29 de julho de 2012

Lula

         Jornal O Estado do Maranhão

          Tão frequente quanto verdadeiro é dizer-se que a perda de lembranças compartilhadas com amigos e parentes queridos que nos precederam no retorno ao nada é sinal de estarmos envelhecendo. Este processo não é apenas ou principalmente físico e carrega esse dano irreparável às referências em comum, à possibilidade de (re)viver, de sentir o sabor especial de ser jovem numa conversa em torno de tudo e de nada, e de recordar aventuras da juventude, sempre tão presentes na memória. Quantas vezes ao rememorar imprecisamente algo vivenciado em companhia dessas pessoas anos atrás tive o impulso de perguntar a um tio, uma tia, ao meu pai ou minha mãe um detalhe esquecido (“como foi mesmo aquela vez que a gente...”), apenas para, no momento seguinte, sentir o vazio criado pela consciência repentina da ausência definitiva deles. Somente eles poderiam me fazer reviver com nitidez minha própria vivência já quase apagado em mim. Machado de Assis afirmou, a esse respeito, quando Joaquim Serra morreu em 1888, que no féretro do amigo ia um pedaço de sua juventude. Assim agora comigo com a morte de meu irmão Luís Carlos Raposo Moreira.
          No dia 27 de outubro de 2002, publiquei uma crônica aqui mesmo neste jornal e usei seu nascimento como referência na determinação do ano da mudança com nossos pais para o Monte Castelo, bairro localizado no então eixo de expansão urbana de São Luís: “Falava [a narrativa] [...] da morte de meu avô materno, Luís de Melo Raposo, poucos dias antes do nascimento, em dezembro de 1949, de meu irmão Luís Carlos. Ele devia ter uns três anos quando nos mudamos.” Falei do começo de sua vida e agora falo do fim.
          Lula, assim o chamávamos. Temperamento afável e afetuoso, revelou muito cedo talento especial de se relacionar com o sexo oposto. Enquanto os mais velhos de nós, eu em especial, e os nossos amigos de juventude se afligiam em penosas aproximações com as meninas, que muitas vezes espreitávamos tão só de longe, com vontade mas sem coragem de chegar perto, ele, de posse de um sorriso maroto e simpático, fazia todos parecerem pobres amadores em esforço permanente de acertar o passo com elas. Já adolescentes, às vezes chamava José Ricardo, o mais novo, e convidava: vamos ali. E iniciava, ares de professor benevolente e bonachão, uma longa jornada por casas de mais de uma amiga especial. Naturalmente, seu acompanhante era recebido com enfáticas manifestações de amizade e elogios, com direito a tratamento de rei.
          Lula cresceu, escolheu a medicina como formação profissional e teve uma carreira de conceituado anestesista em São Luís, tendo feito residência médica no Rio de Janeiro. Estimado pelos colegas de profissão, deixa entre eles incontáveis amigos. Em duas cirurgias a que tive de me submeter, ele esteve presente, olhar atento, deixando-me mais tranquilo do que eu estaria sem ele em ambas as ocasiões.
          Eu nunca deixei de admirar sua serenidade perante as complicações de saúde contra as quais lutava e que acabaram levando-o para sempre. Testemunhei as descrições que fazia das alternativas terapêuticas aplicáveis a seu caso como se falasse de outro paciente, num tom otimista, mas não irrealista. Como sabia da gravidade de seus males, percebe-se a dimensão gigantesca de sua coragem. Preocupava-se, de toda maneira, não só com o futuro de seu filho, também Luís Carlos, de 8 anos, cuja adoção proporcionou a ele e sua mulher, Tânia, uma experiência transformadora, mas também com as consequências emocionais sobre o garoto pela morte do pai. No entanto, com respeito ao amparo mais à frente do menino, confiava nela, com quem viveu por quinze anos.
         Do primeiro casamento, deixou três filhas.
           Ele costumava dizer aos mais próximos que, depois de tentativas às vezes infrutíferas bem como de renovadas e frustrantes buscas, finalmente se sentia feliz na sua união com Tânia e tinha certeza de ser também o esse o sentimento dela. Não será isso, afinal, o sentido da vida: a busca da felicidade e da paz consigo mesmo e com os semelhantes? Paz que certamente o acompanhará em seu descanso eterno.

