25 de janeiro de 2004

Marte e Marcianos

Jornal O Estado do Maranhão  
Os americanos enviaram a Marte recentemente um robô. Ele acaba de transmitir de lá imagens de incomum beleza árida. Isso me lembra que foi igualmente americano o primeiro homem, Neil Armstrong, a andar na Lua em 1969. Ele nasceu em Wapakoneta, Ohio, Estado vizinho a Indiana onde eu iria morar depois, durante meus estudos de economia na Universidade de Notre Dame. Armstrong também estudou em Indiana, na Universidade Purdue, na área de engenharia aeronáutica.
Quando eu escrevi aqui, há dois anos, sobre os passos dados até então pelo homem na conquista do espaço, falei sobre o compositor Bart Howard. Ele fez uma canção cuja letra fala de um namorado que diz romanticamente a sua amada: “Leve-me até a Lua/ e deixe-me cantar entre as estrelas./ Deixe-me ver como é/ a primavera em Júpiter e Marte”. Pois agora os americanos com seu espírito prático estão anunciando o fim de todos os mistérios, nascidos da distância e do desconhecimento, do Planeta Vermelho, se a promessa do presidente Bush de iniciar um novo programa espacial capaz de levar o homem a Marte não for apenas uma estratégia de marketing com o objetivo de ajudá-lo a se reeleger ao cargo.
Esse planeta tem servido para atiçar a nossa imaginação. Ao contemplá-lo como uma pequena estrela avermelhada, tão perto de nós pelos padrões astronômicos, mas longe pelos nossos, ficamos a imaginar se a espécie humana seria tão solitária a ponto de não ter como companhia, pelo menos lá, seres parecidos conosco, porém mais inteligentes, se bem que pequenos e esverdeados, para nos fazer companhia na vastidão de um universo fascinante para nós desde quando tentávamos sobreviver nas cavernas.
Mas, ao falar de Marte não posso deixar de lembrar um episódio ocorrido em 1971 em São Luís. Sob a direção de Sérgio Brito e com inspiração em um programa de 1938 de uma estação de rádio de Nova York, da cadeia CBS, apresentado por Orson Wells que, por sua vez, se baseara no livro de ficção científica A guerra dos mundos, de H. G. Wells, a rádio Difusora começou, numa manhã de sábado, a transmitir “ao vivo” um ataque marciano à Terra.
Não ocorreu e não ocorreria a ninguém naquele momento perguntar por que os pequenos seres verdes de Marte escolheriam São Luís e não Washington, por exemplo, com o fim de iniciar a invasão da Terra. Discos voadores chegaram a “pousar” no campo de Perizes, expelindo uma fumaça que não tardou a sufocar o locutor, J. Alves. Ele dava informações das proximidades do local onde estavam os invasores.
Confissões de pecados mortais por muitos senhores e senhoras até então considerados indiscutíveis reservas morais e comovidos pedidos de perdão foram feitos naquela hora. Tornaram-se, essas revelações, fontes de arrependimentos mais tarde. Não deixaram de ser negadas, contudo, sob o argumento de terem sido mal entendidas pelos que as ouviram, por causa da tensão do momento.
Se diferença houve entre o pânico da população da cidade e o do povo americano ante uma ficção que parecia realidade à maioria das pessoas (felizmente essas transmissões não eram feitas para o mundo todo na época, embora já o fossem em cadeia nacional nos Estados Unidos, mas não aqui), ela foi quase nenhuma. Como em outra canção, esta brasileira, de Assis Valente, chamada “E o mundo não acabou”, teve gente que beijou “a boca de quem não devia” ou pegou “na mão de quem não conhecia”.
Entre os que acreditaram na “invasão – o grosso dos que ouviram a notícia, creio –, nem todos se deixaram levar pelo medo. Um deles foi meu tio Haroldo Raposo, homem conhecido por sua coragem desde os tempos de moço em Cajapió, acostumado a disputas, não de marcianos, mas de terráqueos, como oficial de justiça, e às de galos, como criador desses animais e antigo freqüentador da rinha do bairro do João Paulo, aonde muitas vezes eu ia com ele há tempos. Ele sacou de um revólver, sacudiu-o com força no ar e, numa reação bem característica, declarou sem hesitar: “Eu posso morrer, mas vou levar muito marciano comigo”.

