27 de janeiro de 2002

Hora de ação

Jornal O Estado do Maranhão 
Uma mulher, pacífica dona de casa da classe média da cidade de Campinas, em São Paulo, é seqüestrada. Dias depois, é levada de volta até a porta de sua residência e solta. Solta? É o que ela deve ter pensado. Mal deu alguns passos, foi fuzilada pelas costas. O piloto de um helicóptero é obrigado a pousar no pátio de uma penitenciária de segurança máxima. Máxima? Mínima. Durante a ação, um traficante de drogas foi libertado pelos comparsas sem o disparo de um tiro sequer pela polícia.
O prefeito de Campinas, São Paulo, do PT, havia sido assassinado anteriormente. Para vergonha de nosso país, um outro prefeito, também do PT, de Santo André, na Grande São Paulo, foi seqüestrado, torturado e trucidado na semana passada.
A violência, e particularmente o seqüestro, tornou-se, nos últimos anos, comum no Brasil. Já não provoca revolta, a não ser nos parentes das vítimas. Uma repórter, ao comentar o caso de Santo André, disse que a polícia suspeitava de um “seqüestro normal”. Isso reflete a vulgarização da violência. Se se quisesse banalizar mais ainda o problema, poder-se-ia falar, em analogia com a linguagem dos economistas, de uma indignação marginal decrescente em relação ao crime. Em outras palavras, a cada episódio de violência nos indignamos menos, até o ponto de ficarmos completamente indiferentes ou até felizes por não termos sido a vítima.
No entanto, a violência afeta a todos. Enquanto alcançava com maior freqüência apenas os mais pobres, nas periferias das grandes cidades brasileiras, poucas foram as vozes que discursaram contra seu crescimento. Alguns diziam que o grito por mais segurança era paranóia de classe média, de que seriam símbolos as casas cheias de grades e de outros dispositivos caseiros de autoproteção. Agora, todo mundo vê que ninguém está a salvo. Levantam-se todos, felizmente e em boa hora. Ainda é tempo de impedir a transformação do Brasil em uma imensa Colômbia.
Entre as causas da violência, está não apenas a pobreza mas a desigualdade social. Somente aquela não revela inteiramente a origem desta situação. Enquanto o problema não é resolvido, no entanto, precisamos de proteção contra o banditismo. Essa função do Estado exige o monopólio da força. Infelizmente, tal não acontece no Brasil de hoje em algumas regiões. Se alguém duvidar disso, basta verificar as ações dos capi do narcotráfico do Rio de Janeiro. Eles impõem regras de comportamento aos moradores dos morros da cidade, com base na força e no terror.
Todavia, mais importante do que a desigualdade para o crescimento da criminalidade é a certeza de impunidade, a principal característica de nosso sistema de justiça. Essa imunidade real é um poderoso incentivo para a reincidência. Os ricos não são punidos porque dispõem de recursos para pagar bons advogados. Os pobres porque o sistema não consegue mantê-los presos. De qualquer maneira, há uma notável ausência de abastados entre os hóspedes de nossas penitenciárias. A reforma do sistema deve ser uma prioridade nacional.
Há, além disso, uma grande confusão institucional, expressa na existência de duas polícias nos Estados, por exigência constitucional. Não têm sido incomuns os conflitos, abertos ou não, entre elas. Isso não deveria surpreender a ninguém, dada a indefinição, na prática, sobre as áreas de competência de cada uma no combate ao crime.
O paralelismo policial leva ao mau uso de recursos e a ineficiências. Tal desperdício somente poderá ser evitado por meio da unificação. Melhor é ter uma única polícia, bem equipada, treinada e eficiente, do que duas como as de hoje. Seria mais barato para a sociedade e nos daria uma polícia mais confiável.
As tragédias recentes reavivaram a indignação nacional contra o crime organizado e contra a impunidade. As mortes não terão sido em vão se a mobilização do governo e da sociedade, que já vem ocorrendo, resultar em medidas concretas. A simples retórica vazia não será mais aceita, como no passado recente. A hora é de ação.

