Um homem incomum
Jornal O Estado do Maranhão
Quando o escritor maranhense Joaquim Serra morreu, em 1888, seu grande amigo Machado de Assis escreveu, na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro: “Quando há dias fui enterrar o meu querido Serra, vi que naquele féretro ia também uma parte de minha juventude”.
Vi a mesma coisa, quando, no sábado de Carnaval, fomos levar o corpo do meu tio Luís de Melo Raposo Filho, Luisinho, ao cemitério do Vinhais. No féretro dele ia um pedaço de minha juventude, mas dela ficavam recordações que, sem a convivência com ele, seriam menos felizes.
As lembranças mais antigas que tenho dele me ficaram de sua presença na casa da rua Cândido Ribeiro, entre a rua Grande e a de Santana, onde ele morava com sua mãe, Marcelina, minha avó, e dois de seus irmãos, portanto meus tios também, Saul e Haroldo Raposo. Eu ia lá diariamente, durante o ano escolar, no turno da tarde. Saltava do ônibus na rua do Sol. Vinha andando, seguro pela mão de meu pai que, para mim, tinha passos de gigante.
Chegava lá por volta de uma hora da tarde, para ir, um pouco mais tarde, para o colégio das irmãs Varelas, na mesma rua, do outro lado, quase em frente. Encontrava os três irmãos já prontos para seguir para o trabalho. Antes de sair, porém, jogavam eles, quando havia tempo, uma partida de damas que eu observava curioso. Daí me veio o gosto, mais tarde, pelo jogo.
Desde esse tempo, a impressão que tinha de Luisinho era de uma alegria nervosa, tensa. Gostava de contar piadas, e as contava muito bem, mas a tensão nunca o abandonava. Para ele, perder era dramático. Isso se via no jogo e em tudo mais.
Poucos anos depois ele se tornou gerente da livraria e papelaria A Colegial, na praça João Lisboa, na esquina da ladeira do Comércio, perto do prédio, hoje em ruínas, do antigo Moto Bar. Era ali que comprávamos, eu, irmãos e amigos, revistas em quadrinhos e álbuns e pacotes de figurinhas para colecionar. Já então, as figuras de jogadores de futebol predominavam. Aquela era a época da primeira Copa do Mundo vencida pelo Brasil em 1958.
A porta d’A Colegial era o ponto de troca de figurinhas, com um comércio intenso. Numa tabela se iam marcando as que já tínhamos. Ser sobrinho do gerente, naturalmente, facilitava as trocas. Ele sempre encarregava um dos balconistas de ficar de olho nas que nos estavam faltando. Com que emoção se completava um álbum! Era uma conquista gigantesca a nossos olhos de criança. Com a ajuda dele.
Na minha adolescência, quantas vezes saímos juntos nos fins de semana, em excursões noturnas por lugares que não me atrevo a mencionar agora! Não foram poucas as vezes em que minhas dificuldades financeiras de estudante sem renda foram resolvidas por ele. Seu sentimento, acredito, era de guia, nesse território, o que fazia, aparentemente, com prazer.
Mas a vida de Luisinho foi, em verdade, uma sucessão dolorosa de acontecimentos que me fazem pensar nele como uma personagem dos grandes romances da literatura russa do século XIX. Seu sentimento trágico da vida e a busca incansável de um sentido para ela transformaram seu drama pessoal em tragédia. Igual à de qualquer um que enfrentasse as circunstâncias adversas, fora de seu controle, que o castigaram freqüentemente.
Digo tudo isso, não apenas para lamentar e registrar a morte de um parente querido, mas para fazer justiça às pessoas comuns, ou às que assim se costuma chamar. Entenda-se, comuns só no sentido de não ter registro histórico, de ser desconhecidas da multidão, anônimas. Se repararmos bem, no entanto, veremos que cada um de nós, sendo único, é, por isso mesmo, incomum. Igual a nenhum outro. Igual, apenas, a si mesmo. Posso, pois, dizer que Luisinho foi um homem incomum. Mais do que incomum até, porque, afrontado por forças adversas e gigantescas, teimou em desafiá-las heroicamente, para que pudesse, no fim, descansar na paz eterna desde sempre merecida.
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