18 de setembro de 2005

Sessões Contínuas

Jornal O Estado do Maranhão  
Eles se foram em silêncio, um de cada vez, pouco a pouco. Um dia, sentimos alguma coisa diferente. Olhamos em volta e não os vimos. Tinham ido embora, desde o da mais alta classe até o mais popular. Eles se sentiam desprezados, abandonados pelos amigos.
O último a ir-se foi o Passeio, o cinema na rua do mesmo nome, pois é de cinemas que falo. Era o penúltimo no centro da cidade e foi inaugurado em 1962. Fechou há poucas semanas, depois de 43 anos de funcionamento. Creio ter sido o primeiro em São Luís com ar condicionado.
Seus proprietários haviam construído antes, em 1960, o cine Monte Castelo, quase ao lado de nossa casa. Eu tinha 12 anos e vi construírem o prédio desde o alicerce até o teto. Eu me sentava na copa a fim de fazer os deveres de casa. Vezes sem conta perdi a concentração nos estudos, observando pela janela lateral os operários completarem o imenso telhado, aos pouco fechando os vazios, com fieiras e fieiras de telha, como quem vai colocando com calma as peças que faltam num quebra-cabeça. A inauguração – eu estava lá – foi solene, com farto coquetel para os convidados.
Foi lá que vi a sensação da época, um filme em chamada terceira dimensão.Para assisti-lo, os espectadores recebiam óculos especiais na entrada. A novidade não pegou. Anos depois, o comércio de filmes foi substituído durante quatro anos pelo intenso comércio religioso de salvação de almas ameaçadas por demônios interiores e exteriores, estes em forma humana. Em seguida, virou pista de dança.
Aquela mesma família arrendara em meados dos anos 50, o Teatro Arthur Azevedo, chamado então de cine-teatro, onde eu ia ver os deliciosos filmes brasileiros de humor popular, chamados de chanchadas, termo pejorativo, de provável origem portenha, usado pelos críticos de cinema com o significado de coisa sem valor. Eram musicais carnavalescos e paródias do cinema americano, de grande aceitação pelo público, com astros como Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Zé Trindade, Costinha, José Lewgoy e Cyll Farney e estrelas como Eliana, Dercy Gonçalves, Zezé Macedo, Emilinha Borba, Marlene e Adelaide Chiozzo com seu acordeão.
Os cinemas de rua existentes nas minhas meninice e adolescência, fecharam um a um. Foram expulsos do mercado pelos grandes grupos empresariais de distribuição e exibição de filmes, pela falta de segurança nos centros das cidades e dos bairros, o que afastou o público, e pela mudanças urbanas abrangentes ocorridas no mundo inteiro. Os novos instalaram-se nos shoppings, oferecendo conforto aos espectadores e moderna tecnologia de projeção.
O Éden, na rua grande, onde funciona hoje a Loja Marisa, fundado em 1919, era o cinema das grandes produções de Hollywood. Pertencia a Moisés Tajra, mas fora originalmente de Raul Serra Martins, Henrique e Guilherme Blum. O Roxy, também de Moisés, apresentava programação semelhante à do Éden. Agora é o último e só exibe filmes pornôs.
Para mim, o cinema mais marcante foi o Rialto, na rua do Passeio, perto do atual Socorrão. Ali, podíamos ver aos domingos episódios com o Super-Homem, Zorro, Tarzan, Roy Rogers e outros heróis dos seriados americanos, espécie de novela de televisão de hoje, com a diferença de se ter de esperar o desfecho das cenas de perigo só uma semana após, no capítulo do fim-de-semana seguinte.
Havia ainda o Rival, na rua Grande ao qual não me lembro de ter ido; o Rex, no João Paulo, que tinha como um dos sócios meu tio paterno João Moreira; o Rivoli, no Anil, ao lado da casa de meu tio materno Haroldo Raposo, de onde podíamos ouvir os diálogos em língua estrangeira, que não seriam entendidos nem em português pela péssima qualidade do som; e o cine Anil. Todos mortos, todos enterrados, contudo vivos em sessões contínuas nas nossas melhores lembranças.