11 de janeiro de 2004

As Fichas

Jornal O Estado do Maranhão 
A polêmica sobre o fichamento de visitantes brasileiros na chegada aos Estados Unidos e de americanos ao Brasil mostra bem o acerto da observação de Machado de Assis sobre a facilidade de suportar-se com paciência a cólica alheia. O calo apertado no pé dos outros provoca talvez um leve bocejo e só.
Enquanto apenas os brasileiros iam ser obrigados a submeter-se a esse procedimento, o problema não existiu para o governo americano ou pareceu tão-só o resultado de lamentações de gente pobre e atrasada. No entanto quando o juiz federal titular da 1ª Vara na Seção Judiciária de Mato Grosso, Julier Sebastião da Silva, provocado pelo Ministério Público federal, tomou a decisão de colocar em prática o princípio da reciprocidade, obrigando o Executivo brasileiro a proceder como os americanos, passou a ser algo discriminatório, mas somente porque praticado aqui.
Qualquer pessoa de bom senso há de concordar com este raciocínio simples. Se a idéia de fichar os visitantes era boa antes, quando foi planejada pelas autoridades americanas com o fim de abranger brasileiros e cidadãos de diversos países, então não há razão para deixar de sê-lo agora só porque inclui americanos em visita ao Brasil. Deveria, sendo assim, ter sua aplicação mantida pelos dois lados. Se contudo não era algo razoável e não havia motivação justa para sua adoção, então certamente é um contra-senso insistir em sua manutenção como vem sendo feito. Haveria, pois, de ser revogada imediatamente por ambos. Elementar! Em qualquer hipótese não faz sentido permitir seu uso por um mas não pelo outro.
Um porta-voz do governo americano, Richard Boucher, depois de reconhecer o direito do Brasil de identificar quem quer que chegue ao país, seguindo o caminho aberto pelos Estados Unidos, disse haver solicitado a nossas autoridades procedimentos mais rápidos e cômodos. É um pedido razoável. Mas como fazer nossa burocracia agir com mais eficiência a fim de não estressar os turistas americanos? É muito simples. Basta o fornecimento por Tio Sam ao Brasil, sem custo algum, da tecnologia necessária ao aperfeiçoamento do nosso sistema de identificação. Só não pode ser da mesma qualidade da utilizada na apuração de eleições presidenciais na Florida.
O governo do Rio de Janeiro ameaça recorrer da decisão do juiz – se já não o fez – ante o olhar indeciso do executivo federal. Argumentam que o fichamento afastaria potencias turistas americanos dispostos anteriormente a vir gastar seus preciosos dólares no Brasil. Não sei se os cariocas têm razão, visto ser essa afirmação apenas uma suposição sem base em pelo menos uma única experiência anterior. Sei que ao utilizar-se um argumento de cunho unicamente utilitarista como esse perde-se o essencial da discussão.
A questão não pode e não deve ser vista exclusivamente do ponto de vista econômico. As disputas nesta área acabam se resolvendo de uma forma ou de outra. Suas seqüelas podem ser facilmente compensadas através de acertos adicionais mais adiante, a depender da eficiência econômica de cada um e de sua força relativa na arena internacional. Mas a construção de uma nação e o orgulho de um povo não são feitos apenas de crédito, débito e força bruta ou não são principalmente construídos dessas coisas.
Há um forte simbolismo em gestos que em algumas circunstâncias seriam encarados como triviais, corriqueiros, prosaicos, mas em outras não, como nessa de cruzar fronteiras entre nações e receber o devido respeito que é um importante alicerce na construção e reconstrução do sentimento de dignidade e auto-respeito de uma nação. Aqueles símbolos não permitem a instalação exclusiva do interesse econômico no comando das relações de qualquer país com os outros. Em algumas ocasiões mais vale sentir fome e frio do que engordar e se aquecer na indignidade disfarçada de espírito prático e objetivo.
Americanos e brasileiros serão capazes de compreender essas necessidades sem mais conflitos. O leitor pode colocar suas fichas nessa oposta.

