13 de janeiro de 2002

Razão

Jornal O Estado do Maranhão
Se pudermos chamar algo de inato no ser humano, certamente será isso a propensão para a crença. Ela é tão poderosa em nós, sendo única no reino animal, que Edward O. Wilson, no seu Sobre a natureza humana, chega a dizer que “a predisposição para a crença religiosa é a mais complexa e poderosa força na mente humana e com toda probabilidade uma parte inarredável da sua natureza. [...] É um dos universais do comportamento social [...]”.
Ocorre-me esse pensamento quando vejo os crescentes irracionalismo e obscurantismo na sociedade de nossos dias, no que respeita à proliferação de crenças exóticas. Sobre esse fenômeno, fala-nos o psicólogo norte-americano Michael Shermer, em recente entrevista à revista Veja. As formas mais próximas do nosso cotidiano são as relativas a magos, seres extraterrestres, duendes, bruxas, pirâmides, biorritmos, cristais e outras.
Tenho escrito alguns artigos com a intenção de chamar a atenção dos leitores, sem desrespeito pela crença de ninguém, para esse comportamento, atualmente tão comum. Uma vez fiz comentários relacionados à “abdução” de Elba Ramalho, outra especulei sobre os poderes do “mago” Paulo Coelho e, por último, considerei os duendes de Xuxa. Com a internet, esses modismos circulam constante e instantaneamente pelo mundo, do que se aproveitam os espertos para atingir os crédulos e deles extrair lucros.
A explicação sobre o crescimento desse fenômeno está, principalmente, na modernização acelerada da sociedade. Ocorre, com isso, um desenraizamento dos modos anteriores de vida, sem compensação nenhuma pela destruição dos valores tradicionais, face ao processo de globalização. Muitos se sentem perdidos. Procuram alternativas capazes de fornecer-lhes respostas a suas angústias existenciais. A crença é uma forma de encontrar sentido e finalidade para a vida e de recriar laços de solidariedade entre as pessoas.
 Interessante é ver a aceitação desses exotismos no ambiente dos espetáculos, em que enriquecimentos rápidos não são raros, com forte impacto no sistema de valores dos recém enriquecidos. A numerologia é um exemplo entre dezenas. Ela é conhecida por levar artistas populares a mudar o nome, por meio do acréscimo ou supressão de letras, de tal forma que a soma destas resulte em um número supostamente benéfico em suas vidas.
Independentemente, porém, dessa modernidade incessantemente destruidora, e apesar de seu potencial criador, muitas vezes não concretizado ou só concretizado como alienação, é evidente o poder das crenças como uma forma de lenitivo para o ser humano, em face da consciência da morte. São respostas simples, engenhosas e apaziguadoras à eterna pergunta sobre o sentido da vida. Será que nascemos apenas para morrer? Não e não, respondem os seres humanos, revoltados e necessitados de livrar-se da angústia, do medo e mesmo do terror originados na consciência do fim inexorável.
A ciência não oferece nem pode oferecer nenhum tipo de consolo, pela sua própria característica de permanente questionadora das verdades, sempre provisórias, por ela mesma estabelecidas anteriormente. Como diz o professor Shermer, ela “tem características de autocorreção que operam como a seleção natural”. As crenças, não. Seus praticantes “não corrigem os erros de seus predecessores, eles os perpetuam”. Estas, portanto, podem oferecer a seus adeptos certezas absolutas, em contraste com a ciência com seu permanente duvidar baseado na razão.
No entanto, o conhecimento científico não pode ser servo da “razão instrumental”, que faz do cálculo e da manipulação da sociedade por grandes empresas e pelo sistema político, a norma do convívio social. Sem ética e sem valores morais. A razão, como nos diz o filósofo Jürgen Habermas, deve ser a da emancipação, em que a livre discussão dos argumentos é o caminho do consenso. Isso exclui o terror, estatal ou não, e todas as formas de controle autoritário. É a melhor defesa contra o obscurantismo, religioso ou político. A única possível.

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