25 de março de 2001

Maranhenses em machado

Jornal O Estado do Maranhão
Machado de Assis tinha genuína admiração pelo Maranhão. Durante sua longa carreira de cronista em diversos jornais do Rio de Janeiro, fez ele, muitas vezes, referências elogiosas a maranhenses: Joaquim Serra, João Lisboa, Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, Odorico Mendes, Henriques Leal, Gomes de Sousa, Gentil Braga, Sabas da Costa, Artur Azevedo, Teófilo Dias, Raimundo Correia, Coelho Neto. Para bem se avaliar a proximidade de suas relações com os escritores do nosso Estado, é suficiente dizer que por ocasião de sua morte estavam a seu lado Coelho Neto, Raimundo Correia e Graça Aranha, bem como os não maranhenses Mário de Alencar, José Veríssimo, Rodrigo Otávio e Euclides da Cunha.
Em crônica de 5 de novembro1893, na Gazeta de Notícias, o escritor carioca mostra irritação com uma expressão que se tinha tornado um modismo por influência da comédia Verso e reverso de José de Alencar. Um personagem, mal entrava em cena, disparava a pergunta: Que há de novo? Diz Machado que ninguém saía de casa sem ouvir a pergunta. Tal como hoje se ouve a toda hora os chavões “a nível de”, “fazer uma colocação”, “remeter a”, “transparência”, “enquanto” isso ou aquilo, “vontade política” e muitos outros.
Resolve então, metaforicamente, vingar-se de quem lhe atirava a pergunta, dando como resposta um fato histórico, mas ocorrido no início de novembro, mês em que escrevia. A um conhecido responde com a execução do Bequimão.
“— Que há de novo? — Foram executados. — Quem? [...] Todos; isto é, dois. Um dos cabeças foi degradado por dez anos. — Quais foram os executados? — Sampaio... — Não conheço. — Nem eu; mas tanto ele como o Manuel Beckman, executados neste triste dia de mortos... Lá vão dois séculos! Em verdade, passaram mais de duzentos, anos, e a memória deles ainda vive. Nobre Maranhão!”.
O Sampaio mencionado é Jorge de Sampaio e Carvalho, “rábula terrível [...] amotinador por tendência e velhaco por formação”, no dizer de Milson Coutinho em A revolta de Bequimão. Ele esteve entre os primeiros a beijar as mãos a Gomes Freire, encarregado da devassa da Revolta do Estanco, de que resultou a execução do próprio Sampaio e de Bequimão, em 1685, a 10 de novembro, como ensina, ainda, Coutinho, e não no Dia de Finados, como diz Machado, seguindo João Lisboa.
A outro deu notícia de um naufrágio.
“— Onde? Que naufrágio? — O cadáver da principal vítima não se achou; o mar serviu-lhe de sepultura. Natural sepultura; ele cantou o mar, o mar pagou-lhe o canto arrebatando-o à terra e guardando-o para si. [...]. Pobre Brasil! Pobre Gonçalves Dias! Três de novembro, dia horrível; 1864, ano detestável!”.
É nessa crônica que ele recorda a primeira vez que viu o grande poeta maranhense, na redação do Diário do Rio. Viu entrar “um homem pequenino, magro, ligeiro”. Não foi preciso que lhe dissessem quem era. “Ouvi cantar em mim a famosa Canção do Exílio”. Em 1893, quase trinta anos depois, a admiração continuava a mesma, ou talvez maior.
No ano seguinte, a 27 de maio, ao fazer comentários sobre o Romantismo, lembrou-se de Gonçalves Dias, já agora nome de rua no Rio de Janeiro. Pede que não se confunda o local com o ser humano, pois este “era um homem do Maranhão que fazia versos”. Havia o boato de que o poeta morrera. A imprensa apressou-se em fazer longos necrológios. “[...] e a notícia da morte chegou aos ouvidos do poeta como os primeiros ecos da posteridade”. Acrescenta que se fosse político iria se esconder em alguma fazenda. De lá, depois de algum tempo, mandaria a notícia de sua própria morte para ver a reação das pessoas. O conhecido ceticismo de Machado sobre a constância e sinceridade das afeições humanas ressurge: “Conquanto sejamos todos benévolos com os defuntos recentes, sempre era bom ver se na água benta das necrologias instantâneas não cairiam algumas gotas de fel”. Aí está o modo machadiano de precaução contra as beatificações apressadas.