11 de setembro de 2005

Nova Orleans

Jornal O Estado do Maranhão    
Nova Orleans foi, em 1718, como São Luís em 1612, fundada por franceses. Portanto, cento e seis anos depois de nossa cidade. O Estado de Louisiana, onde está localizada, originalmente foi possessão da França, vendida por Napoleão I aos Estados Unidos em 1803. É famosa pelo Bairro Francês com seu Mardi Gras, que lembra nosso Carnaval, pelo Dixieland jazz e pelo blues, por sua culinária e por ser o lugar de nascimento de músicos como Jelly Roll Morton e Louis Armstrong.
Construída às margens do Mississipi, ela foi atingida por um furacão batizado como Katrina. Poucas vezes houve uma ataque natural tão devastador numa área em que fenômenos desse tipo são comuns. Localizada abaixo do nível do mar em vários pontos, tem em redor diques para contenção do rio ao Sul e do lago Pontchartrain ao norte. Essa linha de defesa, contudo, não foi capaz de conter o imenso volume de água vindo dessas duas direções, quando as barreiras se romperam.
Os que não conseguiram sair de lá, em sua maioria negros, pobres, idosos e doentes, enfrentaram a pior agressão da natureza a uma zona urbana no Sul dos Estados Unidos. Em verdade, a Louisiana apresenta baixos níveis de renda por qualquer padrão de comparação. Mas, não preciso me alongar sobre detalhes conhecidos de todos. Menciono esses dados apenas para assinalar o contraste entre a alegria daquela comunidade, antes, e a violência da natureza, durante, e humana, depois, da passagem do Katrina.
São chocantes os relatos de saques, estupros, violência, assassinatos e todo tipo de conduta brutal e insensível surgida em meio a uma situação que por si só, independentemente do procedimento dos seres humanos envolvidos na catástrofe, já causava sofrimento e morte só pela simples ação da natureza. É o típico comportamento humano em situações-limite, tendo raízes na quota de reações instintivas partilhadas com os outros animais, nossos sócios na posse deste pequeno planeta.
O comportamento anti-social surgiu quase de imediato, logo nas primeiras horas depois da passagem do furacão. Viu-se uma brutal luta pela sobrevivência, como resultado de não haver freqüentemente alimentos e água o que, é certo, cria circunstâncias de ameaça direta às pessoas. Logo se formaram bandos de ataque e de defesa, passando a prevalecer, durante algum tempo, a lei do mais forte. Grupos se formaram com o fim de repelir as ameaças, líderes de um lado e do outro surgiram depressa. Os mais fracos procuraram a proteção dos mais fortes ao preço da submissão e renúncia a qualquer poder decisório próprio, compensados, afinal, pela possibilidade de sobrevivência.
A situação não teve análise cuidadosa da imprensa, apesar dos relatos explícitos, mas desacompanhados de imagens muitas vezes. A descrição de atitudes de solidariedade foi mais comum. Não se pode deixar de lembrar, no entanto, das ferozes lutas entre grupos étnicos em alguns países africanos, embora em proporção muito superior neste caso, pois envolvem a sobrevivência de populações inteiras, quando conceitos morais simplesmente são suspensos num ambiente em que regras de convivência pacífica desaparecem.
Quando a vida se vê sob ameaça, pela ausência tanto de meios que a sustentem no curto prazo, quanto de instituições com capacidade de controlar os mais primitivos instintos do ser humano, não diferentes, na essência, quanto a este aspecto, dos observados no mundo natural, a convivência civilizada sucumbe.
Nas sociedades pobres, em especial nas que não conseguem construir instituições capazes de lidar com a escassez, tal condição é ainda mais evidente, traduzindo-se, se não em guerra aberta o tempo todo, pelo menos em constante tensão social, como se vê em toda parte.
Os acontecimentos de Nova Orleans servirão de lição aos governantes?