20 de janeiro de 2002

Pesadelo

Jornal O Estado do Maranhão
Não tem sido raro eu ter pesadelos, ultimamente. Eles não têm dia nem hora para me atormentar, pois aparecem quando bem querem. Às vezes, passo horas sem poder dormir, por medo do sofrimento. Mas, quando consigo dormir, acordo sobressaltado. É a tortura de ficar acordado, estando morto de sono, ou de ter de enfrentar o martírio do pesadelo, querendo ficar acordado. Que fazer? Tento ficar acordado, mas durmo. Tento dormir, mas acordo. Não durmo nem fico acordado. Durma-se com um barulho desses! Ou melhor, não se durma mesmo com o silêncio da madrugada!
Por favor, não chamem nenhum analista, desses de avaliar a cuca das pessoas. Nem o próprio Freud resolveria meu problema. Ele é insolúvel. A fonte dos meus males, ele não a reconheceria, de tão moderna. Imagino o sofrimento de milhões de pessoas pelo mundo afora, que padecem do mesmo tormento. Tudo tenho feito a fim de evitar o estresse, eliminar o problema, ter paz. Sem resultado positivo nenhum. Chás quase não têm efeito, comprimidos muito menos, exercícios pouco ajudam. É o lixo a me perseguir. Ele chega pelo correio eletrônico da internet.
A batalha é diária. É só abrir a caixa postal para encontrar tudo o que não pedi. Os assuntos variam de sexo a promessas de salvação da alma. De maneiras milagrosas de ganhar dinheiro a pedidos para filantropias. De apelos para a salvação do urubu da cabeça vermelha de uma região perdida da África à defesa da matança do excesso de cangurus na Austrália.
Pense em qualquer assunto, caro leitor, o mais esdrúxulo que possa imaginar, o mais bizarro. Garanto já ter recebido um lixo eletrônico a respeito dele. Todo mundo com endereço eletrônico já recebeu. A coisa é nova porque a internet é nova. Mas já anda a merecer uma tese sociológica acadêmica, daquelas bem complicadas. Ou não seria a psiquiatria que melhor analisaria o fenômeno? ou a psicanálise?
Uma das coisas mais ridículas dessas mensagens é um esclarecimento apresentado por algumas, em péssimas traduções das originadas nos Estados Unidos. Avisam que o envio não solicitado é feito “com a complacência” da seção 1, parágrafo (a) (2) do decreto S. 1618, em seu título terceiro, aprovado por um encontro qualquer de internautas. A tal seção diria que, se for disponibilizada uma forma de retirar o destinatário da lista do remetente na mensagem, ela não será considerada spam. Este é o termo inglês utilizado no jargão da internet para caracterizar ofertas comerciais através do correio eletrônico, sem o consentimento do recebedor.
. Que diabo é “com a complacência” neste caso? Significa o sujeito cometer uma idiotice dessa e a legislação ficar olhando, complacente? Que língua é essa? É inglês com palavras do português. A expressão original é in compliance with, em cumprimento do, ou de acordo com o, na língua de gente alfabetizada. Não é preciso saber inglês para ver que a expressão não tem pé nem cabeça. Basta saber ler português.
Digam se isso tudo não é de causar pesadelos. Eu estou ali, entre adormecido e acordado. De repente, vejo-me trabalhando no computador. Abro meu correio. Encontro tantos spams que eu teria de levar dias para baixar todas as mensagens, com suas ofertas malucas. O computador trava, infectado com os vírus de algumas delas. Vou perder o prazo do artigo semanal para o jornal. Não tem nenhum computador por perto. É assim o pesadelo. Aí acordo alarmado.
Há, também, a divulgação de histórias absurdas. Uma é a do homem dopado por uma bela loura, num motel. Ele teve um rim extraído e, quando acordou, encontrou no espelho uma mensagem escrita com batom mandando-o procurar um hospital. Ficção barata. Classe B.
Terei de ir, dentro de poucos dias, em viagem de negócios secretos, ao Afeganistão. Lá não vou ter acesso à internet. Não poderei livrar-me diariamente das milhares de mensagens indesejadas. Elas irão se acumular no meu correio nos quinze dias de ausência, para meu desespero. Quando eu voltar, meu pesadelo não será mais pesadelo. Será realidade.

