Lula
Jornal O Estado do Maranhão
Tão frequente quanto verdadeiro é dizer-se que a perda de lembranças compartilhadas com amigos e parentes queridos que nos precederam no retorno ao nada é sinal de estarmos envelhecendo. Este processo não é apenas ou principalmente físico e carrega esse dano irreparável às referências em comum, à possibilidade de (re)viver, de sentir o sabor especial de ser jovem numa conversa em torno de tudo e de nada, e de recordar aventuras da juventude, sempre tão presentes na memória. Quantas vezes ao rememorar imprecisamente algo vivenciado em companhia dessas pessoas anos atrás tive o impulso de perguntar a um tio, uma tia, ao meu pai ou minha mãe um detalhe esquecido (“como foi mesmo aquela vez que a gente...”), apenas para, no momento seguinte, sentir o vazio criado pela consciência repentina da ausência definitiva deles. Somente eles poderiam me fazer reviver com nitidez minha própria vivência já quase apagado em mim. Machado de Assis afirmou, a esse respeito, quando Joaquim Serra morreu em 1888, que no féretro do amigo ia um pedaço de sua juventude. Assim agora comigo com a morte de meu irmão Luís Carlos Raposo Moreira.
No dia 27
de outubro de 2002, publiquei uma crônica aqui mesmo neste jornal e
usei seu nascimento como referência na determinação do ano da mudança com
nossos pais para o Monte Castelo, bairro localizado no então eixo de expansão
urbana de São Luís: “Falava [a narrativa] [...] da morte
de meu avô
materno, Luís de Melo Raposo, poucos dias antes do nascimento, em
dezembro de 1949, de meu irmão Luís
Carlos. Ele devia ter
uns três anos
quando nos
mudamos.”
Falei do começo de sua vida e agora falo do fim.
Lula, assim o chamávamos. Temperamento afável e afetuoso, revelou muito
cedo talento especial de se relacionar com o sexo oposto. Enquanto os mais
velhos de nós, eu em especial, e os nossos amigos de juventude se afligiam em
penosas aproximações com as meninas, que muitas vezes espreitávamos tão só de
longe, com vontade mas sem coragem de chegar perto, ele, de posse de um sorriso
maroto e simpático, fazia todos parecerem pobres amadores em esforço permanente
de acertar o passo com elas. Já adolescentes, às vezes chamava José Ricardo, o
mais novo, e convidava: vamos ali. E iniciava, ares de professor benevolente e
bonachão, uma longa jornada por casas de mais de uma amiga especial.
Naturalmente, seu acompanhante era recebido com enfáticas manifestações de
amizade e elogios, com direito a tratamento de rei.
Lula cresceu, escolheu a
medicina como formação profissional e teve uma carreira de conceituado
anestesista em São Luís, tendo feito residência médica no Rio de Janeiro. Estimado
pelos colegas de profissão, deixa entre eles incontáveis amigos. Em duas
cirurgias a que tive de me submeter, ele esteve presente, olhar atento, deixando-me
mais tranquilo do que eu estaria sem ele em ambas as ocasiões.
Eu nunca deixei de
admirar sua serenidade perante as complicações de saúde contra as quais lutava
e que acabaram levando-o para sempre. Testemunhei as descrições que fazia das alternativas
terapêuticas aplicáveis a seu caso como se falasse de outro paciente, num tom
otimista, mas não irrealista. Como sabia da gravidade de seus males, percebe-se
a dimensão gigantesca de sua coragem. Preocupava-se, de toda maneira, não só
com o futuro de seu filho, também Luís Carlos, de 8 anos, cuja adoção proporcionou
a ele e sua mulher, Tânia, uma experiência transformadora, mas também com as
consequências emocionais sobre o garoto pela morte do pai. No entanto, com
respeito ao amparo mais à frente do menino, confiava nela, com quem viveu por
quinze anos.
Do primeiro casamento,
deixou três filhas.
Ele costumava dizer aos mais próximos que,
depois de tentativas às vezes infrutíferas bem como de renovadas e frustrantes
buscas, finalmente se sentia feliz na sua união com Tânia e tinha certeza de ser
também o esse o sentimento dela. Não será isso, afinal, o sentido da vida: a
busca da felicidade e da paz consigo mesmo e com os semelhantes? Paz que certamente
o acompanhará em seu descanso eterno.
Comentários