29 de julho de 2001

Fundo do poço

Jornal O Estado do Maranhão
O futebol brasileiro chegou ao fundo do poço? Ninguém conhece a resposta. Não, pelo menos, até que a nossa seleção enfrente as potências futebolísticas de Guam, das Ilhas Marshall, do Usbequistão e de Burquina Faso. Sem jogos com esses países não se poderá fazer uma avaliação segura da nossa competência futebolística.
Na primeira semana de janeiro deste ano eu dizia, em artigo aqui neste espaço, comentando o vexame da partida final da Copa João Havelange, que o perigo de decadência para nosso futebol estava “nos dirigentes, do lado de fora dos campos. Não, certamente nos jogadores”. Continuo com a mesma opinião.
Não posso acreditar que, repentinamente, como se castigado pelos deuses do futebol, o Brasil, que disputou as duas últimas finais da Copa do Mundo, tenha deixado de produzir craques como no passado. Tem, sim, produzido e tantos que, mal começam a ter sucesso, conseguem contratos milionários para jogar na Europa. Nenhum país pode dizer que faz o mesmo em quantidade e qualidade semelhantes.
E, ainda assim, os que aqui permanecem poderiam formar um excelente time, mas tal não acontece. É por isso que um saudosismo de ocasião e uma idealização ingênua do passado de vitórias, tão comuns em momentos de crise, já começam a mostrar força em expressões do tipo “hoje em dia já não temos craques como antigamente”.
O que está acontecendo, afinal? Por ocasião daquele último jogo da tal Copa, o jornal espanhol El Pais disse que aquele tinha sido “o retrato mais obscuro da absoluta desorganização em que vive – e morre – o futebol brasileiro”. Aí está. O que está ocorrendo não é diferente, exceto por ser o vexame, agora, da própria seleção. Nosso futebol está morrendo como resultado de uma desorganização que cresce com a corrupção endêmica na entidade que deveria zelar pelo esporte mas não o faz.
Seus administradores aplicam-se, prioritariamente, a encher os bolsos com o dinheiro alheio, aproveitando-se da paixão dos brasileiros pelo futebol. Por essa razão, não se tem um calendário das competições, mudam-se os regulamentos com os campeonatos em andamento, não se rebaixam os times que deveriam ser rebaixados nem se promovem os que merecem, não se fiscaliza e não se pune ninguém, aumenta-se ou diminui-se o número de participantes dos certames de acordo com as conveniências do momento, não se dá à seleção nem as condições nem o tempo necessários para um treinamento decente, e por aí vai. Tudo para favorecer interesses econômicos. Não os legítimos, dos clubes, dos torcedores e dos atletas, mas os ilegítimos, da maioria dos dirigentes.
Duas CPIs sobre futebol foram instaladas no Congresso Nacional. A da Câmara dos Deputados já terminou. Dela fazia parte, vejam só, um dos investigados, o presidente do Vasco, Eurico Miranda. A do Senado está em andamento. Segundo a Folha de S. Paulo, ambas encontraram indícios de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e enriquecimento ilícito. Está nos relatórios. Não se viu conseqüências e duvido que se verá. O que se viu, quando uma das CPIs veio a São Luís, foi um espetáculo grotesco e ridículo de alguns de seus membros em busca de autopromoção.
A derrota para Honduras na Copa América, na Colômbia, é parte da coleção de humilhações que vai aumentando rapidamente e ameaça deixar os brasileiros fora da Copa do Mundo. É a conseqüência inevitável dessa bagunça em que o nosso futebol se transformou. As desculpas de Romário e Mauro Silva para não jogar no torneio e as dispensas solicitadas por outros jogadores que atuam na Europa, passivamente aceitas pela CBF, mostram bem o descontrole a que chegamos.
É hora de estender a essa entidade a limpeza moral que o Senado vem realizando entre seus membros. O país mudou e continua mudando. Ninguém aceita mais a irresponsabilidade e a desonestidade como normas de comportamento de pessoas públicas. O caminho para salvar o futebol brasileiro passa pela aplicação do código penal a essa gente. Chega de esculhambação.

