19 de janeiro de 2003

Paixão e castigo

Jornal O Estado do Maranhão 
Após 86 anos de vigência, o código civil brasileiro de 1916 foi substituído pelo que passou a vigorar no dia 11 deste mês. De acordo com os especialistas, os legisladores não introduziram mudanças radicais nas normas antigas. Adaptaram a nova legislação às mudanças na sociedade e às tendências consagradas anteriormente em decisões dos tribunais.
Foram 26 anos de tramitação do projeto original no Congresso Nacional. Nesse período, ele sofreu incontáveis alterações, até chegar à versão aprovada. A lentidão tem origem na complexidade do assunto. Afinal, trata-se de regular relações entre pessoas, em aspectos importantes para a vida de todos. O longo tempo despendido, no entanto, levou a que, no dia mesmo da promulgação, houvesse no Congresso Nacional 370 propostas de alteração da nova lei.
A obsolescência quase instantânea desse tipo de legislação decorre de nossa tradição de codificação das normas relativas aos grandes ramos do direito: civil, criminal e outros. Contudo, ao final da elaboração de um código, aparece logo a necessidade de alterá-lo, por causa da demora na realização da tarefa e da cautela do sistema judiciário em incorporar as inovações adotadas de fato pela sociedade. Essa hesitação nasce do formalismo exagerado do nosso sistema de leis. Não seria uma alternativa melhor, privilegiar o direito consuetudinário, isto é, aquele fundado principalmente nos costumes e decisões dos tribunais, sem a obrigação de elaborarem-se codificações destinadas a envelhecer rapidamente?
Houve mudanças interessantes. A falta de virgindade feminina não pode mais ser usada como motivo de anulação do casamento, mesmo sem o conhecimento prévio, pelo noivo, dessa “tragédia”; os condôminos podem receber multas altas por comportamento anti-social, mas só até 2% por falta de pagamento do condomínio; a mulher perdeu a preferência pela guarda dos filhos, em caso de separação do casal; o marido pode adotar o sobrenome da mulher sem autorização judicial.
Todavia, vejam como são imperfeitas as obras humanas. A falta de amor pode, de hoje em diante, ser usada como motivo para separação. É uma inovação progressista. Se pensarmos bem, veremos que, ao não admitir essa possibilidade, o velho código quase obrigava os ex-apaixonados a mentir, a falar muitas vezes de “incompatibilidade de gênios”, quando na verdade tratava-se, mais do que isso, de compatibilidade de sentimentos, porquanto estes são os mesmos nos dois bicudos que não se beijam mais: ressentimentos. O novo, não. Permite dizer a verdade: “Deixei de amar esta pessoa; quero viver longe dela”. Pode ter menos romantismo. Sem dúvida, porém, é mais verdadeiro.
Contudo, caro leitor, não se iluda com a mera superfície das coisas. Note o preço a pagar pela verdade. Um cônjuge, ao entrar com uma ação litigiosa de separação, com base unicamente na alegação de falta de amor, perde o direito à pensão alimentícia e aos bens do outro, se estes estiverem sujeitos ao regime de comunhão universal. É quanto vale a verdade casada com o desamor. Será o preço alto?
Não é só isso. Os legisladores não apenas não se preocuparam em incentivar o amor, como acabaram por premiar a falta dele. Segundo também os especialistas, ficou mais fácil, não propriamente aplicar o golpe do baú que, como todo mundo sabe, é um bom modelo de ausência de amor, mas as vítimas livrarem-se de suas conseqüências, já não digo sentimentais, digo materiais. Antes, com a morte de um dos cônjuges, o outro só herdava os bens se não houvesse descendentes ou ascendentes do morto. Agora, é impossível excluir o sobrevivente da herança, mesmo no caso de ele ser um “golpista”.
Mas, talvez o legislador tenha considerado o golpe do baú como algo que só acontece com o consentimento da “vítima”. Esta, num momento de incontrolável paixão, predispõe-se a dar tudo ao amado, até mesmo os bens dela. Se de fato for assim, então o código não incentiva a falta de amor, como parece. Apenas castiga a paixão passageira.

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