15 de julho de 2012

(Des)acordos ortográficos: brevíssima história

Jornal O Estado do Maranhão


              Do século XIII até meados do século XVI a ortografia do galego-português era predominantemente fonética. Com o aumento dos estudos humanísticos a partir daí bem como do prestígio da etimologia greco-romana das palavras do português, inverteu-se a tendência e a escrita passou a ser, até o início do século XX, etimológica ou pseudoetimológica. 
          A Academia Brasileira de Letras fez um experimento em 1907 com a simplificação da escrita nas suas publicações, reformulado em 1912 em função da resposta negativa dos usuários. A tentativa não vingou.
          A primeira grande reforma foi implantada em 1911 em Portugal, quando o país simplificou a escrita, deixando de priorizar a ortografia pseudoetimológica em favor da escrita fonética. Foi como um retorno aos fundamentos da ortografia da Idade Média, mas com aplicação mais uniforme em vista da atuação da Academia de Ciências de Lisboa. Em 1915, a ABL tentou seguir o modelo português de 1911, mas voltou atrás em 1919. Em 1929, fez nova tentativa que também não funcionou.
          O primeiro Acordo entre Brasil e Portugal foi aprovado em 1931, mas não conseguiu também a desejada unificação o que fez com que, na Constituição de 1934, fosse incluído um dispositivo determinando a volta da ortografia vigente até 1891. A tanto podem chegar os dirigentes brasileiros! Houve tão grande resistência que a Constituição do Estado Novo, de 1937, trouxe de volta a de 1931, que de qualquer maneira não havia sido posta em prática. Em 1943, foi celebrada a Convenção Ortográfica entre o Brasil e Portugal. No entanto, a persistente divergência nos Vocabulários das Academias dos dois países, levou à Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945. Esta foi adotada apenas em Portugal. Aqui, em 1971, e em Portugal, em 1973, adotaram-se leis que reduziram as divergências, persistindo, porém, apesar da aproximação, sérias diferenças. Um Acordo obtido em 1975 não chegou sequer a ser aprovado oficialmente nem lá nem cá.
          O processo, que tinha como objeto por fim a toda essa confusão continuou no encontro dos países lusófonos, promovido pelo então presidente José Sarney em 1986 no Rio de Janeiro, ocasião em que foi aprovado o Memorando Sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, inviabilizado, todavia, em sua aplicação, pela reação contra ele em Portugal, mas que se tornou a base do atual Acordo. Finalmente em 1990, em reunião em Lisboa, este de agora.
          Como dito na Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, ao se analisar o conteúdo dos acordos anteriores, o de 1945 e o de 1986, este base do atual, vê-se que seu objetivo era a imposição de uma unificação ortográfica absoluta ou quase. O de 1986 deveria obter tal resultado em 99,5% do vocabulário geral da língua. Sua principal proposta era de simplificação radical no sistema de acentuação gráfica, com a eliminação dos acentos nas palavras proparoxítonas e paroxítonas. Foi rejeitada pela opinião pública portuguesa. O de 1945 pretendia chegar a 100%. Os brasileiros recusaram-no porque, ao propor a manutenção das consoantes mudas ou não articuladas, ele promoveria a restauração dessas letras no Brasil, onde havia muito tinham sido eliminadas. Tentava também resolver a divergência de acentuação das vogais tônicas e e o, seguidas das consoantes nasais m e n, das palavras proparoxítonas, pela adoção da norma portuguesa. Exemplo: Antônio, no Brasil, e António, em Portugal. O timbre do o, fechado no Brasil e aberto em Portugal passaria a ser grafado, aqui e lá, somente com o acento agudo (António), sob o argumento de que ele assinalaria tão só a tonicidade e não o timbre da vogal. Manteve-se agora a dupla grafia: Antônio para nós e António para os lusitanos. Aliás, por que não se deveria adotar duplas grafias no âmbito da lusofonia, se elas são adotadas internamente tanto no Brasil, como no caso de sinóptico e sinótico e de diversas outras palavras, como em Portugal?
          Prevaleceu o bom senso e a fonética, que é o princípio orientador da reforma. Cerca de 98% da ortografia está unificada. O ótimo, como se sabe, é inimigo do bom.

