6 de maio de 2007

Crime privilegiado

Jornal O Estado do Maranhão
Sempre me pareceu coisa de país de bacharéis, herdada de nossa formação social vinda da Colônia, essa lei (ela existe mesmo?) que manda colocar em cela especial os encarcerados portadores de diploma de curso superior. Especial aí é sinônimo de cela separada das dos presos ditos comuns, e mais confortável. Poderia alguém supor, então, que bastaria a um ladrão, para ter regalias na cadeia, a suposição de ter ele certa ilustração, suposição incerta na maioria dos casos, a não ser que se considerem ações criminosas como socialmente desejáveis. Delinqüir com um canudo debaixo do sovaco tornaria seu portador menos danoso à coletividade, justificando a obtenção de regalias negadas a outros com pouca instrução? Haveria bandidos de primeira e segunda classe? Ou melhor, bandidos com classe e sem classe? É a luta de classes na prisão?
Algum ingênuo do povo talvez afirmasse que seriam precisamente essas pessoas classificadas como especiais as merecedoras dos rigores da lei. Possuindo, como decorrência de seu nível de educação – abstraindo-se os casos em que o sujeito entra na escola, mas a escola não entra nele – entendimento claro dos prejuízos para a sociedade de conduta ilegal, e, apesar disso, dispostos a burlar a lei, deveriam ser colocados, continuaria o argumento, numa espécie de purgatório prisional, longe dos presos comuns, de tal forma a não terem a possibilidade de transmitir aos companheiros conhecimentos especializados sobre modernas tecnologias usadas em ações delituosas.
O costume de classificar delinqüentes com base no grau de instrução, gerou, com respeito a potenciais encarcerados que cursaram faculdades, distinção de outra natureza, agora entre, de um lado, os conhecedores da lei, contudo não cumpridores dela, e, de outro, os leigos nas mesmas leis, embora doutores em seus estudos e em trambiques.
Imaginemos uma situação em que magistrados (e também procuradores e policiais federais) em associação com pessoas de formação universitária – não em direito –, decidam constituir um bando com o fim de burlar o fisco e vender sentenças de liberação de bingo, jogo cujo funcionamento é usado como fachada na lavagem de dinheiro do tráfico de droga. A quem se dirigiria, com justificada razão, maior indignação por parte do cidadão? Ao leigo, todavia de nível superior, ou aos bandidos especialista nelas, os magistrados, envolvidos na formação de quadrilhas, que usam para ganho pessoal e ilícito o cargo no qual foram investidos pela sociedade a fim de distribuir justiça?
A Polícia Federal, com respaldo judicial de juízes honestos, que os há em grande número, prendeu há pouco magistrados envolvidos com malfeitores em situação como a descrita acima. A operação, herança do ex-ministro da Justiça Márcio Bastos, deve ser louvada, mas não seu nome, Hurricane. Soa ridículo denominar ação da polícia brasileira com uma palavra em inglês, em vez de chamá-la pela equivalente em português, Furacão, como se diz em nosso idioma, agredido, até, por altas figuras da República. Desejarão mudar também o nome da PF para FBI, a Federal dos americanos?
O Supremo Tribunal Federal manteve a prisão temporária dos envolvidos, com exceção dos magistrados, como se não estivessem todos juntos no cometimento dos mesmos crimes. A isso dá-se o nome de corporativismo. O ministro do STJ acusado de participação no esquema sequer foi importunado. Sei que haverá argumentos técnicos a justificar a decisão. Tal argumentação apenas reforça a percepção geral sobre a inoperância e ineficiência do Poder Judiciário. O Tribunal deverá ainda julgar durante este mês de maio os pedidos de prisão preventiva. Num país onde existe aberração como foro privilegiado, ninguém ficará surpreso se inventarem o crime privilegiado.

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