30 de maio de 2004

A China dos negócios

Jornal O Estado do Maranhão 
É antiga a expressão. Não faz muitos anos, as pessoas diziam, ao se referir a uma transação comercial em que tivessem obtido lucros fáceis: Fiz um “negócio da China”. Naturalmente, isso se aplica a situações de completo desequilíbrio no poder de barganha entre as partes, com vantagens para um dos negociantes apenas, em prejuízo dos outros.
Com história milenar, a China teve seus primeiros contatos com os povos ocidentais ­ durante a dinastia Ming (1368-1644). Na época desses governantes, o império chegou à sua maior expansão, alcançando o domínio da Coréia e da Mongólia. Um período de declínio seguiu-se, com origem no esgotamento de recursos nacionais, como resultado da luta com algumas potências econômicas e militares da Europa, com os japoneses e com os povos da Manchúria. Uma nova dinastia (1644-1912), de conquistadores manchus, se estabeleceu. Após uma breve fase de paz o império entrou em conflito com os ingleses, principalmente, mas também com outros povos do Ocidente, pela abertura do seu mercado interno, idéia rejeitada pelos chineses, levando a nova fase de enfraquecimento frente à superioridade militar das forças estrangeiras. Veio então a Guerra do Ópio.
O governo havia proibido a importação de ópio, proveniente principalmente de Bengala, mas autorizou a entrada anual de pequenas quantidades. Após algum tempo, porém, o imperador decidiu proibi-la definitivamente. Com a desculpa de ser o ato arbitrário, as tropas britânicas iniciaram uma guerra contra os chineses. Estes, como resultado, foram obrigados a assinar o Tratado de Nanquim que, para resumir, abria completamente o mercado chinês aos invasores, além de dar a eles a posse de Hong Kong. Mirando-se nesse exemplo, os Estados Unidos, França e Bélgica assinaram acordos semelhantes. A situação era de completa humilhação.
É possível que os negócios e as negociatas dos negociantes estrangeiros, nascidos, os negócios, de negociações desse tipo, feitas exatamente com a intenção de proteger e incentivar esse negocismo entre parceiros desiguais, tenham, dado no Brasil, origem à expressão “negócio da China”.
Em 1900, houve a chamada revolução dos Boxers, estimulada pelos governantes manchus, contra a modernização e ocidentalização. Depois da violenta repressão ao movimento, a China tornou-se, na prática, um território ocupado, inclusive pela Rússia e pelo Japão. Sua dinastia se desmoralizou e uma revolução interna proclamou a República em 1911. Somente com a revolução comunista de 1949, em seguida a um período de turbulências, ela recuperou plena autonomia e unidade.
Passadas as décadas iniciais de reconstrução do país, sob a ditadura do Partido Comunista, teve início um processo de adoção da economia de mercado. Dessa orientação, resultou um crescimento médio anual de seu PIB de mais de 9% nos últimos vinte e cinco anos e algumas características notáveis do ambiente econômico-institucional local. A carga tributária é reduzida, com apenas 14 impostos sobre empresas de fora, enquanto no Brasil são 80; a legislação referente ao capital estrangeiro é bastante liberal, sem burocracia desnecessária; a legislação trabalhista é simples, tornando menos custosa a exoneração e a contratação de mão-de-obra; a agricultura familiar é estimulada; os setores intensivos em mão-de-obra são prioritários e têm sido capazes de absorver milhões de trabalhadores; a participação das empresas estatais no PIB foi reduzida de 80%, em 1978, para 30% atualmente.
Uma das conseqüências, inevitável por sinal, do crescimento acelerado, foi o surgimento de um empresariado cada vez mais influente e de uma classe média em franco crescimento. Podemos estar diante de um fenômeno semelhante ao da Coréia do Sul. O país, tendo iniciado um processo de rápido crescimento nos anos cinqüenta, gerou uma classe média que foi um fator decisivo na derrubada da ditadura coreana. A propósito, a história vem mostrando que, onde essa classe é forte e ampla ou crescente em relação à população, a democracia tem melhores condições de prosperar, embora isso não seja uma regra inflexível, como tudo mais em história. Tomando o exemplo mais evidente, os Estados Unidos são ricos, não porque todos os seus cidadãos sejam ricos, mas porque, tendo uma distribuição de renda relativamente pouco concentrada, a maioria deles tem um nível de renda médio (inclusive a chamada classe operária é classe média), permitindo-lhes formar dentro de suas fronteiras um imenso mercado consumo.
A aproximação atual entre o Brasil e a China tem um grande potencial de benefícios mútuos. Prova disso são os investimentos chineses no Maranhão programados pela BaoSteel na área de siderurgia. Esses não são “negócios da China”. São negócios lucrativos para eles e para nós. É a China dos bons negócios.