1 de julho de 2012

Contra a corrente: golpe não houve

Jornal O Estado do Maranhão        

 Ora, vejam só! Os paladinos da democracia, Hugo Chávez (Venezuela), Cristina Kirchner (Argentina), Evo Morales (Bolívia) e Rafael Correa (Equador), estão clamando aos céus pelos princípios democráticos, muito bem protegidos em seus próprios países, sob a condição de os opositores não criticarem os governos deles. A imprensa é ameaçada e intimidada todo dia, como sabem os jornais da Argentina, as emissoras de televisão da Venezuela e várias instituições e empresas do Equador e Bolívia. Nisso tudo, esses gigantes da liberdade de imprensa são apoiados pelo Brasil, que nessa história tem sido liderado pela Argentina e Venezuela em vez de liderar a diplomacia sul-americana.             A história é esta. O compromisso democrático dessa turma é tão arraigado que três deles Cristina, Chávez e Rafael retiraram seus embaixadores no Paraguai, por este ter cometido o crime de seguir estritamente a Constituição do país, tirando do governo o agora ex-presidente Fernando Lugo. São os mesmos que desejam tirar o Paraguai do Mercosul e incluir no bloco a Venezuela do democrata Chávez. Quem quiser conhecer a Constituição paraguaia, poderá consultar o endereço http://www.tsje.gov.py/constitucion-nacional.php. O Brasil e a tal da Unasul queriam que ela fosse uma cópia da do Brasil? Pois ela não é nem estabelece prazos para o julgamento do presidente da República. Se não os há, paciência. Reformem-na já. Antes, leiam-na e me mostrem a cláusula violada.
          Quando um Fernando brasileiro, o Collor, sofreu impeachment ninguém se lembrou de classificar a decisão do Congresso brasileiro como golpe. A Constituição foi seguida ao pé da letra. Atenção, não a do Paraguai, a do Brasil. Afinal, o cara era um “direitista” e direitistas, como se sabe, são maus; esquerdistas, bonzinhos, tanto que mataram milhões de pessoas na antiga União Soviética e seus satélites. Imaginem agora se algum partido de oposição, no início do mensalão, tivesse proposto o impeachment do “esquerdista” Lula. Pelos deuses do Olimpo, onde Lula é uma espécie de deus de todos os deuses, mesmo com as mancadas político-eleitorais que vem dando ultimamente desmentindo sua fama de intuitivo genial, a proposta seria taxada de coisa de imprensa golpista, de quem desejava um terceiro turno e outras bobagens.
          O bispo garanhão, suspenso das ordens por ter se dedicado entusiasticamente ao preceito bíblico do “crescei e multiplicai-vos”, foi mandado embora por 73 deputados de um total de 74 (um mísero voto contra a destituição) e por 39 senadores, entre 43. Francamente, ele mesmo aceitou o julgamento político, seu advogado considerou legítimo o processo de cassação, o Tribunal Eleitoral legitimou a posse do vice, a imprensa não foi censurada, eleições livres serão realizadas, a Suprema Corte de Justiça do Paraguai rejeitou uma ação de inconstitucionalidade para anular a destituição, o povo não apoiou o o réu clerical e o país está em paz. Onde, o golpe?.
           Mais uma vez a diplomacia brasileira se mete numa situação de onde só sairá derrotada. Lembram-se da confusão em Honduras? Um chapelão com ares de ator mexicano de filmes B, foi para a embaixada brasileira – em verdade, quase convidado – e de lá comandou a “resistência” contra um suposto golpe em suas pretensões presidenciais. O homem comeu e bebeu do bom e do melhor, deu entrevistas e a coisa deu em nada porque não havia golpe nenhum. O isolamento do país durou um ano e pouco. Depois, tudo voltou ao normal. Assim, agora. Não demora muito, ficará só o ridículo.
          Vejo na Folha de S. Paulo o jornalista Clóvis Rossi recomendar ao governo brasileiro estrita vigilância das eleições no Paraguai para “[..] para evitar que métodos e dinheiros pouco limpos levem ao poder uma figura sob suspeita em um vizinho e sócio”. É de pasmar a recomendação: o país do mensalão e das sobras de campanha de Collor vigiar dinheiro sujo nas eleições na casa alheia? Afinal, o Paraguai é quintal do Brasil? E se os Estados Unidos fizessem o mesmo no Brasil a fim de evitar outros mensalões? Algumas figuras barbudas jamais chegariam à Presidência.

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