25 de novembro de 2001

Cimitarra

Jornal O Estado do Maranhão
Tomo por empréstimo o título do novo livro de Laura Amélia Damous, Cimitarra, para dar notícia de seu lançamento, amanhã, às 19 horas, no Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, na Praia Grande. Já quase tardava a nova obra. A última da autora foi dada à luz há oito anos. Somente o saber que essa poetisa sem par na cultura maranhense dá prioridade à qualidade e não, apenas, à quantidade da sua produção poética, tornou possível esperar esses anos todos, ainda que com mal controlada ansiedade e mal disfarçadas cobranças. A espera resultou ser recompensadora.
Estão reunidos em Cimitarra poemas inéditos e outros recolhidos por Laura de seus livros anteriores, Brevíssima canção do amor constante, Arco do tempo e Trajes de Luzes. Como eu disse na contracapa “sua poesia é personalíssima. A concisão do verso, a surpresa dos achados poéticos, o rigor simultâneo à espontaneidade, a originalidade, a força expressiva do dizer, tudo confirma a excelente poesia dessa Emily Dickinson maranhense que nos ensina a dizer muito com poucas palavras”.
Em texto sobre Arco do tempo, colocado na orelha, Jomar Moraes, ao falar sobre a concisão verbal de Laura, diz que ela escreve de maneira controlada e utiliza os meios adequados à expressão da emoção. Em verdade, essa é uma característica da arte moderna. Vejo na obra de Laura Amélia esse componente distintivo do modernismo, a emoção sob controle – sinal de sintonia com seu tempo – mantida, porém, a inevitável inquietação. Mas, vejo mais. Vejo a surpresa, o imprevisto, o inesperado, o inusitado, a desbanalização, a desautomatização da linguagem, marcas da boa poesia, independentemente do gosto estético dominante em qualquer época. Marcas de perenidade e universalidade.
As palavras, traídas pelo automatismo abusivo com que as usamos no dia-a-dia, mas subtraídas dessa trivialidade cotidiana pela poesia de Laura, são transfiguradas semanticamente. Provocam, por isso, por meio de versos criadores de metáforas de extraordinária inventividade, perplexidade e espanto, tão característicos da nossa reação ante a poesia autêntica. Veja-se, por exemplo, o poema Cimitarra, o primeiro do livro: “A lua afiada/ decepa/ a noite/ Estamos órfãos”. Ou esse outro, Ausência: “O ar/ é feito de ti/ oxigênio ausente”. E esse, Olfato: “Jaz em mim/ Jasmim/ (teu cheiro)”. Os especialistas e teóricos do fazer poético têm aí bom material para estudos que estão fora de minha jurisdição.
Em paralelo à beleza da poesia, a beleza da capa.  Esta foi concebida como uma colagem, com fundo marrom, de três quadros da coleção particular da autora, inspirados nela. São telas dos artistas plásticos Zé Jorge Leite Soares, Ciro Falcão e Lobato. Dos dois textos de apresentação, um é do poeta maranhense Nauro Machado, ganhador do prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, em 1999. O outro é de Hildeberto Barbosa Filho, poeta e professor da Universidade federal da Paraíba.
A edição foi patrocinada pela Universidade Estadual do Maranhão – Uema. Sem o apoio do seu reitor, professor César Pires, teria sido muito mais difícil do que foi, colocar esse Cimitarra à disposição dos leitores. É prova, tal atitude, da compreensão, pela direção da Uema, do papel que instituições de educação superior devem ter no fomento à cultura de seu Estado e da sensibilidade que não pode faltar a seus dirigentes.
Colocar o livro na rua não foi uma tarefa fácil, com respeito a sua confecção. É que a gráfica Minerva, encarregada de imprimi-lo, demorou, aproximadamente, cinco meses para dá-lo como pronto, a despeito de o original ter-lhe sido entregue totalmente composto, pronto para ser impresso. Ainda assim, apareceram, apenas, quinhentos exemplares. Os outros mil e quinhentos terão de ser apanhados a prestação, em pequenas quantidades semanais.
Mas isso irá passar. Não essa poesia. Ela ficará e confirmará o talento dessa escritora que, certamente, persistirá na construção de sua obra com outros belos livros.