23 de maio de 2004

Namoro nas prateleiras

Jornal O Estado do Maranhão 
Eu sou um freqüentador assíduo de livrarias. Muitas vezes, vou lá unicamente para namorar. Os livros, bem entendido, as mais recentes publicações. Eu chego, pego uma do meu agrado, vejo se é macia ou áspera, gorda ou magra, sinto a lombada, sua coluna vertebral, com a ponta dos dedos, dou um leve sopro na orelha, avalio a textura da pele, quero dizer, do papel, estimo, da cabeça aos pés, o tamanho, com meu olhar de profundo conhecedor, considero a palidez ou o rubor das caras, perdão, das cores e estimo furtivamente a adequação das formas, a simetria da composição, a suavidade das linhas e a possibilidade de ocorrência de defeitos à primeira vista ocultos, risco sempre presente em nossas escolhas, como me garantiu recentemente um amigo que acabara de se divorciar depois de passar anos acusando a ex-mulher de “falsidade ideológico-matrimonial”.
Só então, (ó mundo materialista, governado pelo vil metal ou pelo ainda mais vil plástico do cartão de crédito!) me lembro de que, para levá-la abraçada comigo, pensando em me deliciar durante um bom tempo, tenho de meter a mão no bolso. Quando meu orçamento está apertado, um drama reaparece. Infelizes momentos são esses! Com um esforço sobre-humano, com o fim de superar o vício, a compulsão de comprar esse objeto de tanto desejo frustrado, adio para outra ocasião sua posse. Começa então a abstinência dolorosa, a inquietação constante e a angústia interminável. Penso na livraria dia e noite, rondo incessantemente sua vitrine, controlando penosamente a vontade de entrar na loja; ou espio de longe e passo depois perto, olhando disfarçadamente pelos cantos dos olhos, fingindo não vê-la. Mas, sempre sou vencido pelo mal e acabo entrando. Só assim alivio o sofrimento, embora temporariamente, porque tudo recomeça com mais força em pouco tempo. Chega inevitavelmente a hora de – reluto em usar a palavra grosseira –comprar a publicação, com ou sem orçamento equilibrado, até a chegada de nova crise. Tem razão quem afirmou serem as livrarias lugar de danação para os portadores dessa síndrome do leitor compulsivo.
Pois descobriram agora que esse é um bom local de “busca de relacionamentos”. Quem estiver a fim de paquerar, de ficar, ou algo assim, segundo os especialistas, ou “entendidos”, deve ir a uma boa livraria. Como o leitor já sabe, os “entendidos” estão por toda parte, sempre dando opiniões definitivas sobre o assunto em discussão, tal como os de mesa redonda sobre futebol, na televisão.
Vejam só algumas dicas sobre a paquera livresca-intelectualesca. Procure as boas casas do ramo, porque lá tem muita gente, o que leva ao aumento das chances de encontrar um parceiro; vá às livrarias nos sábados pela manhã e no lançamento de livros, quando também a turma dá as caras; circule, de tal forma a poder avaliar com mais precisão suas chances de sucesso; verifique se o seu “alvo” não está acompanhado, com o fim de poder se aproximar à procura de um livro na prateleira perto dele; deixe cair um volume, para chamar sua atenção; procure ver se o olhar dele se dirige a você; comente com ele, como não quer nada, algum lançamento recente; convide-o a tomar um café; não deixe de aproveitar a oportunidade de trocar telefones.
Dessa lista, o leitor poderá facilmente deduzir que os “entendidos” não entendem mesmo de nada. Se entendessem, não aconselhariam ninguém a fazer essas coisas, velhíssimos, conhecidíssimos e desgastadíssimos truques de conquistadores caras-de-pau baratos aplicados nas livrarias e em qualquer outro lugar.
Eu, que não sou entendido em coisa nenhuma, vou continuar com meu tipo de namoro nas livrarias. Não permitirei nunca, no entanto, que os ensinamentos dos livros me tornem um entendido em “entendidos”. Entenderam?

