19 de dezembro de 2006

Sem Justiça

Jornal O Estado do Maranhão

O cidadão pobre e negro que tinha 33 anos de idade quando extraordinária tragédia o atingiu, deve ter pensado, como Josef K., personagem do escritor tcheco de fala alemã, Franz Kafka, no romance O processo, que alguém certamente o havia caluniado, “pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. As forças que a partir daquele momento deram início a lento mas inexorável movimento para esmagar aquele homem e dele retirar a dignidade, revelaram mais uma vez uma das características marcantes do mundo contemporâneo: a violência do Estado frente ao cidadão comum indefeso, e a angústia existencial e o desespero nascidos daí.
Como Wagno Lúcio da Silva, esse era seu nome, haveria de perceber, a engrenagem da burocracia estatal, posta em movimento – neste caso a burocracia do sistema de justiça, rápido em condenar pessoas da condição social humilde dele, não as de alta renda –, não pára antes de dar voltas e mais voltas. Cumpre, assim, exigência derivada somente da necessidade de autojustificação, mesmo que, assim fazendo, imponha, como impôs, injustiça em lugar de justiça. Mas, quem se importaria com essas idéias românticas de culpa e inocência, quando, na política nacional, como se viu à exaustão nos últimos meses, nem sequer certos meios, de natureza pública, usados para a manutenção do poder, servem à promoção do bem comum? Antes, se usam meios como esses com fins partidários.
Wagno, acusado de latrocínio, foi punido com 24 anos de prisão, com base, só, no testemunho, contaminado de contradições de um rapaz de 17 anos envolvido no crime. Este, mais tarde, disse ter sofrido ameaça de morte de parte dos outros assassinos, que exigiram dele a acusação contra o vigia. De início, a defesa esteve a cargo da Defensoria Pública, instituição estatal, que se mostrou incapaz de produzir qualquer defesa consistente do acusado. A polícia, outra instituição do Estado, não só não fez um inquérito correto como mostrou que o esmagamento das pessoas mencionado acima, pode dar-se não apenas no sentido existencial e moral, mas físico, pois torturou o homem e lhe destruiu todos os dentes superiores, com o nobilíssimo fim de obter uma confissão, quem sabe porque Wando, terrorista em potencial, decerto, ameaçava a segurança nacional. A justiça, mais outra instituição estatal, convalidou o inquérito criminoso e acabou por condená-lo, impondo-lhe a longa pena. Não sei como atuou o Ministério Público. O certo é isto, um inocente ficou preso durante 8 anos, sendo libertado agora.
Vi a emocionante e emocionada entrevista de Wando na televisão. Ali poderia estar um ser humano cheio de ódio, sem entender, como diversos personagens de Kafka, como pudera ser objeto de tanta injustiça. Porém, demonstrando percepção aguda do mundo em sua volta, preferiu falar sobre as injustiças da justiça brasileira, à qual, ele disse, os pobres não têm acesso, como ele bem sabe. Tivesse ele um bom e caro advogado desde o início, seria condenado? Perdoou a ex-mulher, que o abandonou tão logo ele foi preso, desculpando-a com o argumento da juventude dela e o das necessidades prementes da carne. Nenhum desejo de vingança. Que outros julgassem seus acusadores, julgadores e ex-amigos, parecia dizer. Comovente, ainda, foi a confissão de que chegou a pensar em não ir à televisão por causa da falta dos dentes. Como, ele pensou, poderia sorrir sem eles? Depois de todo o peso da engrenagem ter lhe tirado a liberdade e quase a vida, ele pensava em sorrir. Sua dignidade permanecera intacta.
O abandono de pessoas como Wando, indefesas ante a burocracia, é prova de que temos muito a fazer para criar uma sociedade onde todos possam ter iguais oportunidades. Mas, a julgar pelo quadro atual, não podemos ser otimistas no curto prazo.

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