
Torço pela breve resolução do problema, na hipótese de ele não estar, ainda, resolvido. Se não estiver, e já que as duas igrejas não podem estar com a razão simultaneamente, somente lhes restará esperar que o mesmo deus reverenciado por ambas as cubra com a luz da paz, para revigorar o espírito evangélico delas.

Machado de Assis no Amazon