16 de maio de 2004

Fora do ar

Jornal O Estado do Maranhão 
O leitor deve conhecer muito bem um tal de “sistema”, muitas vezes chamado de “computador”, entidade misteriosa, mas presente em qualquer lugar deste país. Ele é usado como desculpa para um bocado de coisas, sendo um cúmplice involuntário da ineficiência e irracionalidade burocráticas, assombrações de nossa vida diária, e do descaso e desprezo utilizados freqüentemente no tratamento dos usuários dos serviços públicos, bem como dos privados. Estes últimos, não se engane, não estão imunes a esses males, que plenamente justificam o uso do neologismo “kafkiano” como sinônimo de uma situação absurda.
Chega-se a uma agência bancária com uma pressa danada, porque nenhum de nós tem tempo sobrando, na ilusão de sacar rapidamente uns trocados numa daquelas máquinas eletrônicas de liberar dinheiro da nossa conta. Eis, então, pela milésima vez, aquela temida mensagem: “o sistema está fora do ar”. Ele está, sim, é fora de tudo. Não adianta pedir ajuda, porque ninguém pode fazer nada. O sistema não deixa. Ir ao cofre e pegar o dinheiro? Nem pensar. O sistema está ali com o objetivo de impedir mesmo um procedimento obsoleto como esse.
Ou um cidadão alugou um imóvel e, talvez, vendeu alguma coisa a um órgão público. Na hora do pagamento aparecem descontos indevidos. Vá ele ingenuamente reclamar. Alguém vai lhe jogar na cara a impossibilidade do sistema aceitar correções. Demita-se então um sistema tão burro e inconveniente como esse. O credor vai ter de penar durante um bom tempo para se livrar do problema, porque, na certa, as informações malucas não foram postas por ninguém no sistema, que as deve ter engolido sozinho, sem o auxílio de seres humanos. Convencer um ser como esse a mudar de idéia não deve ser uma tarefa fácil! De qualquer modo, é mais simples colocar a culpa por essas trapalhadas nele do que reconhecer o erro humano.
O certo é isto. De tanto sofrer com essa situação e de ouvir falar nos poderes fabulosos do sistema, um sujeito, brasileiro, mas de pais iraquianos, que acordou invocado, sem chegar, porém, a telefonar para Bush, como o nosso presidente faz, para preocupação do seu colega americano, resolveu ir ao banco onde guarda seus trocados, com o fim de conhecer esse autêntico ditador, esse verdadeiro Big Brother com seu sorriso de Mona Lisa falsificada, criado pela ficção de George Orwell, tão evidente nos dias de hoje.
Chegou de cara amarrada, disposto a brigar, e exigiu a presença do fulano. Queria explicações honestas sobre um sujeito tão poderoso. A conversa tinha de ser do tipo olho no olho, sem computadores pelo meio tentando atrapalhar algo de tal importância. “Mais tarde não serve”, disse quase gritando a um funcionário ansioso por ganhar tempo, enquanto pensava, ou melhor, não pensava no que dizer por causa do vazio em sua mente dominada pelo pânico.
Tentaram lhe dizer que o sistema era intangível, sem existência material, embora muito concreto. “Como intangível, se vocês vivem me dizendo que o sistema não permite isso, não permite aquilo, não autoriza nada? Afinal, qual a razão de vocês esconderem um indivíduo desse tipo, acostumado a dar essas ordens absurdas?” A agitação era grande, no sujeito e na agência. A situação era totalmente imprevisível. Jamais seria autorizada pelo sistema, caso tivessem pedido a opinião dele. Deu trabalho, mas conseguiram finalmente acalmar o reclamante e levá-lo para casa.
Estressado, resolveu pegar a “patroa”, como ele dizia, e relaxar na ilha de Jersey, paraíso fiscal onde não tinha nenhuma conta secreta, como o ex-prefeito de São Paulo. Na agência de viajem, pediu duas reserva no próximo vôo. A atendente olhou no computador e anunciou sorridente e quase orgulhosa: “O sistema está fora do ar, senhor”.

