24 de julho de 2005

Um Trovão

Jornal O Estado do Maranhão    
Somente muito depois, quando nos tornamos adultos, iríamos compreender a irritação da mãe de nosso amigo, o que então nos parecia pura implicância. Cada um de nós colocava seu melhor revólver e cartucheira e corria para sua casa, vizinha à nossa, se por acaso não era ele quem vinha. Íamos dispostos, a modo dos heróis dos filmes de bangue-bangue que víamos nos seriados de fim-de-semana no cinema Rialto ou nos gibis que colecionávamos com cuidados especiais, a lutar a favor do bem e contra o mal, em compenetrada imitação do “artista” e seu “companheiro”, ninguém querendo fazer o papel de “bandido”, ao “brincar de caubói”.
Nos filmes, os nossos ídolos sempre se livravam de emboscadas, truques sujos dos bandidos e quedas em abismos. Estes pareciam estar ali apenas com o fim de deixar a platéia em suspense, pois nunca acontecia daqueles super-homens se precipitarem neles de verdade. Os caras malvados, sim, podiam cair à vontade. Na vida real, o perigo era o de levarmos uma bronca da dona da casa.
Aquilo que víamos nas telas – perseguições a cavalo, duelos à bala, brigas por terra e água, assaltos a diligências, roubo de gado, uso de força bruta, mas também coragem daqueles desbravadores, lento predomínio da lei e determinação de construir uma grande nação – formaram pouco a pouco, no mundo inteiro, um bom retrato da sociedade formada por essas pessoas. Elas avançavam em direção ao faroeste (farwest, ou oeste distante), designação dada por oposição tanto a leste como à região, o meio-oeste, onde se encontra o Estado, Indiana. em que vim a residir muitos anos depois. Tudo isso fazia parte do processo de alargamento das fronteiras da civilização americana durante grande parte do século XIX.
Os pobres índios, mostrados nos filmes como traiçoeiros, morriam às pencas, na ficção e na realidade, à semelhança de pássaros de lata em parques de diversão, da mesma forma que morreram aqui, aniquilados em ambos os casos pela expansão capitalista da Europa em direção ao Novo Mundo. Essas coisas todas atiçava nossa imaginação de criança a ponto de nos sentirmos na pele daqueles que víamos como heróis.
O certo é isto. Muitas vezes inventávamos de brincar de caubói justamente depois do almoço. Nisso se originavam as repreensões que a mãe de dele, dona Trindade, nos dava. Na hora da reparadora sesta, lá estávamos perturbando seu sossego, tentando dar tiros silenciosos, sacar a pistola rápido, sem ruído, sussurrando “mãos ao alto” e, sobretudo, tentando discutir baixinho sobre quem realmente tinha morrido. Em vão, pois o barulho era inevitável.
Ele tinha belos revólveres, como outro amigo, freqüentador igualmente daquela casa, Zé Aniesse, e também excelentes times de botão formados por cocós (um tipo de botão alto no centro, lembrando um arranjo de cabelo feminino da moda), comprados quase sempre na Casa Waquim e cuidadosamente tratados com cera de vela. Era o mais alto da turma, ligeiramente gordinho, temperamento amigável e excelente companheiro. Certa vez, jogávamos uma partida de futebol na Escola Técnica. Ele me chamou de lado e disse baixinho: “Compadre, lança a bola comprida, explora minha velocidade!”. Não sei se fiz cara de espanto. Sei de minhas tentativas de atendê-lo, todas inúteis. Não houve jeito de explorar a tal velocidade.
Um dia, ele e a família se mudaram para São Paulo. Nunca mais tivemos notícias deles. Mais de quarenta anos depois, quando as crianças se divertem com brinquedos eletrônicos e com a internet, que serão suas boas recordações no futuro, recebo notícias de sua volta a São Luís. Seu nome é José Wellington Trovão, mas ele nem parece um trovão, que nunca é silencioso assim como ele está. Onde, em São Luís, estará esse camarada de infância, que boas lembranças deixou entre nós?

