13 de julho de 2003

Vida de cachorro

Jornal O Estado do Maranhão
Recebo um telefonema de um velho amigo, de quem não tinha notícias havia meses, morador de Foz do Iguaçu, falando da vida que, segundo ele, anda pela hora da morte. Nada caminha certo neste país e no mundo. Nada muda, ou melhor, tudo muda para ficar no mesmo. Caras novas, barbudas, há. O que não há são idéias novas. Ele termina seus comentários dizendo que está levando uma vida de cachorro, como resultado da política econômica do governo, classificada por ele de neoliberal e imposta pelo FMI.
Aí, ele se espantou com meu protesto veemente. Não contra o palavrão “neoliberal”, atirado assim, sem mais nem menos, contra o governo do PT. Meu amigo conhece meu pensamento acerca do caminho tomado por Lula com respeito à condução do país: ele está, acertadamente, fazendo o possível e o razoável. Se essa orientação conflita com as velhas idéias petistas sobre a melhor maneira de gerir a economia brasileira, então pior para elas. A mudança do PT é bem-vinda. A responsabilidade de governar e a própria realidade se impõem ante ideologias, voluntarismos e idealismos.
Minha reação foi contra a comparação, inadequada, para dizer pouco, com a vida dos cachorros. Quer dizer então que a vida do melhor amigo do homem é pior do que a do próprio homem? Diz isso quem não leu a história daquele cãozinho (ou foi uma cadelinha?) de Nova York. Levado por sua dona a um passeio no Central Park, ele começou a dar sinais de alheamento de tudo, de desconcentração. O quadro era de estresse e depressão. Se, de repente, aparecesse um bandido com a intenção de assaltar sua dona ele não levantaria sequer as orelhas. Problemas existenciais? Quem poderá dizer? Nem latir o pobre coitado latia, a fim de comunicar sua angústia. O certo é que sua dona decidiu levá-lo a um psicólogo, obtendo bons resultados, não se descuidando, está claro, dos costumeiros mimos e das idas ao cabeleireiro, ao dentista e ao salão de beleza.
Para que não se diga, contudo, serem essas mordomias caninas exclusivas de países do primeiro mundo, vejam agora isto. No Brasil, vem aumentando a quantidade de hotéis dispostos a aceitar hóspedes acompanhados de cães. Dessa forma, os bichinhos escapam do trauma da separação, quando os proprietários da casa – talvez fosse melhor dizer os co-proprietários, porque os animais também agem como tal ­­–, saem de férias. Nessas ocasiões, a despesa com vigilância aumenta, pois alguém tem de tomar conta da residência, enquanto seus ocupantes estão fora, porque, como se sabe, os tempos estão difíceis quanto à segurança pública. Assaltos acontecem a toda hora. Ou se fica de olho na casa, ou se deixa alguém olhando quando se sai.
Mas, quem garante que, ficando na residência, em estado depressivo por causa do afastamento, alheios a tudo, esses cachorros iriam vigiar alguma coisa? Poderia ser até o contrário. Num acesso de raiva, pelo desprezo de que se julgariam vítimas, eles poderiam facilitar a entrada de estranhos, numa torpe vingança contra a suposta indiferença de quem devia cuidar deles. Mais seguro é levá-los mesmo.
Os proprietários dos hotéis dizem gostar dos animais. Eles não causam nem uma pequena fração dos problemas criados pelos seus donos. Estes, sim, desrespeitam as regras e levam seus filhos-animais ou animais-filhos a passear, por exemplo, pelos restaurantes e bares. Pensam dar, assim, uma prova de amor aos queridos bichos. Porém, como mães superprotetoras de seres humanos, estão em verdade, tolhendo o espírito de iniciativa dos filhos, que se tornarão cachorros inseguros e despreparados para enfrentar o mundo-cão, ou mesmo o mundo-homem, lá fora.
Mas, nenhum casal foi tão longe quanto aquele no Hotel Villa de Capri, em Ubatuba, São Paulo. Acompanhado de um lindo cachorrinho, o mais mimoso de quantos já passaram por lá, o casal pediu uma cama extra, pequena. Foi atendido. A cama pequena era para o marido. A mulher dormiria na grande com o cachorro. Meu amigo disse:
– Dormir com a madame! Essa vida de cachorro é que eu queria.

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