18 de novembro de 2001

Copa 2002

Jornal O Estado do Maranhão
Pareceu e, de fato, foi um pouco ridículo, para uma potência do futebol como o Brasil, ter comemorado, na quarta feira passada, a classificação para a Copa do Mundo de 2002 como se tivesse vencido, por exemplo, uma Argentina, uma Itália ou uma Alemanha na partida final. Essa reação se explica pelo frustrações de uma inédita campanha de derrotas nos jogos eliminatórios, em disputa com antigos fregueses de caderno.
Era inimaginável, até recentemente, irmos para um jogo com medo de perder para a Venezuela, país que tem como seus esportes mais populares o beisebol e o basquetebol, seguidos do futebol na preferência do público. No entanto, o receio esteve presente até o início do jogo. Felizmente, a lógica prevaleceu, o que nem sempre acontece no futebol. O time brasileiro venceu jogando, para valer, somente no primeiro tempo da partida.
Afinal, o Brasil, em dezesseis Copas, ganhou quatro, foi vice-campeão em duas, terceiro em duas e quarto em uma, terminando, portanto, entre os quatro primeiros colocados em mais da metade delas. Se alguém disser que isso é coisa do passado ou é pouco, eu direi que nas mais recentes disputas, fomos campeão, em 1994, e vice, em 1998 e que nenhum outro país fez tanto quanto o nosso.
O mal brasileiro, nesse terreno, ou gramado, tem origem em seus dirigentes. Eles não entram em campo. Todavia, participam, como suspeitos, até agora, de mil roubalheiras. Digo roubalheiras com base em duas CPIs criadas para investigar o futebol. Elas encontraram indícios de evasão de divisas, lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito, conforme a documentação e os depoimentos reunidos pela devassa. Na Comissão da Câmara, uma tal de tropa de choque da CBF impediu a votação do relatório final e tornou inócua toda a investigação. A do Senado sofre, no momento, igual sabotagem por outros membros da mesma “tropa” sem uniforme, mas de finos fraque, casaca e cartola. Tal manobra poderá ser a salvação do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, principal acusado, mas a perdição definitiva do nosso futebol.
Independentemente dessas lambanças, contudo, temos uma longa tradição de não acreditar na seleção antes de competições importantes, talvez porque ser pessimista é sempre seguro. Estatisticamente, os pessimistas estarão certos na maioria das vezes. Além disso, quando suas previsões falharem, ninguém vai dizer nada na euforia da vitória. No caso de serem corretas, eles vão poder dizer satisfeitos e superiores: – Eu não disse?!
Quem folhear os jornais e revistas de 1958 vai perceber a incredulidade brasileira ou, pelo menos, da chamada crônica esportiva, a respeito da seleção que ia disputar a Copa. O técnico Feola era um dorminhoco, os jogadores não tinham preparo físico, os russos estavam jogando um futebol científico, o time inglês, chamado servilmente de English Team, usava táticas maravilhosas, a França tinha um ataque arrasador. Todo mundo estava jogando um bolão. Só o time brasileiro era de peladeiros, de pernas-de-pau.
Em 1970, dizia-se que a nossa participação na Copa do México ia ser pior do que a de 1966. Nesta, não havíamos passado da primeira fase. Vivíamos a época da ditadura militar. Dizia-se que Dario, o Dadá Maravilha, fora convocado, para salvar a pátria, por “sugestão”de Medici, o general-presidente. O certo é que o futebol brasileiro não prestava.
Nas eliminatórias, contra essa mesma Venezuela, o primeiro tempo terminou de zero a zero. Os comentários eram todos sobre o domínio dos venezuelanos. Eles iam ganhar no segundo tempo. Pois bem, o Brasil fez cinco a zero. Nelson Rodrigues, com suas tiradas espirituosas, disse em uma crônica, quando a seleção embarcou para o México: – Partiu o escrete. Terminou o seu exílio. Acrescento que em 94 e 98 foi a mesma coisa.
A história bem poderá se repetir em 2002. Não como farsa, como acontece geralmente, mas como reafirmação da superioridade do nosso futebol. Para isso, será necessário afugentar os principais culpados pela crise da seleção.