4 de janeiro de 2004

Almanaque além da ilha

Jornal O Estado do Maranhão
No fim do ano de 2003, recentemente falecido, tivemos aqui em São Luís um acontecimento de grande importância para a vida cultural maranhense. Foi o lançamento simultâneo pela Clara Editora e Edições Guarnicê dos livros Almanaque Guarnicê: 20 anos, de Félix Alberto Lima e outros, e Além da Ilha, de Antônio Carlos Lima.

Os textos de ambos, guardadas as previsíveis diferenças de estilos, que são como impressões digitais do escritor, apresentam qualidades notáveis de desafetação, clareza, adequação ao assunto, leveza e correção, evidências dos talentos de Antônio Carlos e Félix no trato da língua que, infelizmente, sofre, em outras paragens, agressões diárias e sistemáticas. Suspeito de um componente genético nesses predicados comuns dos dois, pois são eles irmãos, não só biológicos, parece, mas também nas letras.

Além da Ilha reúne textos anteriormente publicados em O Estado do Maranhão e em outros jornais. São treze entrevistas e artigos que tratam de assuntos históricos, políticos e culturais. Exemplar é “O massacre de Alto Alegre: cem anos depois”, um dos melhores. Mostra um jornalista seguro, à procura de antes compreender do que julgar o conflito entre a missão dos capuchinhos italianos em Alto Alegre, município de Barra do Corda, e os guajajaras. Desse choque de visões entre brancos e índios resultaram várias mortes.

Revela também, esse texto, um pesquisador cuidadoso no uso das fontes mais autorizadas, inclusive de uma pesquisa do antropólogo Mércio Pereira Gomes com relatos de velhos caciques que ouviam de seus maiores histórias da missão.

Por esse exemplo, já perceberá o leitor a valia de ler o livro.

O Almanaque Guarnicê virá a constituir-se, ou melhor, já se constituiu desde o momento de sua publicação, não tenho dúvida, em importante referência sobre um período de grande agitação na história cultural do Maranhão. Ele comemora 20 anos de um movimento de jovens intelectuais (ou seria agitadores culturais?) que em agosto de 1983 iniciaram a publicação de um suplemento, que deixou de circular em dezembro de 1985, depois de 44 edições, chamado Guarnicê, distribuído semanalmente por O Estado do Maranhão, que teve em Joaquim Haickel,Celso Borges, Roberto Kenard, Paulo Coelho, Ronaldo Braga, Érico Ayres, Franco Maria Jasiello, Cordeiro Filho e Dulce Brito seus mais destacados militantes.

Essa gente sacudiu a cena local, provocando discussões, espancando preconceitos e espantando o marasmo maranhense. Em resumo, levando adiante nossa cultura. Essa é a imagem que me fica da leitura do Almanaque. O movimento, saudavelmente heterogêneo quanto possa ter sido, incoerente em algumas coisas quanto só os jovens podem e devem ser, porque a coerência é muitas vezes simplesmente a resistência a mudanças, crescente com a idade e as responsabilidades de sobrevivência de cada um com suas famílias, revela bem esse processo que se pode chamar de dialético, resultante das exigências permanentes de revolução e conservação, presentes em todos os setores da vida. Eles entram em conflito inicialmente, mas, ao final, se harmonizam.

Imaginemos, para entender essa afirmação, uma situação deste tipo. A cultura não passa por processo algum de institucionalização, a iconoclastia é permanente, a revolução não pára, a criação é destruição sempre, tudo lembra um trabalho de Sísifo. Ou, o contrário. Nenhuma mudança ocorre, a instituição prevalece eternamente, o academicismo é mestre incontestado e incontestável, os mortos dominam os vivos. Neste caso, a cultura murcharia por falta de mudança; no outro, por excesso. O enriquecedor é o equilíbrio entre as duas tendências – permanência e mudança. Dele resulta uma vitalidade essencial na vida cultural de todos os povos.

Essa é a referência, penso eu, para bem julgar os ataques, em certos momentos, do Guarnicê, ao mundo acadêmico e, por vezes, as resistências injustificadas deste às inovações. A síntese progressista dos dois pólos opostos em aparência nutre-se dessas benéficas colisões.

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