18 de agosto de 2002

Rio + 10

Jornal O Estado do Maranhão
A Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, conhecida como Rio +10, numa referência à Rio-92, será realizada entre 26 de agosto e 4 de setembro, em Johannesburg, África do Sul. Seus organizadores divulgaram recentemente um estudo das Nações Unidas, “Desafio Global, Oportunidades Globais”, que servirá de base às discussões do encontro. Algumas das conclusões são bastante pessimistas.
Caso o atual padrão de desenvolvimento seja mantido por mais vinte e cinco anos, o uso de combustíveis fósseis e a emissão de gases geradores do efeito-estufa aumentarão consideravelmente. Quase três bilhões e meio de pessoas sofrerão inevitavelmente de falta de água e as florestas continuarão a desaparecer rapidamente. Segundo, ainda, o estudo, a poluição atmosférica causa, atualmente, a morte de três milhões de pessoas. Outras trezentas milhões sofrem de malária, um bilhão não têm acesso a água potável e dois bilhões a saneamento básico. Em outro estudo, a Organização Mundial de Saúde estimou que a má qualidade ambiental contribui atualmente com 25% de todas as doenças passíveis de prevenção no mundo.
Nitin Desai, o secretário-geral da cúpula, disse que “esses problemas têm de ser enfrentados agora. Temos de mudar o atual modelo de desenvolvimento ou correr o risco de ameaçar ainda mais a segurança da espécie humana no mundo todo”. O secretário-geral da Onu, Kofi Annan, destacou a necessidade de dar-se atenção a cinco áreas, nos debates: recursos hídricos e saneamento, energia, saúde, agricultura e, finalmente, biodiversidade e proteção de ecossistemas.
Todavia, nem todas as notícias são ruins. A taxa de crescimento da população mundial vem diminuindo sistematicamente, o que torna possível que as famílias, assim diminuídas em número de filhos, invistam mais na educação, nutrição e saúde de suas crianças. A pobreza está declinando na Ásia e na América Latina, assim como a fome, lentamente, em todas as regiões, exceto na África. Na Ásia, o padrão de vida está, gradativamente, alcançando o dos países desenvolvidos.
Estarão presentes em Johannesburg cerca de sessenta mil pessoas, entre elas mais de cem presidentes e primeiros-ministros. Os resultados esperados incluem uma declaração política dos líderes, comprometendo seus governos e sociedades a tomar medidas efetivas para implementar o desenvolvimento sustentável; um plano de ação que sirva de guia à efetivação dos compromissos assumidos; e uma compilação não-negociada de novos compromissos e iniciativas tomados em parceria para ações específicas, no âmbito regional e no nacional (as chamadas Iniciativas Tipo II).
Na opinião deIgnacy Sachs, diretor-honorário do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, o Brasil pode liderar os países do Sul na adoção desse modelo de desenvolvimento. “Do ponto de vista conceitual, houve um avanço significativo, mas estamos a um longo caminho da prática do Desenvolvimento Sustentável”.
Os resultados do Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do Brasil – PPG7, que, em seu segmento do Maranhão, tive a oportunidade de coordenar, na qualidade de Secretário do Meio Ambiente do Estado, serão apresentados no encontro. Eles irão mostrar um exemplo de um esforço de adoção do uso sustentável de recursos naturais em combinação com o combate à pobreza.
É lamentável, porém, que, embora incorporado ao discurso oficial de quase todos os países, a partir da Rio-92, o conceito de desenvolvimento sustentável ainda não tenha sido, até agora, incorporado a suas políticas públicas. Na maioria das vezes, compõe apenas uma retórica vazia de conteúdo e de resultados práticos.  Aliás, de tanto ser usada abusivamente, a palavra sustentável, aqui no Brasil, pelo menos, tornou-se um chavão que se ouve a propósito de tudo e de nada. Tudo é sustentável no discurso e nada é na prática.
Um dos maiores desafios para a humanidade, hoje, é o de tornar essa idéia uma realidade.