22 de julho de 2001

Ver para crer

Jornal O Estado do Maranhão
É impossível deixar de pensar que os órgãos públicos e empresas privadas que realizam obras nas ruas de São Luís não o fazem com a intenção de provocar engarrafamentos de trânsito. Não falo das obras grandes, mas dessas pequenas, com grande poder de irritação. Se a razão não é essa, qual, então, a explicação para fazerem os serviços justamente na hora de maior movimento? Qual a enigmática razão para a indiferença com que infernizam nossa vida, sem colocar, pelo menos, uma placa de aviso? “Estamos trabalhando para seu desconforto. Sempre”.
Chego a pensar que há planos muito bem elaborados, com reuniões semanais de acompanhamento dos resultados. Os detalhes de cada operação são analisados pelos planejadores: o número de participantes, o transporte a ser usado, o fluxo de carros no lugar escolhido, as estatísticas do ano anterior, a declividade da pista, a curvas, a sinalização. Tudo para garantir o sucesso dos engarrafamentos.
Já fantasiei, até, que chegam a consultar o serviço de meteorologia. Se a previsão é de chuva, ótimo. Alguns sonham mesmo iniciar uma obra às seis da tarde de uma quinta-feira, véspera de um feriadão, na avenida mais movimentada da cidade.
Imagino a seguinte situação nas reuniões de avaliação. O chefe chega e pergunta a quantas anda o calendário de execução do plano. (A palavra aí significa executar tanto as obras quanto os motoristas). Algazarra imediata. Todo mundo quer dar uma dica para aperfeiçoar o trabalho. Alguém diz conhecer um lugar ideal, principalmente para dias de chuva. O chefe lembra que engarrafamentos no caminho para o escritório dos planejadores estão proibidos.
Como a imaginação humana não tem limites, nunca falta uma boa sugestão. Ainda mais que, sendo os engarrafamentos criados, obrigatoriamente, em horários de grande movimento, de preferência na volta para casa, quando as vítimas já estão morrendo de fome, o gostoso mesmo é participar da escolha do local ideal. As ruas e avenidas são escolhidas em votação secreta, em urna eletrônica, não se sabe se à prova de fraude.
Em meu pesadelo, vejo o entusiasmo com que as equipes partem para cumprir a missão! Não tem aquele negócio de deixar para o outro dia, vamos ver, pode ser, quem sabe. Tem que ser logo. Nada de pedidos de dispensa, sob a alegação de doença, ou faltas ao serviço no grande dia. Surpreender é fundamental. Avisados, os motoristas poderiam descobrir vias de escape, levando ao fracasso da operação daquele dia. Deve ser por isso que há tanta variação do local de ataque. É a surpresa como arma.
Visualizem agora a confusão. Sol de derreter a estátua do Duque de Caxias, no João Paulo, ou, ao contrário, chuva bíblica; buzina de automóvel, fumaça preta de ônibus, queda de bicicleta, choro de criança, idoso sem ar fresco, reclamação, soluço, desmaio, ranger de dentes. Tem até gente que, em resposta aos apelos e exigências da natureza, dá uma corridinha ali para o mato e volta aliviada.
Os planejadores devem achar que, apesar de chateadas, as pessoas irão verificar que alguém, pelo menos, está trabalhando pelo bem da comunidade. À noite ou nos fins de semana ninguém iria perceber nada. A alma do negócio não é o segredo, é a propaganda Tem de fazer como a galinha, pôr o ovo e cacarejar. Só que o cacarejo é de taboca rachada.
Não seria absurdo afirmar que a cerveja corre solta na volta à base de operações. A comemoração vai até tarde. Euforia completa. Alguém comenta sobre as reações das pessoas, achando-as exageradas. Outro se lembra de ter visto, recentemente, em um engarrafamento, aquele senhor, que se abanava toda hora. A pobre vítima não foi capaz de prever o ataque e evitá-lo. É uma prova do sucesso do plano.
Quando se está ali, engarrafado, passam essas coisas todas pela cabeça. Depois, libertos, em casa, com calma, muda-se de idéia. Para que ficar vendo fantasmas à luz do dia? Foi, tão-somente, um descuido inocente. Não vai acontecer novamente. Confiem. Vocês vão ver. Ver para crer!