18 de março de 2001

Coco mata

Jornal O Estado do Maranhão
Hoje, já não se sabe mais o que fazer para ter uma vida dita saudável. Durante anos, ouviu-se dizer que o uso da margarina, em substituição à manteiga, é que é o certo para evitar o mau colesterol e outros problemas. Um estudioso qualquer, que levou anos pesquisando, enquanto a gente enchia o pão e a frigideira de margarina, está dizendo que não faz diferença. Um dia pode, outro dia não pode. Um dia deve, outro não. Desse jeito acaba-se morrendo é de susto, no mais perfeito estado de saúde.
Houve um tempo em que correr, “fazer cooper”, era o máximo. Quem não fizesse ia, já, já, ter um ataque de coração, talvez um derrame cerebral, hoje apelidado de AVC, Acidente Vascular Cerebral. Ou uma doença ia atacar. Qualquer uma. Depois de muitas vértebras deslocadas, tendinites e outras mazelas, veio a novidade: andar é muito melhor do que correr. Nada de forçar a coluna, prejudicar o joelho, torcer o tornozelo etc.
Nessa época, um amigo meu ia à praia, diariamente, “fazer cooper”. Em uma bela manhã de sol, lá vem ele trotando pelas areias da praia de São Marcos. Belas jovens, daquelas que se vêem nas revistas masculinas, observam seu desempenho olímpico, cochichando e rindo. Ele interpretou o alvoroço como admiração por seus dotes atléticos. Vai ver, elas estavam dando bola pro coroa. Ele, peito pra fora, barriga pra dentro, queixo pra cima, acelera o passo. Aí...:
— Olha aí, vovô, cuidado com o coração! Vai devagar! Até hoje ele não se recuperou do trauma. Vovô... Nem de tio lhe chamaram! Ficou achando que essas recomendações para manter a forma são feitas por jovens atletas para humilhar senhores como ele. O pior é que, de tão obsessivo com o “cooper”, ele acabou ficando mais ansioso, em vez de menos, como esperava. — É batata. Tu vais relaxar depressinha — tinha garantido um vizinho entendido.
Isso me faz lembrar o conselho que nos dão, de fazer check-ups anuais, depois de certa idade. O sujeito consulta especialistas, toma todas as precauções, faz os exames indicados, fica ansioso à espera do resultado. No fim, vem a notícia: — Está tudo ótimo... Para sua idade! Foi o caso de outro amigo.
O pobre coitado ficou sem saber se a notícia era boa ou ruim. Será que tudo estava bem, mas a idade não? Qual o mistério daquele “para sua idade”? Mas, se era a idade que estava mal, como podia o resto estar bem? Será que tudo estava mal? Isso teria conserto? Uma cirurgia resolveria tudo, ou o caso era perdido?
— Aposto como esse médico quer me enrolar Esse “está tudo ótimo” não me engana — pensou a vítima. — Vai ver que estou com alguma doença grave. Essas dores de cabeça que eu venho sentindo, esse cansaço... Aí tem. Talvez eu tenha que ir pra um lugar onde a medicina disponha de mais recursos.. Era por isso que eu não queria fazer esses exames. Culpada é minha mulher que me obrigou.
O sujeito acaba ficando doente de verdade. Da cabeça. Se não era, passa a ser um estressado, um ansioso. A paranóia ataca: — Esses caras vão acabar me matando. Uma porção de exames pra continuar nessa dúvida! Assim vou acabar tendo um ataque de coração.
E as dietas pra emagrecimento? É a da lua, a do sol, as protéicas, as hiperprotéicas. Tem com massa, sem massa, com carne, sem carne, com fruta, sem fruta, com reza, sem reza. Interessante é que, mesmo nos casos em que a dieta é séria, a culpa pelo fracasso nunca é de quem faz. Os culpados são o Carnaval (a Semana Santa não), o São João, as festas de fim de ano, o aniversário da sogra, do irmão, da mulher, do marido, do filho, do pai, da mãe, do afilhado, do chefe no serviço. Já ouvi gente dizer que a culpa era da televisão que fica passando aquelas propagandas de comida a toda hora. Nos Estados Unidos, descobriram que lamber selo engorda.
O certo é que, pelo andar dessa carruagem, chegará o dia de se ouvir dizer que comer é perigoso, andar faz crescer a barriga, botar a cara na rua faz mal. Aí então, se alguém madrugar no quintal e um coco lhe cair na cabeça, a manchete do dia seguinte vai garantir: “Está provado. Coco de manhã cedo mata”.

