4 de janeiro de 2004

Almanaque além da ilha

Jornal O Estado do Maranhão
No fim do ano de 2003, recentemente falecido, tivemos aqui em São Luís um acontecimento de grande importância para a vida cultural maranhense. Foi o lançamento simultâneo pela Clara Editora e Edições Guarnicê dos livros Almanaque Guarnicê: 20 anos, de Félix Alberto Lima e outros, e Além da Ilha, de Antônio Carlos Lima.

Os textos de ambos, guardadas as previsíveis diferenças de estilos, que são como impressões digitais do escritor, apresentam qualidades notáveis de desafetação, clareza, adequação ao assunto, leveza e correção, evidências dos talentos de Antônio Carlos e Félix no trato da língua que, infelizmente, sofre, em outras paragens, agressões diárias e sistemáticas. Suspeito de um componente genético nesses predicados comuns dos dois, pois são eles irmãos, não só biológicos, parece, mas também nas letras.

Além da Ilha reúne textos anteriormente publicados em O Estado do Maranhão e em outros jornais. São treze entrevistas e artigos que tratam de assuntos históricos, políticos e culturais. Exemplar é “O massacre de Alto Alegre: cem anos depois”, um dos melhores. Mostra um jornalista seguro, à procura de antes compreender do que julgar o conflito entre a missão dos capuchinhos italianos em Alto Alegre, município de Barra do Corda, e os guajajaras. Desse choque de visões entre brancos e índios resultaram várias mortes.

Revela também, esse texto, um pesquisador cuidadoso no uso das fontes mais autorizadas, inclusive de uma pesquisa do antropólogo Mércio Pereira Gomes com relatos de velhos caciques que ouviam de seus maiores histórias da missão.

Por esse exemplo, já perceberá o leitor a valia de ler o livro.

O Almanaque Guarnicê virá a constituir-se, ou melhor, já se constituiu desde o momento de sua publicação, não tenho dúvida, em importante referência sobre um período de grande agitação na história cultural do Maranhão. Ele comemora 20 anos de um movimento de jovens intelectuais (ou seria agitadores culturais?) que em agosto de 1983 iniciaram a publicação de um suplemento, que deixou de circular em dezembro de 1985, depois de 44 edições, chamado Guarnicê, distribuído semanalmente por O Estado do Maranhão, que teve em Joaquim Haickel,Celso Borges, Roberto Kenard, Paulo Coelho, Ronaldo Braga, Érico Ayres, Franco Maria Jasiello, Cordeiro Filho e Dulce Brito seus mais destacados militantes.

Essa gente sacudiu a cena local, provocando discussões, espancando preconceitos e espantando o marasmo maranhense. Em resumo, levando adiante nossa cultura. Essa é a imagem que me fica da leitura do Almanaque. O movimento, saudavelmente heterogêneo quanto possa ter sido, incoerente em algumas coisas quanto só os jovens podem e devem ser, porque a coerência é muitas vezes simplesmente a resistência a mudanças, crescente com a idade e as responsabilidades de sobrevivência de cada um com suas famílias, revela bem esse processo que se pode chamar de dialético, resultante das exigências permanentes de revolução e conservação, presentes em todos os setores da vida. Eles entram em conflito inicialmente, mas, ao final, se harmonizam.

Imaginemos, para entender essa afirmação, uma situação deste tipo. A cultura não passa por processo algum de institucionalização, a iconoclastia é permanente, a revolução não pára, a criação é destruição sempre, tudo lembra um trabalho de Sísifo. Ou, o contrário. Nenhuma mudança ocorre, a instituição prevalece eternamente, o academicismo é mestre incontestado e incontestável, os mortos dominam os vivos. Neste caso, a cultura murcharia por falta de mudança; no outro, por excesso. O enriquecedor é o equilíbrio entre as duas tendências – permanência e mudança. Dele resulta uma vitalidade essencial na vida cultural de todos os povos.

Essa é a referência, penso eu, para bem julgar os ataques, em certos momentos, do Guarnicê, ao mundo acadêmico e, por vezes, as resistências injustificadas deste às inovações. A síntese progressista dos dois pólos opostos em aparência nutre-se dessas benéficas colisões.

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