8 de julho de 2001

Shopping inundado

Jornal O Estado do Maranhão
Vejo na televisão pela enésima vez carros submersos no Shopping Monumental, no Renascença. Já aconteceu comigo também. Posso imaginar o que as pessoas sentiram ao ver seus automóveis destruídos pela inundação do estacionamento na segunda-feira passada. A situação repete-se regularmente nos períodos chuvosos.
Acompanhei grande parte da história que levou a essa situação kafkiana. Uso este termo porque as pessoas que vêm sendo prejudicadas ficam sem saber a quem responsabilizar pelos danos que sofrem. Penam de um lugar para outro, ouvem murmúrios de todos jogando a culpa em todos, seguem orientações erradas, ouvem que um alto burocrata em posição de decidir não decidiu porque não era conveniente e acabam percebendo que alguma força mais alta vai se alevantar para colocar a culpa nelas.
Vai ver, uma bela manhã de sol, sem essas chuvas inconvenientes que andam destruindo um bom pedaço desta cidade-patrimônio-da-humanidade, entram-lhe na sala de jantar oficiais de justiça para intimá-los não se saberá bem por quê e para quê. Aí as vítimas pensarão, da mesma forma que Joseph K., personagem de O Processo, de Kafka, que alguém certamente os haveria de ter caluniado pois estavam sendo acusados sem ter feito mal algum.
A confusão surgiu quando a firma Empresa Pacotilha Ltda., proprietária de O Imparcial, iniciou a construção da sede desse jornal em terreno atrás do shopping. As obras foram iniciadas irregularmente, com alvará de construção da Prefeitura de São Luís, é certo, mas sem a devida licença ambiental da Gerência Adjunta de Meio Ambiente ­– Gama, órgão do meio ambiente do Estado que eu dirigia naquele ano de 2000.
Questionada pela Promotoria de Meio Ambiente da Capital, dirigida pelo Dr. Fernando Barreto, a empresa, em reunião com ele, concordou em fazer a drenagem e solicitar a licença à Gama. Para formalizar o acordo, assinou um Compromisso de Ajustamento de Conduta, instrumento jurídico utilizado pelo Ministério Público nesses casos. O documento contou com a interveniência da Prefeitura de São Luís.
O receio da Promotoria e dos técnicos do meio ambiente, que resultou ser fundado, era de que houvesse inundações no período chuvoso, por causa da cota em que a construção estava sendo feita, muito elevada em relação ao restante da área. Temiam, também, a ocorrência de danos às áreas de mangue próximas.
No dia seguinte à reunião, o promotor recebeu um ofício da Prefeitura pelo qual esta assumia a responsabilidade pela execução da macrodrenagem da área. Se ela foi feita, deve haver algo errado, como se pode ver pelo que está ocorrendo. Se não foi, precisamos saber a razão. A dificuldade poderia vir de estar o estacionamento ao nível do mar. Tanto que as enchentes coincidem com as marés altas.
Simultaneamente, a direção do Monumental ajuizou uma ação contra a Empresa Pacotilha  Ltda., justamente por considerar que a construção iria causar, como de fato vem causando, graves inconvenientes aos usuários do estacionamento, às lojas e ao comércio do shopping. Essa ação ainda tramita na justiça estadual.
Informa-me o Dr. Barreto que, do ponto de vista legal, a responsabilidade pelos danos é da Prefeitura de São Luís que autorizou a construção. Mas acho que isso não diz tudo. A empresa, preocupada com o atraso nas obras e o risco de prejuízos, continuou a construção com base em alvará da prefeitura, mesmo sabendo que, se a drenagem não fosse realizada a contento e a tempo, os prejuízos seriam transferidos para terceiros quase imediatamente.
Quanto ao Shopping Monumental, o mínimo que se pode exigir dele é que alerte seus clientes sobre o perigo que correm naquele local inseguro.
Trago essas informações para que o leitor possa julgar por si mesmo. Assim, ele poderá fazer seu próprio juízo sobre a responsabilidade de cada um dos envolvidos. A esperança é de que não se vejam mais na televisão as cenas, que já se vão banalizando, de pessoas deseperadas a clamar em vão por seus direitos.