11 de março de 2001

Provisória ou permanente?

Jornal O Estado do Maranhão
Quem tem, ou já teve, conta bancária sabe. O governo federal, há anos, vinha ficando, primeiro com 0,20%, depois com 0,30% de qualquer valor movimentado nela, por imposição da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira — CPMF, o “imposto do cheque”. Não mais. A percentagem irá subir para 0,38% no dia 18. Pelo que se ouve, a intenção do governo não é, tão-somente, de aumentar a alíquota. É, também, de tornar permanente o que era para ser provisório. Como, aliás, todo mundo dizia. Menos, é claro, as autoridades fiscais.
A desculpa para a criação do tributo foi a necessidade de obtenção de recursos para projetos sociais. Para o aumento mais recente foi outra, embora semelhante: a geração de novos recursos para o Fundo de Combate à Pobreza. No entanto, a arrecadação da CPMF, também como previsto, tem sido, sistematicamente, desviada para outras finalidades, ao arbítrio das necessidades emergenciais de caixa do Executivo federal.
A facilidade de coleta da CPMF foi um dos argumentos usados pelos técnicos para justificar sua criação. Certamente, ela é de mais fácil arrecadação, comparada com a maioria dos outros tributos. Não foi dito, porém, que ela facilitaria a vida do governo dificultando a do contribuinte. Um correntista, por exemplo, ao transferir seu próprio dinheiro de uma conta para outra, mesmo sendo titular de ambas, terá que pagar a tal contribuição.
Mas o que mais irrita é a tentativa em curso de transformar o provisório em permanente. Alega-se a perda de receita que ocorreria de, no mínimo, R$ 15 bilhões por ano. Parece, até, que ninguém sabia que ela tinha dia certo para terminar! O que ocorreu, em verdade, foi o fracasso do Executivo em obter do Congresso Nacional a aprovação de uma reforma tributária adequada às necessidades de manter o controle do déficit público e da inflação, objetivo consensual, hoje, na sociedade brasileira.
O nosso sistema tributário é confuso, burocrático, injusto, ineficiente. Impõe sacrifício excessivo a todos. Mas, por fatores econômicos conjunturais, vem produzindo, em meses recentes, aumentos reais de arrecadação. Bastante para a acomodação do governo. Se é mais fácil arrecadar com a CPMF, que continue o sistema como está. Não importa que, no longo prazo, ele não atenda, com justiça, aos interesses da nação e dos contribuintes, que são também cidadãos.
A lei que instituiu a CPMF prevê sua extinção em junho de 2002. O que está sendo proposto agora, sem a cara de ninguém tremer, é sua prorrogação. Com a diferença de que, daqui por diante, ela não seria mais provisória. A proposta de modificação renega acordos anteriores, pois o pressuposto da aprovação da proposta original pelo Congresso foi sua limitação a período pré-determinado. É, além disso, um incentivo à inércia. Para que fazer uma reforma, quando o mais simples é aumentar a arrecadação pela transformação do tributo?
Essa incerteza sobre a política fiscal é danosa para a economia. Um obstáculo à estabilização definitiva, apesar do muito que já caminhamos. Não podemos ter a ilusão de que a inflação não poderá ressurgir. Se o mercado e nossos parceiros econômicos em todo o mundo não acreditarem na adoção, pelo Brasil, a longo prazo, de um sistema tributário claro, sem burocracia desnecessária, justo e eficiente, a hipótese inflacionária não pode ser abandonada.
Não há atalhos para a geração de recursos destinados ao financiamento das políticas de combate à pobreza. Nem para qualquer outra finalidade. Tampouco há milagres ou jeitinhos. Teremos que criar um sistema fiscal estável, com regras claras, para não sermos condenados a conviver por largo tempo com incertezas paralisantes.
A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal — LRF que, acertadamente, disciplinou com rigor a despesa pública, foi indispensável medida de política fiscal. A necessidade existe, de ela ser complementada por outra, igualmente importante: a criação de fontes estáveis de arrecadação. Do contrário, a LRF terá sido mais uma boa intenção a gerar perigosas frustrações.