9 de maio de 2004

Incertezas

Jornal O Estado do Maranhão 
Para as crianças de classe média como eu, nos anos cinqüenta no distante bairro do Areal, depois Monte Castelo, era um grande acontecimento ficar doente de cama, se isso não indicasse algo grave. Uma gripe, uma queda, uma garganta inflamada, como essa a me incomodar agora, ao nos prender em casa, depressa tornavam realidade nosso desejo não tão secreto de faltar às aulas pelo menos por um dia. Nessas ocasiões, meu pai pegava no centro da cidade um dos carros de praça da época, no Posto Vitória, telefone 1400, com seus choferes, hoje taxistas, conhecidos de toda na cidade, com seus belos e pesados carros importados, e trazia o médico pediatra (as médicas eram raras ou inexistentes) para ver os filhos que deixara sob os cuidados da minha mãe, que os considerava uns santos, ao contrário dos pequenos amigos deles, legítimos capetas em forma de gente.
Eu via nos médicos uma aura mágica e indefinível. Não me passava pela cabeça continuar doente por mais de vinte e quatro horas depois da visita daquele salvador esperado ansiosamente. O ritual daquele sacerdote da vida, de pedir para eu esticar a língua, o pedido já me dando engulhos, como ainda hoje me dá, só de pensar na palheta que ele ia usar para baixar minha língua e olhar lá dentro de minha garganta com a ajuda de uma lanterninha, apalpar em seguida o meu ventre ou dar leves toques com a ponta dos dedos de uma mão sobre a outra espalmada naquela região, a fim de, pelo som da pancada, avaliar alguma coisa totalmente fora do alcance de minha compreensão, inspecionar os meus olhos avermelhados e lacrimosos, colocar o termômetro nas minhas axilas, não sem antes sacudi-lo, eu não sabia para quê, segurando-o ente o polegar e o indicador, tudo isso era sinal de coisa boa por vir, em meio do abatimento físico e o desânimo daqueles momentos. A recuperação só poderia ser breve, eu pensava.
Quantas vezes dr. Amaral de Mattos foi à nossa casa! Cinqüenta anos depois eu fui eleito, pouco tempo depois de sua morte, para a Academia Maranhense de Letras, da qual ele veio a se tornar membro em 1995. Ele chegava com seu ar sério, carregando o estetoscópio e outros instrumentos de trabalho na sua pequena maleta de médico, para impor-nos suas mãos e sua ciência, como ele fez a várias gerações de maranhenses, e realizar o milagre da cura nos nossos organismos jovens de então. Era do farmacêutico a tarefa de ler a receita, decifrando a letra quase ilegível, tão misteriosa quanto o latim da missa ali perto, na igreja da Conceição, onde era pároco o padre Ribamar Carvalho, membro também, a partir de 1959, da Academia. O mistério daquele manuscrito era mais uma evidência da sabedoria do dr. Amaral.
O tempo passou, as práticas mudaram. Implantou-se em nosso país um sistema de saúde que massacra tanto o médico, psicológica e financeiramente, quanto o doente, levando a relação entre esses dois pólos humanos do sistema a um nível de tensão prejudicial a todos. No entanto, os médicos têm demonstrado, como regra geral, uma capacidade incomum de manter um comportamento profissional irrepreensível do ponto de vista ético. Eles têm lutado com o fim de manter intacta a ameaçada dignidade da profissão. Mas, como toda regra deve ter exceções para confirmá-la, não me surpreenderia em achar uma delas, como de fato achei há pouco. O leitor logo irá entender por que tomei a liberdade de usá-la como exemplo, mesmo tendo um caráter pessoal, e me desculpará.
Minha mãe, Maria da Conceição Raposo Moreira, hoje com 82 anos de idade, não mais espera com ansiedade e esperança o pediatra chegar para curar seus filhos. A doente desta vez é ela. Doente do tempo que, mais dias menos dias, a todos adoece, e também de tudo daquilo que a vida pode adoecer em nosso corpo e em nossa alma. Está, dessa forma, internada na Unidade de Terapia Intensiva – UTI, do Hospital Português. Na segunda noite de sua internação, meu irmão José Cursino ligou para lá, à noite, a fim de se informar sobre o estado dela. Posto em contato telefônico com o médico de plantão, Ariosvaldo Gaioso, recebeu dele em tom de impaciência e irritação escassas informações. Ele afirmava que não adiantaria dar muitas explicações, porque Cursino não poderia compreender mesmo e interrompeu a conversa, desligando o telefone. Esse médico pensa tudo saber. Mas, em verdade, dá a impressão de não saber de nada e de supor nos outros sua própria capacidade de entender apenas dos aparelhos e tubos de uma UTI. Será estranho para ele tudo que é humano? Ele parece não entender de gente, não entender de vida, não entender de morte. Saberá como tratar alguém – digo aqui no sentido de curar, pois no outro já vimos que não –, numa hora de angústia, de ameaça à vida, como são essas nos hospitais? Quem poderá jamais responder com certeza?

2 de maio de 2004

Se não agora, Quando?