13 de janeiro de 2002

Razão

Jornal O Estado do Maranhão
Se pudermos chamar algo de inato no ser humano, certamente será isso a propensão para a crença. Ela é tão poderosa em nós, sendo única no reino animal, que Edward O. Wilson, no seu Sobre a natureza humana, chega a dizer que “a predisposição para a crença religiosa é a mais complexa e poderosa força na mente humana e com toda probabilidade uma parte inarredável da sua natureza. [...] É um dos universais do comportamento social [...]”.
Ocorre-me esse pensamento quando vejo os crescentes irracionalismo e obscurantismo na sociedade de nossos dias, no que respeita à proliferação de crenças exóticas. Sobre esse fenômeno, fala-nos o psicólogo norte-americano Michael Shermer, em recente entrevista à revista Veja. As formas mais próximas do nosso cotidiano são as relativas a magos, seres extraterrestres, duendes, bruxas, pirâmides, biorritmos, cristais e outras.
Tenho escrito alguns artigos com a intenção de chamar a atenção dos leitores, sem desrespeito pela crença de ninguém, para esse comportamento, atualmente tão comum. Uma vez fiz comentários relacionados à “abdução” de Elba Ramalho, outra especulei sobre os poderes do “mago” Paulo Coelho e, por último, considerei os duendes de Xuxa. Com a internet, esses modismos circulam constante e instantaneamente pelo mundo, do que se aproveitam os espertos para atingir os crédulos e deles extrair lucros.
A explicação sobre o crescimento desse fenômeno está, principalmente, na modernização acelerada da sociedade. Ocorre, com isso, um desenraizamento dos modos anteriores de vida, sem compensação nenhuma pela destruição dos valores tradicionais, face ao processo de globalização. Muitos se sentem perdidos. Procuram alternativas capazes de fornecer-lhes respostas a suas angústias existenciais. A crença é uma forma de encontrar sentido e finalidade para a vida e de recriar laços de solidariedade entre as pessoas.
 Interessante é ver a aceitação desses exotismos no ambiente dos espetáculos, em que enriquecimentos rápidos não são raros, com forte impacto no sistema de valores dos recém enriquecidos. A numerologia é um exemplo entre dezenas. Ela é conhecida por levar artistas populares a mudar o nome, por meio do acréscimo ou supressão de letras, de tal forma que a soma destas resulte em um número supostamente benéfico em suas vidas.
Independentemente, porém, dessa modernidade incessantemente destruidora, e apesar de seu potencial criador, muitas vezes não concretizado ou só concretizado como alienação, é evidente o poder das crenças como uma forma de lenitivo para o ser humano, em face da consciência da morte. São respostas simples, engenhosas e apaziguadoras à eterna pergunta sobre o sentido da vida. Será que nascemos apenas para morrer? Não e não, respondem os seres humanos, revoltados e necessitados de livrar-se da angústia, do medo e mesmo do terror originados na consciência do fim inexorável.
A ciência não oferece nem pode oferecer nenhum tipo de consolo, pela sua própria característica de permanente questionadora das verdades, sempre provisórias, por ela mesma estabelecidas anteriormente. Como diz o professor Shermer, ela “tem características de autocorreção que operam como a seleção natural”. As crenças, não. Seus praticantes “não corrigem os erros de seus predecessores, eles os perpetuam”. Estas, portanto, podem oferecer a seus adeptos certezas absolutas, em contraste com a ciência com seu permanente duvidar baseado na razão.
No entanto, o conhecimento científico não pode ser servo da “razão instrumental”, que faz do cálculo e da manipulação da sociedade por grandes empresas e pelo sistema político, a norma do convívio social. Sem ética e sem valores morais. A razão, como nos diz o filósofo Jürgen Habermas, deve ser a da emancipação, em que a livre discussão dos argumentos é o caminho do consenso. Isso exclui o terror, estatal ou não, e todas as formas de controle autoritário. É a melhor defesa contra o obscurantismo, religioso ou político. A única possível.