1 de julho de 2001

Papagaiada

Jornal O Estado do Maranhão
– Doutor, tem um moço aí fora querendo falar com o senhor. – Quem é? – Francisco. Chico do Pote. – Qual o assunto? – Ele disse que é particular. Só fala se for com o senhor. – Lá vem mais uma furada. É a terceira esta semana.
Não era uma furada. O homem não estava lá para pedir dinheiro, mas a liberdade de um papagaio. Os fiscais haviam apreendido o animal porque o dono não tinha a devida licença. Eu era, então, em 1995, Secretário de Meio Ambiente do Estado.
– Doutor, desde que os fiscais levaram o bicho minha sogra reclama de mim o dia inteiro, não come e não dorme direito. Ela acha que a culpa é minha – Muita gente ficaria feliz de ver a sogra nesse estado. – Não brinque, doutor. Minha mulher deixou de falar comigo. Ela está grávida, nos dias de descansar. O médico disse que não é bom ela ter contrariedade. Eu vim aqui pedir pro senhor mandar soltar ele. – Meu amigo, não se pode criar papagaio em cativeiro. Se todo mundo descumprir a lei por causa da sogra, onde é que nós vamos parar? – Desculpe, doutor, mas não é uma sogra só. É a mãe de minha mulher que puxou pra ela. As duas são brabas. Juntas, então, nem se fala. – Mas... – Minha vida virou um inferno. Se o diabo do papagaio não voltar, minha mulher vai perder essa criança e minha sogra vai me matar. Ou eu mato ela.
Ele não estava brincando. Seus olhos eram pura ansiedade, angústia, medo infindável de não conseguir levar o animal de volta. Ele fez um movimento e eu pensei que ele ia se ajoelhar. Não se ajoelhou. Mas era como se tivesse se jogado aos meus pés.
– Está bem. Vou mandar soltar. Mas o senhor vai me prometer que essa é a última vez que isso acontece. Pegue esta lista. Veja aí os nomes dos animais que o senhor não pode comprar. Preste atenção pra não esquecer. Cuidado, se pegarem o senhor novamente não vai ter jeito.
No dia seguinte, ele me trouxe como sinal de gratidão um cofo de jaçanã, ave que estava na lista.
– Sabe o que é, doutor? É que eu não prestei atenção direito.
Mesmo assim, o papagaio retornou ao lar, para a felicidade eterna da sogra e da mulher daquele pobre homem, livre, enfim, da tragédia que o ameaçava. A volta do louro serviu para unir novamente a família.
Vejam só agora. Do outro lado do mundo, na China, um outro tipo de papagaio, um mainá, parente próximo do papagaio-verdadeiro e igualmente imitador da fala humana, em vez de unir, desuniu uma família.
Um homem resolveu fazer-se de genro bonzinho e mandou a mulher passar uma semana com a sogra, instituição tão injustamente desdenhada. Embora desconfiada, a mulher foi. Mais desconfiada ficou quando, na volta, o papagaio, querendo mostrar sabedoria, como todos os de sua espécie, começou a soltar sentenças como “te amo”, “te adoro” ou “acabada”, “velha chata”.
Ela não teve dúvidas sobre como e com quem a estimada ave, espiã inesperada, aprendera aquele discurso. Ora, que amava a mulher, o conquistador chinês não dizia havia anos; muito menos que a adorava. E mais, vivia chamando a coitada de acabada e velha chata. O divórcio foi imediato.
É hora de comparar. Qual dos dois papagaios é mais útil à sociedade humana, o maranhense ou o chinês?
O de São Luís, apesar da fama que papagaio tem de falador, não disse uma palavra desde que foi apreendido. O trauma o fez desaprender a falar. Sua volta para casa, apesar da mudez repentina, estabeleceu a paz na tumultuada família.
Lá na China, deu-se o inverso. O louro mostrou que era mesmo tagarela do que resultou intensa guerra conjugal. A mudez foi da sogra. O animal por certo nunca saiu de casa. Ficou ali nos bastidores, aprendendo e espionando para dedurar o infiel. Prestou um bom serviço à moral e aos bons costumes dos homens.
Encontro recentemente o seu Chico. Pergunto como vão as coisas. Ele me fala da morte do papagaio e digo que foi uma pena. Ele acha que foi de tristeza. Passou a criar pombo. Eu fico imaginando o outro marido, o galã chinês. Esse deve preferir outra ave, a galinha. Não papagaio com certeza.

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