11 de agosto de 2002

Promessas

Jornal O Estado do Maranhão
As eleições presidenciais sempre foram, e sempre serão, um prato cheio de promessas delirantes, inconsistentes e danosas à economia. Essa patologia acentua-se com a aproximação da data da votação. Quanto mais próxima esta, mais besteiras os candidatos produzem, com pose e ares de sabichões. Tem para qualquer gosto. Você vê necessidade de o país criar dez milhões de empregos? Algum pretendente ao poder promete ajoelhado. Os juros são altos? Nada de preocupação. Um decreto eliminará o problema que, por maldade e má fé, o governo atual não quis resolver. O salário é baixo, impedindo a compra da geladeira, do fogão, do automóvel, da televisão, dos brinquedos dos filhos, dos Cds de Xitãozinho e Xororó? Uma lei, aumentando o salário de todos, levará a classe operária ao paraíso, no primeiro dia de governo. Tudo muito fácil.
As aposentadorias são baixas, o funcionalismo público não teve acréscimos nos vencimentos? Vamos aumentá-los, para torná-los “dignos” e “justos”. A Previdência vai quebrar com o aumento? Não importa agora, depois se vê o resultado. Precisamos, com urgência, fazer crescer as exportações, diminuir os déficits comercial e em conta corrente de nossa economia? É só falar grosso com o pessoal lá de fora, agir como macho, para melhorar a situação. Os gringos irão tremer ante a coragem do nosso futuro presidente.
É dessa forma que os salvadores da pátria se comportam diante dos eleitores em época de eleição, na esperança de chegar ao poder e dirigir-nos durante quatro ou oito anos. Os candidatos propõem qualquer coisa, sem explicar consistentemente de onde virão os recursos para fazer tudo ao mesmo tempo. O eleitor brasileiro já está cansado desse tipo de promessa sem sentido.
Ninguém quer saber mais de planos de palanque que, de qualquer maneira, podem ser feitos facilmente pelas equipes de campanha. As pessoas querem saber como eles serão implementados. Planos servem, ou deveriam servir, para estabelecer prioridades e mostrar como os recursos necessários a sua realização serão obtidos, de onde virá o dinheiro, não para prometer o melhor dos mundos. O que se vê, infelizmente, são propostas que, simultaneamente, diminuem receitas, aumentam despesas e acenam com equilíbrio orçamentário. É uma mágica que a aritmética, enquanto dois mais dois continuar a ser quatro, não poderá fazer.
Mas o pior dessas fantásticas histórias eleitoreiras não está na parte econômica, mas na político-institucional. Circula por aí a fantasia de parlamentarizar o presidencialismo. Expressa dessa maneira, a idéia parece até inofensiva, tem um certo charme acadêmico e lembra alguma coisa vagamente moderna. Ou, melhor dizendo, modernosa.
Pela inusitada proposta, o presidente da República e o Congresso Nacional poderiam convocar eleições presidenciais e legislativas antecipadas, no âmbito do respectivo Poder, no caso de um impasse entre o Executivo e o Legislativo impedir a adoção de medidas de interesse da sociedade. Ora, o mandato fixo do presidente é uma das características fundamentais do presidencialismo e a dissolução do Parlamento um princípio básico do parlamentarismo.
Essa proposição híbrida, conjugada com o desejo de uso indiscriminado do recurso constitucional do plebiscito, com base em uma pretensa liderança “forte” do chefe do Executivo, configura uma confrontação antecipada com um Congresso supostamente refratário a mudanças indispensáveis ao país. É uma ameaça às instituições democráticas brasileiras. Um bonapartismo semelhante já foi tentado antes pelos presidentes Jânio e Collor, com as conseqüências calamitosas conhecidas de todos.
O acordo assinado pelo governo brasileiro, esta semana, com o FMI, que garantiu um empréstimo de trinta bilhões de dólares ao Brasil, aumenta a responsabilidade dos candidatos na manutenção da estabilidade econômica. Vamos esperar que esse compromisso da nação chame-os à realidade e contribua para pôr um fim nesse festival de promessas vazias e desestabilizadoras.

