6 de março de 2005

É Ouro!

Jornal O Estado do Maranhão 
Poucas vezes na história do Oscar, penso eu, um filme mereceu tanto a premiação como Menina de Ouro. Ele conta a história de uma garçonete pobre, chamada Maggie Fitzgerald, interpretada por Hilary Swank – por sinal ela ganhou este ano o Oscar de melhor atriz e, também, em 1999 –, que sonha tornar-se uma grande lutadora de boxe. Para isso se dedica a treinar com extraordinária obsessão, como só as pessoas determinadas fazem. O veterano treinador Frankie Dunn (Clint Eastwood), dono do ginásio decadente onde ela se exercita diariamente, inicialmente se recusa a orientá-la, mas finalmente a aceita. Os dois, ela afastada da família insensível e interesseira e ele, da própria filha, estabelecem uma profunda relação de amizade, enquanto a carreira dela tem crescente sucesso até ser destruída por uma tragédia. A eutanásia desejada por ela é o grande dilema que seu amigo e quase pai, católico praticante, irá enfrentar com plena consciência das implicações éticas e morais desse ato. Uma história como essa facilmente poderia se tornar uma versão feminina, mas não feminista, dos grotescos Rocky I, II, II..., rasteira apologia da violência e da mentalidade machista, bem como do poder imperial americano. Contudo, o diretor e ator Eastwood escapa da armadilha.
Antes de tudo Menina de Ouro é um filme que emociona sem pieguice, pois ao falar de um tema “elevado”, a eterna indagação sobre o sentido da vida e da morte, duas faces da moeda única da existência, e do direito à morte digna e livre de sofrimentos que degradem a condição humana, nos induz à humildade e à solidariedade com os nossos semelhantes, mesmo que seja por breves momentos.
Claro, pode-se sempre falar de coisas banais, triviais, comuns e, a despeito disso, criar situações ficcionais de estatura e alcance universais e, por conseguinte, importantes para a vida dos seres humanos, ou até divagar sobre coisa nenhuma, e, ainda assim, produzir legítima arte. Tal constatação serve para mostrar apenas que não existe nada, de fato, desimportante, assunto mais nobre ou menos nobre. Tudo pode ser matéria artística.
Não é unicamente o conteúdo narrativo, portanto, o cimento de uma obra. É, principalmente, a maneira de contar, o explícito e também o implícito, o insinuado, a comunicação sutil, aparentemente sem compromissos, mas certeira na revelação das angústias humanas. Não fora assim, bastaria escolher bem o tema e a obra estaria bem feita, não importando sua arquitetura torta.
De qualquer forma, não está só no assunto a razão desse filme elevar-se à condição de arte, num meio de expressão, o cinema, que, diferentemente da literatura, das artes plásticas e da música, não alcança com tanta facilidade ou freqüência esse status. (Talvez seja esta uma observação, reconheço, de quem não é um consumidor tão ávido de filmes quanto de livros).
Menina de Ouro combina duas coisas: um tema relevante para nossa experiência de viver (ou morrer) e uma narrativa de fato artística, baseada numa linguagem livre dos excessos tecnológicos tão em voga nos filmes americanos, direta, linear, sem excessos, derramamentos, firulas, malabarismo visuais ou obscuridades travestidas de profundidade. É feita em primeira pessoa por um dos personagens o que lhe dá o tom certo de envolvimento emocional e certa ambigüidade na percepção que vamos alcançando dos sentimentos, julgamentos e opiniões delas, mas não desdiz sua característica de fazer chegar a nós a emoção sob controle, marca da melhor arte moderna.
A iluminação, com os contrastes de claro-escuro acentuados, deixa a impressão de termos visto tudo em branco-e-preto, o que dá uma certa elegância ao filme e a sensação de estarmos diante de uma obra que permanecerá como um clássico do cinema americano e do mundial.

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