11 de novembro de 2001

Um ano

Jornal O Estado do Maranhão
Chego, com este, a 52 artigos dominicais aqui em O Estado do Maranhão. Escrevê-los tem sido uma experiência inestimável para mim nesses doze meses. Digo isso porque renovo semanalmente a chance de expor, com o máximo de boa fé, posso assegurar, algumas idéias e de receber a aprovação ou a desaprovação dos leitores. É claro que, em ambos os casos, o proveito maior é meu. Algumas vezes, concordando ou discordando, eles fazem-me perceber algumas nuances daquilo que tentei dizer, mas não disse com nitidez. Sou obrigado, dessa forma, a ter mais cuidado e certificar-me de que estou transmitindo exatamente o pretendido.
Chego, assim, a outra vantagem desse exercício semanal. Ele me força a esclarecer melhor as idéias para mim mesmo, arrumá-las melhor, por assim dizer, para poder expô-las de forma mais clara. Ou menos obscura, pelo menos. Independentemente do mérito de minhas opiniões, tal treinamento torna possível, portanto, evitar interpretações equivocadas, mal entendidos e perda de tempo com explicações que, com esse cuidado, sequer necessitam ser apresentadas.
As reações dos leitores são, quase sempre, bastante corteses, sejam favoráveis ou contrárias aos meus pontos de vista. Percebo que a maioria, embora, naturalmente, preocupada com o assunto em si, também, faz seus julgamentos com base em outros critérios. Suas análises não se sustentam, apenas, na concordância, ou não, apriorística com a minha maneira de ver. Elas vão mais longe. Ponderam sobre a existência, ou não, de coerência e clareza na minha exposição e de lógica nos meus argumentos. Não são puramente ideológicas nem supõem um ponto de partida moralmente correto, em contraposição a uma hipotética incorreção ética do articulista.
Mas, há exceções, infelizmente. Embora em quantidade muito pequena, existem os que não desejam debater, mas impor pontos de vista sem qualquer discussão, por meio do uso de rótulos e palavras de ordem. Foi por isso que já fui carimbado, de corpo presente, ao vivo, de terrorista, em uma ponta do espectro ideológico, e de reacionário, na outra. Acabei um reacionário extremista, portanto. Sou levado a pensar, então, sobre meu acerto em algumas coisas. Devo estar andando longe dos extremismos. Cada um desses autênticos extremistas me coloca na ponta oposta à sua.
O “terrorista” foi por conta dos meus comentários acerca do atentado do dia 11 de setembro deste ano aos Estados Unidos, país que muito admiro, onde vivi por cinco anos. Tenho um filho, Lino Filho, com dupla nacionalidade, americana e brasileira, por ter nascido lá. Em resumo, eu dizia que aquele ato de violência não tinha justificativa moral alguma, mas tinha uma explicação na política externa americanas, sem exclusão da responsabilidade dos governos corruptos dos países pobres, pelas mazelas de seus povos.
O “reacionário” veio de minhas observações sobre a greve das universidades federais. Pelo tom emocional da reação, só posso concluir pelo meu acerto em dizer que falanges minoritárias da universidade gostam muito de criticar, mas pouco de ser criticadas. Na maioria das vezes, preferem, em lugar da discussão civilizada e racional, colocar um carimbo nos que não rezam pela sua cartilha. É mais fácil porque dispensa o extenuante trabalho de argumentar, de racionar, de pensar. Todo rótulo é pré-definido e conhecido, pelo menos para as platéias a que é endereçado. Vem daí o aplauso infantil entusiasmado a esses arroubos “de esquerda”, tornados um reflexo condicionado aplicado a toda hora e a todo mundo.
Mas, ao fim, sai-se enriquecido da experiência. Expor-se ao julgamento dos leitores é participar do jogo democrático, exigente do livre debate e circulação de idéias. É acreditar, como acredito, no amadurecimento de nossa sociedade, o suficiente para torná-la tolerante das opiniões divergentes. É uma atitude que certamente ajuda a eliminar o perigo da opinião única, de tantos prejuízos no passado, e ainda hoje, às sociedades nas quais é proibido discordar.