6 de janeiro de 2002

Argentina

Jornal O Estado do Maranhão
Duas fundações teve Buenos Aires, para não restar dúvidas sobre sua vontade de viver. Duas vidas que são mais do que sete fôlegos. São sete vidas. Mais ainda, vidas dentro da vida. Como no labirinto de que nos fala o poeta portenho, o maior da língua de Cervantes, Calderón, Góngora, Quevedo, Lope de Vega.
A primeira fundação, realizou-a D. Pedro de Mendoza, de Granada, em 1536. Puerto de Nuestra Señora Santa María del Buen Aire. Depois Buenos Aires. Bons Ares. Os conquistadores expulsos pelos índios e pela falta de comida. Mas, é ir lá e ver os bons ares dos vários rios, o Paraná, o Uruguai e o Salado, que formam um só, o da Prata, chegando todos, quase juntos, ao estuário. Bons também são os ares das ruas cheias de livrarias, de bioys casares e de borges, de tangos, de gardéis, de futebol, de maradonas, de elegâncias ostensivas, não discretas como as do Caetano de inspiração paulistana. Azul e branco em tudo.
A segunda fundação foi por Juan Garay, em 1580, a fim de a cidade cumprir o destino de permanecer. Veio o vice-reino do Prata, para impedir a expansão lusitana ao sul do Brasil. Vieram as invasões inglesas e a Junta de Buenos Aires, de 1810. Depois, a independência e a tentativa de união das províncias no congresso de Tucumán, de 1816. Em seguida, a anarquia, entre 1820 e 1834. Rosas virou ditador, até ser derrotado por Urquiza em 1852. Este convocou uma conferência de governadores que criou a Federação Argentina, hoje República Argentina. A província de Buenos Aires só aceitou a constituição depois da derrota de Urquiza por Mitre, em 1861.
O país começou a crescer a partir dos anos oitenta do século XIX, com a imigração, principalmente italiana, e a exportação de carne e trigo. Passou a fazer jus ao nome Argentina, do latim argentum, prata, símbolo de riqueza. Na primeira metade do XX, tornou-se um país rico, educado, uma Austrália sul-americana menor. A relação com o Brasil foi sempre de admiração e inveja recíprocas.
Que ares maléficos sopraram na Argentina desde então? Por que o país ameaça negar o seu nome, a ponto de alguns de seus índices de desenvolvimento econômico e social regredirem, humilhando seu povo?
Com a ascensão do coronel Domingo Perón, em 1946, a sociedade argentina optou pela adoção de políticas populistas. Elas puderam ser sustentadas temporariamente pelo aumento dos preços dos produtos de exportação e pelas reservas acumuladas durante a Segunda Guerra Mundial. Com essa precária base econômica, o governo peronista nacionalizou a economia e deu à massa dos trabalhadores benefícios que não puderam ser mantidos quando os preços caíram e as reservas se esgotaram. O colapso econômico e a inquietação social foram inevitáveis. Começou aí a decadência argentina.
Sucessivas crises políticas levaram a regimes militares, interrompidos pela volta, em 1973, do próprio Perón que havia sido deposto em 1955. Ele morreu em 1974. Foi sucedido pela mulher, Isabelita, também afastada pelos militares. A volta do governo civil, com Raúl Alfonsín, em 1983, não pôde fazer o país crescer novamente. Eleito Menem, foi adotado um regime cambial que atrelou o peso argentino ao dólar. A hiperinflação foi estancada. Não se resolveram, no entanto, os problemas estruturais da economia. O desemprego cresceu, a produtividade caiu e a economia estagnou. A eleição e renúncia de De la Rúa são símbolos dessa situação. É impossível, hoje, uma cura indolor dos males argentinos. Não há saída fora da desvalorização do peso.
O problema é, principalmente, político. A sociedade argentina terá que decidir se irá viver com as ilusões do populismo, com o extremismo do FMI ou, sem fugir da inevitável participação na economia globalizada, com um modelo próprio. Como antes, a Argentina sobreviverá com suas cicatrizes. Mas, voltará a ser a Argentina de invejáveis cultura e história. Sobre esta, é ainda Borges quem nos diz: “Parece-me história o começo de Buenos Aires:/julgo-a tão eterna como a água e o ar”.

Machado de Assis no Amazon