4 de março de 2001

Um homem incomum

Jornal O Estado do Maranhão
Quando o escritor maranhense Joaquim Serra morreu, em 1888, seu grande amigo Machado de Assis escreveu, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro: “Quando há dias fui enterrar o meu querido Serra, vi que naquele féretro ia também uma parte de minha juventude”.
Vi a mesma coisa, quando, no sábado de Carnaval, fomos levar o corpo do meu tio Luís de Melo Raposo Filho, Luisinho, ao cemitério do Vinhais. No féretro dele ia um pedaço de minha juventude, mas dela ficavam recordações que, sem a convivência com ele, seriam menos felizes.
As lembranças mais antigas que tenho dele me ficaram de sua presença na casa da rua Cândido Ribeiro, entre a rua Grande e a de Santana, onde ele morava com sua mãe, Marcelina, minha avó, e dois de seus irmãos, portanto meus tios também, Saul e Haroldo Raposo. Eu ia lá diariamente, durante o ano escolar, no turno da tarde. Saltava do ônibus na rua do Sol. Vinha andando, seguro pela mão de meu pai que, para mim, tinha passos de gigante.
Chegava lá por volta de uma hora da tarde, para ir, um pouco mais tarde, para o colégio das irmãs Varelas, na mesma rua, do outro lado, quase em frente. Encontrava os três irmãos já prontos para seguir para o trabalho. Antes de sair, porém, jogavam eles, quando havia tempo, uma partida de damas que eu observava curioso. Daí me veio o gosto, mais tarde, pelo jogo.
Desde esse tempo, a impressão que tinha de Luisinho era de uma alegria nervosa, tensa. Gostava de contar piadas, e as contava muito bem, mas a tensão nunca o abandonava. Para ele, perder era dramático. Isso se via no jogo e em tudo mais.
Poucos anos depois ele se tornou gerente da livraria e papelaria A Colegial, na praça João Lisboa, na esquina da ladeira do Comércio, perto do prédio, hoje em ruínas, do antigo Moto Bar. Era ali que comprávamos, eu, irmãos e amigos, revistas em quadrinhos e álbuns e pacotes de figurinhas para colecionar. Já então, as figuras de jogadores de futebol predominavam. Aquela era a época da primeira Copa do Mundo vencida pelo Brasil em 1958.
A porta d’A Colegial era o ponto de troca de figurinhas, com um comércio intenso. Numa tabela se iam marcando as que já tínhamos. Ser sobrinho do gerente, naturalmente, facilitava as trocas. Ele sempre encarregava um dos balconistas de ficar de olho nas que nos estavam faltando. Com que emoção se completava um álbum! Era uma conquista gigantesca a nossos olhos de criança. Com a ajuda dele.
Na minha adolescência, quantas vezes saímos juntos nos fins de semana, em excursões noturnas por lugares que não me atrevo a mencionar agora! Não foram poucas as vezes em que minhas dificuldades financeiras de estudante sem renda foram resolvidas por ele. Seu sentimento, acredito, era de guia, nesse território, o que fazia, aparentemente, com prazer.
Mas a vida de Luisinho foi, em verdade, uma sucessão dolorosa de acontecimentos que me fazem pensar nele como uma personagem dos grandes romances da literatura russa do século XIX. Seu sentimento trágico da vida e a busca incansável de um sentido para ela transformaram seu drama pessoal em tragédia. Igual à de qualquer um que enfrentasse as circunstâncias adversas, fora de seu controle, que o castigaram freqüentemente.
Digo tudo isso, não apenas para lamentar e registrar a morte de um parente querido, mas para fazer justiça às pessoas comuns, ou às que assim se costuma chamar. Entenda-se, comuns só no sentido de não ter registro histórico, de ser desconhecidas da multidão, anônimas. Se repararmos bem, no entanto, veremos que cada um de nós, sendo único, é, por isso mesmo, incomum. Igual a nenhum outro. Igual, apenas, a si mesmo. Posso, pois, dizer que Luisinho foi um homem incomum. Mais do que incomum até, porque, afrontado por forças adversas e gigantescas, teimou em desafiá-las heroicamente, para que pudesse, no fim, descansar na paz eterna desde sempre merecida.

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