17 de julho de 2005

Sigilo Quebrado

Jornal O Estado do Maranhão    
No capitalismo, que nunca estaciona, mas, ao contrário, evolui constantemente, como afirmou repetidamente Karl Marx, existe um fenômeno chamado por Joseph Shumpeter de “destruição criativa”. Alguns setores e atividades da economia, e os empregos a eles vinculados, são periodicamente destruídos, porém recriados, com outras características, em novas áreas, de tal forma que, no balanço final, a destruição é compensada, mais ou menos na mesma proporção, pela criação. Essa dinâmica, segundo a visão shumpeteriana, surge das inovações tecnológicas introduzidas no sistema econômico, com apoio em estruturas de crédito, por firmas inovadoras, capazes, dessa maneira, de se apropriar, durante algum tempo, de lucros extraordinários.
Evidentemente, não é consolo para os trabalhadores demitidos a existência de oportunidades de conseguir novos empregos. De qualquer modo, as chances não estarão ao alcance deles porque, de fato, eles só poderiam obter trabalho outra vez a um custo muito alto de retreinamento, ou, talvez, não sejam mesmo “treináveis” para o novo ambiente econômico e jamais venham a incorporar os novos padrões exigidos da mão-de-obra. Todas as habilidades desses trabalhadores, já nel mezzo del cammin de suas vidas, estão adaptadas às tecnologias antigas. Assim, o drama humano representado pelo espectro do desemprego inevitavelmente assombra as economias capitalistas.
Mas, os problemas acabaram. Daqui por diante, o capitalismo, selvagem ou civilizado, não mais enfrentará crises periódicas. Agora, está ao alcance de qualquer um compensar a falta de renda advinda dessa situação, com a produção de hortifrutigrangeiros, que se pode chamar legitimamente de verduras ou, mais legitimamente ainda, de verdinhas.
Não será difícil ver porque o ramo é tão promissor. Basta uma análise, ainda que superficial, dos lucros formidáveis obtidos por um assessor de parcos recursos, de um deputado estadual do PT do Ceará, este, por coincidência, irmão do ex-presidente do PT nacional, José Genoíno. O sujeito foi preso com R$ 200 mil numa estufada mala e mais US$ 100 mil na cueca. Preso, disse toda a verdade, embora correndo o risco de atrair concorrentes para seu negócio: “O dinheiro vem da venda de produtos na CEASA”, local onde se vendem, ou pelo menos se vendiam, frutas e hortaliças. Sobre a origem da cueca, que segundo as autoridades não tinha marcas de batom, preferiu usar o direito de calar-se para sempre.
Ora, se alguém obtém uma receita de R$ 437 mil – vamos supor não ser essa a receita de uma semana, mas de um mês – com a venda de verdinhas, um negócio de custos relativamente baixos, sem demanda de conhecimentos tão especializados que não possam ser rapidamente aprendidos, a não ser o difícil reconhecimento de cores – esta verdura deve ser verde, aquela deve ser também, etc. –, então, eis o caminho para os desempregados deste país. Nunca mais Lula precisará se preocupar em criar os dez milhões de empregos prometidos na campanha presidencial e a palavra demissão perde, instantaneamente, o tom de condenação à perda eterna de renda. Basta o desempregado se dedicar ao ramo das verdinhas a fim de alcançar uma situação econômica bem melhor do que a anterior, quando ainda estava empregado.
Porém, como tudo no mundo é incerto, sempre haverá a possibilidade de o negócio dar com os burros n’água, esvaziando as burras do novo produtor que voltaria à condição de reles sem-emprego. Aí, ele poderia mudar de setor, dedicando-se à produção de malas à prova de raios X, cuja procura está em alta hoje e por muito mais tempo no futuro. Todavia, se ele decidir fabricar cuecas, daquelas próprias para o acondicionamento de verdinhas, que têm forte procura também, as CPIs vão ter de quebrar o sigilo de todas elas.

