13 de maio de 2007

Contar histórias

Jornal O Estado do Maranhão

Há poucos dias, em conversa com Carlos Gaspar, confrade da Academia Maranhense de Letras, falamos sobre a falta de convívio freqüente entre netos e avós nos dias correntes, ou da falta, em muitas famílias, da proximidade de outros tempos, quando não poucas vezes três gerações moravam na mesma casa em enriquecedor contato. Eu havia passado os olhos nas crônicas de um livro que ele planeja lançar este ano, tendo Viana como referência, e notara a forte presença do avô dele, o português Delfim, nas lembranças de Carlos de seu tempo de menino naquela histórica cidade de belos lagos e campos, na Baixada Maranhense, região onde tenho um bom pedaço de minhas origens, porque vem de Cajapió a família de minha mãe.
A mesma proximidade entre gerações sinto em bate-papos com o erudito diplomata, poeta e historiador Milton Torres, autor de O Maranhão e o Piauí no espaço colonial e do livro de poesia No fim das terras, que se encontra em São Luís finalizando livro sobre o Estado do Maranhão e Grão-Pará. A figura de sua avó materna, matemática de renome internacional em sua época, avulta nas recordações da infância de Milton no Rio Grande do Sul. A admiração dele por ela só poderia advir de saudável convivência que não se limitou, creio, a mero relacionamento formal, mas a verdadeira amizade.
No meu próprio caso, a minha avó materna, Marcelina Raposo, era presença constante no bangalô do Monte Castelo em que morávamos, construído no início dos anos cinqüenta, e onde, mais tarde, ela veio residir, para nosso proveito. Jamais me saíram da lembrança as histórias sobre sua querida terra, Cajapió, contadas por ela enquanto se balançava numa cadeira cujos encosto e assento eram formados por lona inteiriça presa a uma estrutura de madeira que se apoiava em peças curvas e longas, apropriadas ao balanço para frente e para trás, no terraço da casa, até tarde da noite, numa época em que 9 horas da noite era muito tarde e a última novela do dia ia ao ar às 7. No rádio a válvula.
A Cajapió fui em raríssimas ocasiões. Mas eu não precisaria ir mesmo, a fim de conhecer aquele chão, pois o conhecia de muito tempo. Não o mesmo daquelas ruas empoeiradas do município rural, pequeno e pobre que mais tarde conheci e sobre o qual, ainda hoje, não tenho conhecimento íntimo embora dele tenha herança afetiva recebida de várias gerações. Houve então um choque entre a realidade e o lugar imaginário construído por mim. Eu conhecia outro Cajapió, mítico, que talvez tenha despertado em mim o gosto por histórias, como essas narradas nos bons livros, não muito diferentes das de minha avó. Eu vi quando lá cheguei pela primeira vez outro mundo, em nada igual ao imaginado. Aquele trazido por ela em seu coração até São Luís, para nos mostrar, não existia. Ou, melhor, existia, mas ela soubera da pedra e da cal dele extrair tão-só o barro de poesia que há em todas as coisas e as une.
Cajapió sempre foi para mim e sempre será os mistérios presentes nos relatos dela, de navios encantados que desfilavam majestosos ao largo da praia de Itapeua; de curas sem explicação, a não ser a da fé em Nossa Senhora; das manhas do tinhoso e seu gosto por bailes durante os quais era descoberto por causa dos pés trocados; da descoberta de crimes sem aparente solução a não ser por concessão dos santos da devoção e de muitas e muitas outras.
Agora, quando vejo meu próprio neto, Davi, fico imaginando as histórias que ouvirá de nós, seus avós, a serem guardadas eternamente em sua memória. Assim, ele criará também cidades e mundos imaginários, mas tão reais, onde caminhará livre das atribulações da vida. Daqui a muitas décadas, quando formos apenas boas recordações para ele, da mesma forma irá contar histórias a seus netos que as contarão a seus netos....

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