4 de setembro de 2005

De Outro Mundo

Jornal O Estado do Maranhão   
Estão vendendo pacotes turísticos para a Lua. Não é ficção; é realidade. Daqui a cem anos, quem sabe, algum pesquisador de jornais antigos se espante de nos admirarmos, hoje, de feito que será banal na época dele, como esse de flutuar serenamente entre os astros. Após levar dois milionários americanos à Estação Espacial Internacional, em 2004, creio, a Space Adventures, empresa dos Estados Unidos, está oferecendo passeios à Lua. Os capitalistas que, como se sabe, são selvagens preocupados apenas em ganhar dinheiro em vez de se dedicarem ao bem-estar dos povos, miram um mercado formado por milionários de toda parte, sempre dispostos a consumir novidades da tecnologia. Portanto, a oferta de aventura poderá ter boa receptividade, pelo menos entre os ricos.
O preço é de US$ 100 milhões. A maioria de nós não é capaz de avaliar com exatidão o poder de compra de uma quantia desse porte. A montanha de dólares não dá direito, por enquanto, a um pouso na Lua. Trata-se, unicamente, de orbitá-la, o que é extraordinário, pois nem todo dia se chega perto de outros mundos, embora deles ouvindo histórias a todo hora nas CPIs.
Eu, se tivesse tanto dinheiro, não perderia a oportunidade. Partiria no primeiro vôo. Aí eu poderia verificar se de fato a Lua é feita de queijo suíço, se é por causa dele que os namorados vivem o tempo todo no mundo da Lua e, também, se lá ratos e ratazanas passeiam à vontade, como na Terra, ameaçando a sobrevivência do nosso planeta e do nosso satélite natural, caso, se confirme a suspeita de ser este feito de queijo.
Mas, a fascinação com a Lua pode ter outra origem bem diferente. Talvez nasça do brilho azul-dourado nas noites em que ela está grávida de luz do Sol, ou, em vez disso, como na famosa canção de Bart Howard, Fly me to the Moon (Leve-me à Lua), venha de se poder, no trajeto até lá, cantar entre as estrelas e, de passagem, ver como é a primavera em Júpiter e Marte. Como eu nunca seria um desses tesoureiros de partido político – por sinal homens dedicados ao ideal de garantir a governabilidade bem como de falar sempre a verdade quando são chamados a depor em alguma comissão de inquérito – como nunca seria tesoureiro, eu dizia, posso tão-somente imaginar o que de útil se poderia obter de passeios desse tipo e quais seriam as regras de segurança a serem obedecidas durante a viagem.
Uma destas seria, a restrição ao transporte de malas, sobretudo se elas contivessem dinheiro originário de empréstimos bancários feitos com a intenção de financiar clandestinamente campanhas políticas na Lua. Outra seria a proibição do uso de cuecas, mas só no caso das utilizadas na embalagem de dólares provenientes da venda de produtos hortigranjeiros, recursos por certo destinados a estabelecer ali o mesmo rentável negócio antes instalado em nosso planeta. Se permitíssemos transferências como essas, deixaríamos, é claro, de criar muitos empregos aqui para criá-los, vamos dizer, no Mar da Tranqüilidade. Eliminaríamos empregos terráqueos e os recriaríamos lunáticos. Não se pode concordar com isso em vista da taxa de desemprego cá embaixo, na Terra, mesmo nas economias mais ricas.
A utilidade das viagens é evidente. O depoente de CPI que mentisse seria obrigado a embarcar. Eu sei que a fila seria imensa, como as de pessoas em busca de emprego, vistas vez por outra na imprensa. Não haveria lugar para todos, mas não importa. Vôos extras seriam realizados de acordo com as necessidades. A maior vantagem, porém, seria outra. As passagens teriam apenas o trecho de ida. O seguinte seria em direção a um vizinho buraco negro que, por não deixar escapar de seu interior nem a luz, depressa os desintegraria. Assim, derretidos e derrotados essas criaturas de outro mundo, deles estaríamos por fim livres.

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