11 de maio de 2003

No reino da mentira

Jornal O Estado do Maranhão 
Quantas vezes já não se ouviu dizer que a primeira vítima das guerras é a verdade? Essa afirmação, de tão repetida, tornou-se um lugar-comum. Mas, a fim de não passarmos por mentirosos, devemos admitir que se mente do primeiro ao último disparo, do primeiro ao último morto. Esse empenho na mentira não se dirige ao inimigo. Ele nunca acredita nela. A mentira visa ao próprio povo cujos governantes as patrocinam. Mente-se mais para os amigos do que para os inimigos, como um golpe psicológico destinado a manter a coesão interna em sociedades engajadas em guerras. Recuos são transformados em avanços, derrotas em vitórias, covardia em heroísmo, humilhação em exaltação, ódio em amor, desonra em honra, e assim por diante.
Eu achava que todas os embustes bélicos, se assim se pode classificar as mentiras de época de guerra, já tinham sido inventados. Eis então que um sujeito resolveu inovar durante o recente ataque dos Estados Unidos contra o Iraque. Certo, ele não pertencia ao exército, não era presidente, ditador, Ministro da Guerra ou qualquer outra coisa de nenhum desses dois países. Não falava sequer inglês ou árabe. Não tinha também, creio, um bigode ao estilo Saddan Hussein nem usava chapéu de caubói do Texas, como Bush. Mas não se pode deixar de reconhecer sua inventividade e dar-lhe crédito por sua contribuição ao estoque de mentiras de tempos de conflitos armados.
É o seguinte. Phesheya Dube, correspondente de uma rádio da Suazilândia, dizia estar transmitindo “ao vivo de Bagdá”, durante a guerra. O apresentador da rádio, Moses Matsebula, ao falar com o repórter durante as transmissões, estava sempre demonstrando preocupação com a segurança do colega. Chegou, até, a aconselhá-lo a “procurar uma caverna próxima para ficar a salvo dos mísseis”. Aí, descobriram que a transmissão era feita ao vivo, sim, mas de uma pequena sala do Parlamento da Suazilândia.
Não sei se o leitor já ouviu falar desse país cheio de montanhas. Ele está localizado no sul da África, entre Moçambique e a África do Sul e tem uma população aproximada de um milhão de habitantes. É uma monarquia absoluta, a última da África, governada por Mswatti III, de 33 anos, no poder desde 1986. Seu pai, o rei Sobhuza II, ocupou o trono por quase sessenta e um anos. Tal longevidade absolutista faz Fidel Castro parecer bem modesto em suas pretensões à eternidade.
O país tem algo de exótico. Por exemplo, o atual rei impôs uma lei de abstinência sexual, até 2006, para as mulheres virgens e menores de idade, supostamente para combater a aides que atinge um quarto da população adulta.  O ministro da Justiça tem viajado pelo país a fim de fazer palestras sobre a melhor forma de enquadrar adolescentes rebeldes. A epidemia poderá levar, em breve, à diminuição da expectativa de vida dos atuais sessenta anos para apenas trinta e oito.
Mas como ninguém é de ferro, sendo justo a monarquia ser preservada através de sua descendência, o próprio rei segue regras, digamos, mais liberais. Ele tinha, até dezembro de 2002, nove esposas e queria se casar com a décima, Nozipho Shabangu, candidata da Suazilândia a miss Mundo, não se sabendo então se ela estava a par das boas intenções do monarca. Alguns meses antes, ele havia sido acusado de seqüestro da nona esposa pela mãe dela, numa atitude inédita, o que mais uma vez prova que mãe é mãe, merecendo todas as homenagens do dia de hoje. Da acusação, resultou uma pesada multa no valor de uma vaca.
Diante disso tudo, não será surpresa saber que o rei tenha criado seu próprio canal de televisão. Considerando o comportamento real de antes, esse canal irá mentir o tempo todo. Ora, se os governos dos Estados Unidos e do Iraque mentem, o da Suazilândia, mais pobre, mas não menos tendente à mentira, mente e todos mentem, porque aquele simples “correspondente” em Bagdá, não poderia mentir também? Afinal, ele mentia por vaidade. Seu governo e os outros mentem com a intenção de humilhar ou matar seres humanos.

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