17 de agosto de 2003

Praça da alegria?

Jornal O Estado do Maranhão  
Era chamado Largo da Forca ou da Forca Velha no fim do período colonial. Foi designado, depois de algum tempo de uso, provavelmente em 1815, como o único lugar em São Luís para o cumprimento das penas capitais. (O Bequimão foi executado em outro local, na praia de Trindade, e, segundo Antônio Lopes, “perto do Palácio dos Governadores, do forte da cidade e do Colégio dos jesuítas”, sendo este o Colégio de Nossa Senhora da Luz, construído onde atualmente se encontra o Palácio Arquiepiscopal).
Apropriadamente, o Largo ficava perto do Cemitério Municipal, embora os enforcados não devessem lá ser enterrados. De acordo com César Marques, esse cemitério estava situado no fim da rua Grande, de frente para a do Passeio, em terreno cedido pela Câmara Municipal à Santa Casa de Misericórdia, nas proximidades do Cine Passeio de nossos dias.
Carlos de Lima informa que o largo virou praça da Alegria em 1849, depois praça Sotero dos Reis em 1868, praça Colombo em 1890, praça 13 de Maio em 1929, praça Saturnino Bello em 1951 e praça Coronel Manoel Inácio em 1963. Mas, apesar de todas as mudanças oficiais, ninguém deixou de chamá-la de praça da Alegria, como se todos quisessem apagar a lembrança dos enforcados ali.
Pois foi nesse lugar de morte nos tempos antigos, mas, ironicamente, de alegria no nome teimosamente mantido pelo povo durante mais de um século e meio, que me deparei pela primeira vez, angustiadamente, como outras vezes mais tarde, com a vida fora do mundo familiar de classe média da São Luís do começo dos anos cinqüenta. Eu ia aprender a ler e, simultaneamente, descobrir a luta pela própria sobrevivência longe da proteção dos pais. Na praça funcionava, como ainda funciona, o Jardim de Infância D. Francisco, assim chamado em homenagem a D. Francisco de Paula e Silva, bispo do Maranhão entre 1907 e 1918 e autor dos Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Anteriormente, conforme me informam Fernando Silva e Eduardo Lago, pessoas de uma geração mais antiga do que a minha, o jardim se chamara Decroly. Descobri que era por causa do educador belga Ovide Decroly.
Nessa época, o prédio, em plano um pouco acima do da rua, era todo aberto, tendo apenas muretas de meio metro em todo seu perímetro, sem as grades do piso ao teto de agora, que funcionam como muros, na vã tentativa de defender as crianças e seus professores contra a violência onipresente nas cidades brasileiras.
As pequenas cadeiras me pareceram desde o primeiro dia um pouco altas em relação às mesas, dando-me a sensação de estar exposto aos olhares do mundo. Disso eu me lembro muito bem. Mas, quem poderá dizer a razão de um detalhe aparentemente tão desimportante ficar-me tão vivo na lembrança mais de cinqüenta anos depois? Seria o desamparo em que eu me sentia, por estar fora de um ambiente conhecido, o motivo dessa lembrança persistente? Precisaria eu agarrar-me a alguma coisa, ainda que apenas com os olhos e com a alma, a fim de ter, naquelas horas, uma referência conhecida, fixando-a, no entanto, por misteriosas voltas da mente humana, para sempre na memória, a fim de não mais me sentir abandonado em meio a tantas coisas novas e desconhecidas?
Eu sentava nas cadeiras, junto aos colegas, levado pacatamente pelas professoras, e ficava quieto, desejoso de não ser perturbado até a hora de voltar ao abrigo da minha casa. Mas, apesar do retraimento, eu prestava bastante atenção às letras que as professoras iam nos mostrando e fascinava-me com elas, bem traçadas, com retas e curvas inesperadas, e, intuitivamente, sem fazer alarde, sem dizer nada, ia fixando-as rapidamente na memória. Foi uma das maiores e mais agradáveis descobertas de toda a minha vida, a entrada inicial e definitiva no mundo da leitura e da escrita. O fascínio com os livros me acompanharia sempre daí em diante e há de me acompanhar até meus últimos momentos.
Pena o D. Francisco ter se tornado uma estranha fortaleza! Para as crianças, será a praça ainda da alegria?

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