10 de julho de 2005

Destroços

Jornal O Estado do Maranhão   
Machado de Assis, agnóstico assumido, gostava de ler um importante livro do Velho Testamento: “Eu me consolo no desconsolo do Eclesiastes”, disse certa vez referindo-se a suas leituras bíblicas. Sigo seu exemplo. É dessa porção da milenar sabedoria judaica a afirmação de não haver novidades no mundo. “Não há nada que seja novo debaixo do céu e ninguém pode dizer : Eis uma coisa nova. Porque ela já houve nos séculos que passaram antes de nós”. Portanto, não devemos nos surpreender por ter a alta direção do novo PT se revelado tão corrupta e incompetente como se revelou, adotando práticas mais desonestas do que as apontadas nos seus antigos adversários.
Mas, como todas as coisas têm o tempo certo, de acordo ainda com o Eclesiastes, havendo o momento de destruir e o de construir, pode ser que estivesse escrito desde sempre ser este o de CPIs. Se não forem por estas erguidos os fundamentos da eliminação da corrupção brasileira bem como da reconstrução moral de um dos países mais corruptos do mundo – o nosso – as últimas esperanças de regeneração da nação estarão mortas.
A verdade é esta. Mesmo aqueles que não votaram em Lula, alguns por temerem suas bravatas e de seu partido contra o FMI e as políticas “neoliberais” do governo FHC, outros por julgarem primária sua visão sobre a difícil tarefa de governar um país de economia complexa como a do Brasil, num ambiente de feroz competição nos mercados globalizados, e perceberem nele certa tendência à adoção de soluções simplistas para problemas de intricada solução, mesmo os que não votaram em Lula, eu dizia, tinham uma ponta de esperança, pelo menos quanto à ética, de ser o seu governo capaz de fazer-nos chegar a melhor tempo, tempo de “lançar fora” o joio e de edificar uma nova ordem moral.
No entanto, o oposto se vê agora com a enxurrada de denúncias de compra de votos de parlamentares, visando o apoio a projetos encaminhados ao Congresso pelo governo, e de revelação de esquemas de desvios de dinheiro nas estatais. A corrupção anterior não só não foi extirpada como aprofundou, infelizmente, seu status como uma das instituições mais características da cultura brasileira.
Sinceramente, não digo isso com prazer nem para me regozijar no conhecido “eu não disse?”. Digo como um lamento, por causa da frustração da grande maioria dos brasileiros honestos. Dos políticos antigos se dizia: “Eles são assim mesmo, não têm jeito”. Do PT se esperava alguma mudança, pela sua pregação anterior. Quando iremos novamente ter a mesma esperança? A única restante é a de que tudo isso possa servir para reformas verdadeiras. A política, por exemplo, uma entre muitas necessárias, mas não essa em tramitação atualmente no Congresso, que mal fala em fidelidade partidária, permite a existência de partidos de aluguel e retira do eleitor a escolha dos nomes dos candidatos a serem eleitos e a transfere aos caciques partidários.
Mas, nem tudo são destroços morais malcheirosos. Eis, para quem tiver olhos para ver, a figura admirável do senador do PT Eduardo Suplicy. Ameaçado de punição pela direção do partido, por ter apoiado a criação da CPI destinada à apuração das denúncias, foi ainda chamado de estranho pelo estalinista José Dirceu. Foi ao dicionário e deu sua resposta. Era sim, estranho, porque ser estranho é ser diferente, e ele era diferente moralmente do próprio Dirceu e de seus cupinchas. Aí está um autêntico Quixote, aquele que na concepção de Vargas Llosa, no seu magistral estudo introdutório à edição do quarto centenário do Don Quixote, da Real Academia Espanhola, era capaz de “desacatar os poderes, as leis e os usos estabelecidos, em nome do que é para ele um imperativo moral superior”. Nem tudo está perdido com homens assim. Pelo menos temos esse consolo.

