16 de março de 2003

Mendes Pereira

Jornal O Estado do Maranhão 
Domingo passado fui ao velório de José da Costa Mendes Pereira, meu professor de economia agrícola, na época da ditadura e da repressão política, na antiga Faculdade de Economia. Esta funcionava na rua Afonso Pena, no segundo andar do prédio da Academia de Comércio do Maranhão, que ficava no térreo, quando não havíamos, ainda, copiado o modelo universitário americano, de obtenção créditos.
No sistema de então, fazíamos a universidade em turmas únicas, em um período de quatro anos, no caso do curso de economia, o nosso. A bem dizer, precisávamos de quatro créditos, sendo cada um a aprovação ao final dos períodos letivos.  Formávamos grupos estáveis, como no ensino de segundo grau, pois convivíamos, no decorrer dessa quadra, com os mesmos colegas e professores. Todos se conheciam bem, na medida em que é possível conhecer-se bem o ser humano ou o que lhe vai na alma.
Eu me lembro sempre da gentileza de Mendes Pereira com os alunos e com todos e, sobretudo, de seu entusiasmo acerca dos assuntos sobre os quais falava. Esta última qualidade, principalmente, pois ter a capacidade de entusiasmar-se e entusiasmar é uma qualidade, é indispensável ao bom mestre. Somente assim, torna-se possível conquistar os alunos, como ele o fazia.
Os professores, pelo menos aqueles que o são por vocação, à semelhança dele, têm uma tarefa dura, porém, importantíssima para o progresso e crescimento dos povos. Eles impõem a si mesmos o trabalho de acumular novos conhecimentos a fim adicioná-los ao estoque a ser compartilhado pela sua comunidade. Eles podem tornar-se  e freqüentemente tornam-se – neste caso foi assim – os vetores da transmissão aos seus sucessores na aventura humana dessa sabedoria acumulada pelas gerações.
Nenhum poder, nem mesmo a morte, consegue destruir esse feito, conquistado à força do conhecimento, capital intangível. Este jamais pode ser roubado de seu proprietário, como acontece a outros capitais, constituídos por materiais aparentemente mais sólidos, todavia menos nobres e muitas vezes duvidosos na origem, porque se reproduz nos alunos e nos filhos, como se reproduziu com Mendes Pereira. Um de seus filhos, José de Ribamar Pereira, foi meu companheiro de trabalho na Secretaria de Meio Ambiente do Maranhão durante cinco anos.
Mas, sua morte foi ocasião para uma oportuna reflexão, feita a mim por uma filha dele, Graça Pereira Jansen, sobre a forma da profissão médica e de nosso sistema de saúde administrarem essas chamadas unidades de tratamento intensivo. Tem-se a impressão de que elas foram concebidas, por um lado, para curar o corpo por meio do uso das mais avançadas tecnologias; por outro, parecem feitos para matar a alma, pelo isolamento depressivo imposto aos doentes, longe do conforto espiritual dos que lhe são caros e em meio à frieza e à indiferença de alguns. Cura-se, às vezes, o corpo. Massacra-se, porém, a humanidade deles, já bastante abatidos pelo sofrimento.
Não culpo, porque seria injusto, os médicos por essa situação lamentável. Eles também são prisioneiros desse sistema insensível e impotentes para mudar as coisas. Compreendo também as exigências das modernas técnicas de tratamento. Elas impõem alguns procedimentos de isolamento do doente. Sei também que, em certas ocasiões, a presença dos parentes pode mais atrapalhar do que ajudar, pela reação emocional que podem provocar no paciente, de resultados negativos no seu tratamento.
Não aceito, porém, a idéia de não ser possível achar uma forma alternativa de abordar esse dilema, de não se poder combinar as vantagens da moderna tecnologia com o apoio emocional que somente as pessoas queridas podem proporcionar eficazmente. Não devemos nos resignar à inação, num assunto tão importante de nossas vidas, como é esse da assistência na nossa morte, nem aceitar o problema como de solução impossível.
Ter nos levado a pensar sobre essas coisas por ocasião de sua morte foi mais uma prova da fecundidade da vida do professor Mendes Pereira.

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