2 de agosto de 2002

Bingo

Jornal O Estado do Maranhão
Eu vi Bingo na televisão. O pobre caminhava surpreso, deprimido, alheio ao ambiente, indeciso, sem rumo, com o olhar perdido no horizonte, cheio de revolta contra as injustiças da vida. Não caminhava propriamente. O coitado era conduzido por um amigo que, de vez em quando, acariciava-lhe a cabeça e enxugava-lhe, furtivamente, incontroláveis lágrimas, saídas dos olhos melancólicos de Bingo.
Ele fora preso. Até aquele momento, não sabia por quê. O que acontecera? Qual o seu crime? Assaltara, roubara, matara, atentara contra a economia ou a segurança nacional, comandara um ataque especulativo contra a moeda nacional, dera um golpe no mercado financeiro, sumira com o dinheiro de fundos de pensão, renegara a pátria? Falara mal do presidente, do papa, dos evangélicos, dos militares, dos políticos? Envolvera-se em um incidente diplomático? Nada disso. Mordera um vizinho. Mordera? Sim, mordera.
Ele irritara-se com algo desagradável nos modos do vizinho e, usando um meio de expressão próprio de um cachorro, já que ele era um, dera-lhe uma mordida em parte do corpo que não sei qual seja. Com certeza, em um local deveras sensível, a julgar pela reação do ofendido. Este o denunciara a uma autoridade da cidade. Imediatamente, Bingo fora levado preso ao Centro de Controle de Zoonozes local, sem qualquer investigação aprofundada, sem nenhuma oportunidade de defesa.
Cachorro também é humano, como se sabe desde quando o Ministro do Trabalho do governo Collor, Rogério Magri, anunciou, indignado, essa descoberta. Falava de sua cadela, Orca, vista a bordo de um carro oficial, rumo a uma clínica veterinária. Não surpreende, portanto, a humana reação de Bingo, de irritação, e, depois, de tristeza e revolta, pela surpreendente prisão.
Quem nunca teve um vizinho chato, inconveniente ou mal-educado? Em Brasília, eu tive um. Baterista de um grupo de roque pauleira, ele levava toda a banda para ensaiar no apartamento ao lado do meu, nos fins de semana. Dava vontade de morder o sujeito. Por que Bingo não poderia sentir o mesmo impulso?
Mas, afinal, era ele um feroz pit bull, um enorme fila brasileiro, um apavorante rottweiler de filme de terror? Tinha uma história de viver mordendo todo mundo, só por maldade, para falsificar sua condição de humano e passar por espírito de porco, ou melhor, de cachorro? Não, de jeito nenhum. Considerando sua humanidade, até se poderia classificá-lo como um cara pacato, ordeiro e cumpridor dos deveres.
Em verdade, ele é uma mistura de poodle com pequinês. Por aí, imaginam-se logo suas limitações físicas. Não poderia ser um desordeiro, ainda que desejasse. Ninguém se sentiria intimidado pelos dentes dele. Vai ver, ele quis tão-só dar um susto no chato, não morder de verdade. Uma compreensível reação, um impulso momentâneo, mas incontrolável.
Era de ver os prantos e a desolação de sua dona. Digo dona e digo mal. Não seria adequado, ou politicamente correto, classificar um dos parceiros como tal em uma relação entre humanos. Melhor seria chamá-la de amiga, orientadora, companheira de Bingo, ou de qualquer outra coisa. Dona, nunca. Com muito senso de justiça e justificada revolta, ela perguntava por que não se prendiam esses bandidos que vivem à solta por aí ameaçando todo mundo, cometendo todo tipo de crime, comportando-se como autênticos cachorros doidos, prontos para atacar a qualquer momento.
Agora está lá, Bingo, no Centro, em perigo de contaminação por doenças de outros cachorros, quer dizer, de outros humanos, que viviam ao deus-dará pelas ruas sujas da cidade. Pior seria, contudo, ter o destino do cachorro de Bill Clinton. Depois de ter vivido muitos momentos de glória, como o primeiro-cachorro do país mais poderoso do mundo, o infeliz foi atropelado e morto ingloriamente, como um reles vira-lata.
Bingo, pelo menos, tem a esperança de que a autoridade se compadeça de sua triste situação e o faça retornar, vivo e alegre, para perto da sua humana amiga, mas para longe do seu desumano vizinho.

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