3 de julho de 2005

Rasas e Chatas

Jornal O Estado do Maranhão   
Caro leitor, analise, por favor, cuidadosamente este texto:
“A identidade sexual pode ser usada para os propósitos da hierarquia, segundo Sartre. Sontag, por sua vez, promove o uso do niilismo para modificar a sexualidade e sugere o uso do dematerialismo textual para destruir percepções obsoletas de identidade sexual, numa espécie de paradoxo autofalsificante. Sartre afirma ainda que a narratividade é usada para reforçar o sexismo, mas somente se a premissa do discurso neotextual for válida.”
Agora, este:
“Podemos ver claramente que não existe nenhuma correspondência biunívoca entre elos lineares significantes ou de arquiescritura, que dependa do autor, e esta catálise maquínica multirreferencial, multidimensional. A simetria de escala, a transversalidade, o caráter pático não-discursivo de sua expansão: todas essas dimensões nos removem da lógica do meio excluído e nos fortalecem em nossa renúncia ao binarismo ontológico [...].”
Se ambos parecem destituídos de lógica é porque de fato o são. Não querem dizer rigorosamente nada. O primeiro tem a seguinte história. Eu visitei o sítio http://elsewhere.org/cgi-bin/potmodern, que produz aleatoriamente, por meio de um sofware chamado The Postmodernism Generator, artigos com sintaxe correta (em inglês), mas completamente sem sentido, que lembram um discurso chamado pós-moderno encontrado freqüente nas obras de famosos filósofos e cientistas sociais, embora, às vezes, estes não se classifiquem como tal. De posse de alguns desses “produtos”, selecionei pequenos trechos, misturei-os, traduzi o resultado para o português e acrescentei arbitrariamente algumas expressões. Obtive, assim, o primeiro texto. O segundo é do famoso pós-psicanalista francês Félix Guatari, no livro Chaosmose. Sem comentários.
A idéia de divulgá-los juntos, de modo que o leitor possa perceber a semelhança entre eles, me veio da leitura de um artigo de Richard Dawkins, no livro O capelão do Diabo, e da releitura das Imposturas Intelectuais: o abuso da Ciência pelos filósofos pós-modernos, de Alan Sokal e Jean Bricmont. A história deste último livro é conhecida. Sokal escreveu uma “paródia, cuidadosamente construída, da metatagarelice pós-moderna”, conforme a feliz expressão de Dawkins. Chamou-a “Transgressão da Fronteiras: Por uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica”, inteiramente destituída de sentido, mas cheia de citações de conhecidos intelectuais franceses e americanos, acerca das supostas conseqüências filosóficas e sociais das ciências naturais e da matemática. Ela foi aceita sem nenhuma restrição pela conceituada revista americana de estudos culturais, Social Text, e publicada como se fosse um texto acadêmico, provocando uma interessante polêmica nos meios intelectuais. Daí, a idéia do livro.
A principal intenção dos autores foi de chamar a atenção para os abusos na utilização de terminologia e conceitos científicos fora da situação para o qual foram concebidos, o que leva à elaboração de uma prosa sem sentido e empolada, e a pensamentos confusos (eles analisam Lacan, Kristeva, Latour e Deleuze, entre outras estrelas). Eles queriam também identificar os fatores culturais que permitiram a esse tipo de discurso ganhar bom conceito em alguns círculos universitários. Além disso, o livro ataca com muita propriedade o chamado relativismo epistemológico, que é a visão segundo a qual a moderna ciência não passa de uma narração ou uma “construção social” como outra qualquer, idéia mais apropriada, penso eu, a gente como Paulo Coelho.
Livros e episódios como esses são muito úteis porque nos põem em alerta contra autores que, desejando parecer profundos, eruditos e sofisticados, apenas conseguem produzir obras obscuras, rasas e, sobretudo, chatas.

Machado de Assis no Amazon