4 de novembro de 2001

1954

Jornal O Estado do Maranhão 
A quase eleição de Marta Rocha como miss Universo, a Copa do Mundo da Suíça em que o Brasil perdeu para a Hungria, o suicídio de Getúlio Vargas e a presença de minha mãe na maternidade Benedito Leite, para ter uma menina, depois de cinco meninos em cinco anos, foram acontecimentos memoráveis de minha infância.
Todos foram de 1954, quando eu tinha seis anos. Mas, por um desses saltos mortais da memória, que nos leva a reconstruir incessantemente o passado, minha visão deles mudou, até que eu pudesse vê-los todos juntos, como parte de um abrir de olhos para a vida e seus mistérios sem resposta. Mas, por muito tempo, eu os vi distantes uns dos outros, cada um com sua capacidade singular de emocionar.
Na época, ou logo após, eu não poderia vê-los com o plácido olhar do adulto de hoje. Como poderia fazê-lo a criança que me contempla agora, com olhos serenos, ali do primeiro plano de uma foto antiga de casamento do tio Saul com Edilde, se mal tinha consciência de si e do mundo? Se tudo era ainda surpresa, novidade, se a vida era nova na velha cidade?
O Brasil começava a crer no próprio futuro, embora não houvesse ainda a euforia com o sucesso na Copa do Mundo de 1958, as vitórias de Maria Ester Bueno no tênis, a implantação de indústria automobilística, a projeção mundial da música brasileira, com a Bossa Nova, a construção de Brasília e da Belém-Brasília.
Em 1954 quase tivemos uma miss Universo, Marta Rocha. Como no futebol, que, em 1950, quase fora campeão mundial, para grande frustração nacional, a baiana Marta Rocha foi vice-campeã. Perdeu por causa de um quadril maior do que o busto em duas reles polegadas.
Atribuiu-se a derrota a uma suposta má fé dos juízes, por inveja da beleza brasileira. A revista O Cruzeiro, a de maior circulação na época, fez de Marta um símbolo de nosso potencial como povo. Eu ficava admirando as fotos daquelas belas mulheres, sem saber ao certo o que era polegada, mas sabendo que não devia ser uma coisa boa porque prejudicara a nossa miss. Maldita polegada!
Na Copa de 54, perdemos para o bicho papão do torneio, a Hungria, que acabaria sendo derrotado pela Alemanha na final. Ouviam-se os jogos em aparelhos de rádio a válvula, em ondas curtas. Esse tipo de transmissão provocava ruídos e oscilações no sinal do rádio. A gente tinha de colar o ouvido ao alto-falante para ouvir melhor os exageros dos locutores brasileiros. Sem televisão, tinha-se de acreditar nos seus arrebatamentos patrióticos. Os árbitros, coincidentemente, eram todos desonestos, contra o Brasil.
Foi em um daqueles aparelhos, da marca Zenith, em cima de uma prateleira de madeira presa na parede da sala, que ouvi os jogos, na nossa recém construída casa, no então tranqüilo bairro do Monte Castelo, cheio ainda de pitombeiras, mangueiras e jardins, por onde iam passear as pombas que eu criava, mal raiava “sangüínea e fresca a madrugada”.
Getúlio Vargas suicidou-se no dia 24 de agosto, quando minha mãe já estava na maternidade. Ela daria à luz sua única e desejada filha no dia seguinte, 25. Isso acabou ligando os dois acontecimentos na minha memória. A Rádio Nacional do Rio de Janeiro dava, pela conhecida voz de Heron Domingues, no popular noticiário Repórter Esso, notícias da comoção nacional e tocava músicas fúnebres o tempo todo. Lembro bem dos ataques de grupos exaltados a Carlos Lacerda, considerado responsável pela morte, por seus ataques a Getúlio.
No horário de visitação íamos ver a recém nascida e a mãe. Chegávamos, os irmãos, até mesmo os de braço, levados pela tia Dayse. Vínhamos da casa de minha avó, Josefina Moreira, na rua do Passeio, para onde nos mudávamos quando minha mãe estava nos dias de descansar. O hospital ficava na rua do Norte, perto dali. Eu chegava curioso, olhava para as duas e me punha a pensar sobre a história da cegonha. Por que a barriga crescia tanto e depois sumia?
Acabada a contemplação da vida nova, voltávamos para casa e continuávamos a ouvir as notícias da morte recente.

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