Jornal O Estado do Maranhão 
A revista Veja publicou na semana passada uma reportagem sobre corrupção e desperdício nos municípios brasileiros. A chamada de capa referia-se a “Uma Praga Nacional”. Descontados os possíveis equívocos factuais e um ou outro exagero, penso que a revista reflete com bastante fidelidade a visão e as imagens que o povo brasileiro, em sua grande maioria, tem das administrações municipais. Raramente um mês passa sem se ler na imprensa notícias sobre irregularidades nelas, de norte a sul do Brasil, no Executivo e no Legislativo.
As denúncias referem-se tanto às grandes cidades, como São Paulo, quanto às menores, de todas as regiões do país. Os prefeitos, presidentes de Câmaras e vereadores acusados têm apresentado em sua defesa explicações folclóricas, algumas, da mais autêntica desfaçatez, outras. Claro, os maus dirigentes não são a maioria. Sendo, porém, minoria atuante e não tão pequena assim, acabam revelando à sociedade algo de podre nesse reino.
O prefeito de Ponta de Pedras, no Pará, era um sujeito bastante azarado. Digo era porque seu mandato acabou sendo cassado. Ele foi assaltado três vezes ao transportar o dinheiro da folha de pagamento de seu município. Um azar como esse só é comparável à sorte exibida há poucos anos, de um certo, ou incerto, presidente da Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados. O deputado afirmou, sem lhe tremer um escasso músculo da cara, que ficara rico por ter ganho diversas vezes na loteria. Aliás, seus músculos não poderiam mesmo tremer porque um cara-de-pau como ele não tem músculo nenhum. Mas, o prefeito, se não era desonesto, pelo menos era pouco inteligente, visto não aprender com o erro. Um colega dele, de Imigrantes, no Rio Grande do Sul, tinha uma firma que venceu dez concorrências durante sua administração, prova não da competência da empresa, mas do seu dono em criar esquemas de autobeneficiamento com o dinheiro alheio. A revista relaciona ainda outros desvios, principalmente nas áreas de saúde e educação, neste último caso no Fundo de Desenvolvimento da Educação – Fundef.
Haverá sempre quem argumente com a proximidade entre os eleitores e os dirigentes para justificar a permanente exposição negativa destes. Esse convívio tem sido característico das pequenas cidades, que são a maioria no Brasil, embora não das grandes e médias. Ou alguém poderá dizer que as críticas divulgadas pela imprensa têm origens em disputas políticas locais, sempre radicalizadas. São esses, porém, argumentos mais do tipo “outros também roubam e desperdiçam” do que do tipo “eu não roubo nem desperdiço”. São justificativas que deveriam servir antes como aviso para a tomada de cuidados na aplicação dos dinheiros públicos. É inócuo desqualificar o acusador, como geralmente tentam fazer os acusados, mas não dar resposta às acusações. Afinal, quem não deve não teme, ou não deveria temer.
Desde 1995, os recursos destinados às municipalidades pelos governos federal e estaduais aumentaram quase 55% em resposta às pressões por mais descentralização. Por sinal uma das particularidades do nosso sistema municipal é essa, de ele receber uma percentagem alta da arrecadação nacional, em comparação com a maioria dos países. Como não se investiu, simultaneamente ao aumento dos repasses, na criação de mecanismos modernos e eficientes de fiscalização, o valor dos recursos desviados aumentou. De acordo com o Tribunal de Contas da União, o desvio era em média R$ 550 mil por prefeito desonesto em 1999. Chegou a R$ 2,69 milhões em 2003. Essa “arrecadação” tão farta nas algibeiras desse pessoal cresceu, portanto, quase cinco vezes no período. Não duvido que continue a crescer. Isso em um momento de encolhimento do dinheiro nos bolsos dos outros dos brasileiros, com grande queda da sua renda per capita.
Entre os mecanismos de controle da aplicação de recursos públicos, foram criados conselhos em cuja composição deveria haver representantes comunitários. Dessa forma, elas poderiam exercer sua função de fiscalização. Na prática, muitos prefeitos os têm manipulado sem nenhum pudor, neles colocando como membros funcionários da própria prefeitura, secretários municipais e, de modo geral, pessoas de sua confiança. Houve, até, o caso de Pau d’Arco, no Tocantins, onde o conselho é presidido por uma secretária municipal que, por coincidência, é esposa do prefeito.
Haverá esperança de erradicação da pobreza neste país, quando a base da nação, o município, está contaminada por tantas distorções e os princípios morais mais corriqueiros, de fundamental importância para o crescimento de um povo, como os de honestidade, responsabilidade e seriedade no trato da coisa pública são apenas retórica vazia, sem preocupação com o bem-estar das comunidades?
Precisamos mudar. Se não agora, quando?

Machado de Assis no Amazon