11 de março de 2012

Dicionários e bebês

Jornal O Estado do Maranhão         

          O tal do “politicamente correto” está em todo lugar, sempre pronto a melhorar a sociedade. Vejam o exemplo edificante. Um procurador federal em Minas Gerais achou de pedir à justiça o recolhimento do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa porque a obra registra entre 7 acepções do termo cigano duas de sentido pejorativo: “[...] 5 pej. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador 6 pej. que ou aquele que faz barganha, que é apegado ao dinheiro, agiota, sovina [...].”
          Todo mundo sabe, ou devia saber – este não é o caso do procurador –, que um dicionário registra as palavras conforme elas são utilizadas pelos falantes de um idioma, seus verdadeiros construtores. Os dicionários seguem sempre um passo atrás das mudanças na língua e não poderia ser de outra forma. No momento de sua publicação, eles já estão defasados. Eles não inventam palavras e expressões nem lhes dão sentidos que não os do uso costumeiro, inclusive os metafóricos. A não ser em casos bastante incomuns e mesmo estranhos, as pessoas os consultam depois, não antes, de encontrar uma palavra cujo significado não alcançam, mas de uso anterior e reconhecido na língua. Os dicionários não são agentes de divulgação de preconceitos de qualquer tipo, mas de conhecimentos ao anotarem significados já existentes, invenções de todos e de ninguém, parte do patrimônio cultural comum a todos os cidadãos.
          A prevalecer a posição do procurador de fazer essa assepsia e em vista da existência de milhares de palavras em situação semelhante terminaríamos a limpeza como uma versão inteiramente anódina e falsa da língua, que não serviria a quase nada no seu manejo. Ele quer matar o mensageiro portador da má notícia: existe muito preconceito por aí.
           Mas, passemos a um assunto mais sério e aterrador: a defesa do assassinato de recém-nascidos, publicada em artigo sob o título Aborto pós-nascimento: por que o bebê deveria viver? no conceituado Journal of Medical Ethics.
           O resumo do texto feito pelos dois professores é este: “O aborto é largamente aceito mesmo devido a razões que nada têm a ver com a saúde do feto. Ao mostrar que (1) tanto os fetos quanto os recém-nascidos não têm o mesmo status moral que têm as pessoas atuais (2) o fato de ambos serem pessoas potenciais é moralmente irrelevante (3) a adoção não é sempre no melhor interesse das pessoas atuais, os autores argumentam que o que chamam de ‘aborto após o nascimento’ (matar os bebês) deveria ser permitido em todos os casos em que o aborto o é, inclusive naqueles em que o recém-nascido é saudável.”
          Ao falar de permissão “em todos os casos”, eles não abrem mesmo nenhuma exceção, incluindo na lista de possibilidades as crianças com deficiências bem como, como está explícito acima, as que não as têm, sendo o único critério de decisão a vontade dos pais. A possibilidade de adoção é descartada porque isso seria psicologicamente mais inseguro para os pais do que o infanticídio.
          Eles estão com a razão em um ponto: não há quase diferenças entre fetos e crianças. Assim, quem aceita a afirmação sobre a igualdade moral entre estes e aqueles e ao mesmo tempo defende o aborto, posição oposta à minha, deve, por coerência, aceitar também o assassinato de recém-nascidos. Se se permite esta prática, então nada impedirá a implantação, vamos imaginar, de uma fazenda modelo de abate de bebês, ao lado de uma de abate de gado, para a produção de órgãos destinados a transplantes. Essa seria uma das consequências lógicas do argumento pró-infanticídio, fundado na ideia de que tais pequenos seres não se qualificarem como “pessoas” no sentido moral do termo assim como, os pesquisadores afirmam, os fetos não se qualificam. Isso tudo repugna, como é de se esperar, os sentimentos morais das pessoas normais.
          O direito de “abortar depois do nascimento” deve abranger neste caso 40 anos, tempo suficiente para as mães dos proponentes dessa proposta imoral verificarem que eles nunca se tornarão pessoas morais. Então, elas poderão abortar ambos.
          É isso. O procurador deseja assassinar dicionários, os dois professores, bebês.

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