10 de dezembro de 2000

A ponte e a ponta

Jornal O Estado do Maranhão
 
Atravessar a ponte de São Francisco é passar de uma cidade a outra. O nome é o mesmo, São Luís, mas não a cidade. Uma, a velha, foi fundada pelos franceses, a outra, a nova, não foi fundada, brotou.
Ir da Beiramar para o São Francisco, pela ponte, não é ir. Para mim, é voltar a outro tempo. O pequeno barco nos levava aos domingos para a Ponta da Areia, logo depois do São Francisco: meu pai, Carlos Moreira, minha mãe, Maria, eu e meus irmãos de suspensórios e calças curtas, cabelos repartidos ao meio, o compadre Queiroz, admirado pelos presentes caros que dava freqüentemente ao invejado afilhado Cursino. Quantas vezes fizemos essa travessia? Uma ou dezenas? O carro de praça (é assim que se chamava o táxi) tinha que ser contratado dias antes do passeio com os motoristas conceituados que todo mundo conhecia na cidade: Dadeco, Astrolábio, Pindobuçu. Desses, eu nunca me esqueci. Se meu pai chamava outros, não os pude conservar na memória.
Dadeco, num carro marrom de ar elegante, acho que usava óculos, mas não sei se os imaginei depois. Ciumento do carro. Muitas vezes eu ia ali no banco da frente entre meu pai e ele. Quieto, admirando a direção de plástico rígido e o aro de metal de raio pequeno que servia como enfeite e buzina. Astrolábio era, para mim, sério demais, não gostava de muita conversa. O carro preto e pesado, de linhas arredondadas, me parecia enorme, com a parte da frente, do pára-brisa ao pára-choque, ocupando quase a metade do comprimento do veículo. Pindobuçu (será que era ele o que usava óculos, ou os dois usavam?) era simpático e risonho com seu tom de voz um pouco agudo e cabeça coberta com uma cabeleira grisalha. Seu carro era um meio termo entre a sobriedade e elegância do de Dadeco e as linhas mais populares do de Astrolábio.
Quase não me recordo da viagem, se o barco jogava, se não jogava, quanto tempo levava. Sei que o barco era a remo. Do cheiro do mar, sim, me lembro, ou seria do rio? Ali, aonde o Anil chega na baía de São Marcos, não se sabe onde o salgado começa ou o doce acaba.Cheiro de água doce, cheiro de mar, cheiro de verde, cheiro de mangue, todos juntos, o ar salitroso fazendo pegajosas nossas peles e aumentando a queimadura do sol.
A sensação era de aventura, como as que víamos nos seriados de domingo no cine Rialto, na rua do Passeio, para aonde íamos do distante Monte Castelo. Era também de fascinação com as histórias que se contavam do lugar: — Tem areia movediça na Ponta da Areia, já morreu muita gente lá. A Ponta da Areia não era, então, mais do que uma pequena colônia de pescadores de casas simples, rústicas e agradáveis. Antes tinha sido o local de aldeias indígenas das quais a história, nos livros dos invasores brancos, não deixou registro.
 Na chegada éramos recebidos pelos agregados da propriedade de seu Queiroz que nos ajudavam a desembarcar. Tomávamos nosso banho de mar sob o olhar vigilante da mãe, comíamos o peixe e o camarão, descansávamos um pouco abrigados em barracas improvisadas, tomávamos guaraná Jesus ou água de coco, (era uma época sem Coca-Cola) os adultos conversavam, e regressávamos todos depois do almoço sem nunca sermos tragados pela areia, um pouco frustrados pela ausência de perigo que nos amedrontava e atraía.
Para terminar a jornada, à noite, em casa, ouvíamos histórias do interior, de Cajapió, contadas pela avó Marcelina, de navios encantados, sereias e do diabo que se disfarçava nos bailes e era descoberto porque tinha os pés voltados para trás. Não tinha televisão, internet, computador. Não tinha ponte como agora. Não era melhor, não era pior. Era diferente.

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