28 de março de 2004

Sousâdrade em verso e prosa

Jornal O Estado do Maranhão 
Poesia e prosa reunidas de Sousândrade é o título do belíssimo livro, organizado por Jomar Moraes, presidente da Academia Maranhense de Letras, e por Frederick G. Williams, do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Brigham Young, no Utah, Estados Unidos, a ser lançado na Academia, à rua da Paz, na quarta-feira, dia 31 de março, às 19:30 h.
O luxuoso volume de 536 páginas em papel couchê, encadernado no tamanho 22cm x 32cm, tem edição promovida por Jomar com a chancela editorial das Edições AML e o apoio financeiro da Universidade Federal do Maranhão cujo reitor no início da sua feitura era o professor Othon de Carvalho Bastos, bem como da Fundação Sousândrade, dirigida pelas professoras Dinah Gomes, presidente, e Regina Luna, superintendente.
Essa publicação é parte de um projeto de mais de trinta anos dos dois pesquisadores, iniciado em 1970, quando Williams veio fazer pesquisas aqui sobre a vida e obra de Sousândrade com o fim de elaborar a tese que lhe permitiu obter em 1971 seu doutorado em português pela Universidade de Wisconsin. Em 1976 esse trabalho teve seu texto estabelecido em português com a ajuda de Jomar e foi publicado pelo antigo Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado – Sioge com o título de Sousândrade: vida e obra. Mas, ainda em 1970 os dois haviam publicado Sousândrade: inéditos e, depois, em 1978, Sousândrade: prosa.
Como dizem na apresentação do trabalho ora oferecido ao público, eles acabam de dar um grande passo em direção ao sonho de um dia publicar a poesia e a prosa completas do grande poeta maranhense. Não pretendo fazer análises da poesia dele nem me atreveria a fazê-lo. Isso é seguramente missão para os especialistas no assunto. Sua obra, descoberta, segundo Domingos Vieira Filho, por Clarindo Santiago em 1930 “em estudo interpretativo pioneiro” e redescoberta em 1960 pelos irmãos Campos, vem sendo analisada competentemente por vários estudiosos no Brasil, no Maranhão, pelo presidente da Academia, e até no exterior. Como resultado desse crescente interesse sua fortuna crítica vem crescendo acentuada, rápida e consistentemente. Desejo apenas chamar a atenção do leitor para a organização da presente edição que, com certeza, por sua qualidade, irá merecer a atenção daqueles que se interessam pela alta cultura de nossa terra.
Os organizadores do novo livro nele incluíram integralmente os dois anteriores, o de 1970 e o outro de 1978, e o enriquecem com as cópias dos manuscritos, feitos por copistas desconhecidos, mas sob a assistência do poeta, das Harpas de ouro e das Liras perdidas, onde se notam intervenções feitas por ele.
Constam desse volume de Jomar e Williams, ainda: 1) a terceira edição do Guesa, em fac-símile, feita a partir de exemplar, hoje no acervo da Academia, oferecido por Sousândrade em 1896 ao coronel Virgílio Domingues da Silva e mais tarde pertencente ao filho deste, também Virgílio, membro da Academia; 2) a segunda edição fac-similar do Novo Éden, feita a partir de exemplar, atualmente pertencente a Jomar, presenteado pelo poeta a seu amigo que governou o Maranhão, Manoel Lopes da Cunha, e depois passado ao filho do governador, o acadêmico Antônio Lopes da Cunha; 3) trabalhos em prosa, divididos em A) Literatura; B) Política-Civismo; C) Universidade: Artigos e Avisos; D) Documentos e Assuntos Diversos.
Em apêndice está o projeto de Constituição do Maranhão elaborado por comissão presidida por Sousândrade no mesmo ano, 1890, em que foi intendente de São Luís, o primeiro, prefeito hoje. Ele promoveu com vigor a educação municipal –era professor de grego no Liceu Maranhense – com a implantação de escolas noturnas e mistas, mostrando-se um administrador competente. Lutou sempre pela república, antes e depois da Proclamação, tendo sido seu desenho da atual bandeira do Estado expressão de seu entusiasmo pelo novo regime.
O lançamento fincará a partir da próxima quarta-feira um marco importante nos estudos sobre Sousândrade e será mais um justo reconhecimento do grande poeta.

21 de março de 2004

Futuro virtual?

Jornal O Estado do Maranhão 
O governo Lula não apresentou à sociedade brasileira até hoje resultados compatíveis com as esperanças criadas pelo PT ao longo de sua história. Seus programas sociais, na prática, em nada se distinguem de muitos anteriores, de resultados insatisfatórios. As frustrações são profundas porque o partido sempre se colocou como monopolista da sensibilidade à pobreza e à injustiça, levando muitos a imaginarem que a atuação da administração petista daria prioridade a esse campo, gerando bons frutos sem demora.
Parte do problema está na inexperiência dos novos administradores, no plano federal. Daqui por diante, porém, completado um ano e alguns meses da posse, essa desvantagem inicial não mais poderá ser invocada como justificativa da inação. O aquecimento, para usar uma imagem ao estilo Lula, já acabou. Agora é o jogo de verdade.
Afora isso, há outra dificuldade, maior, relacionada à própria concepção dos programas. Estes e seus assemelhados de todas as épocas têm caráter assistencialista, de reforço da cultura do favor, da dependência e do controle sobre a vida das pessoas, obrigadas a gastar não em suas necessidades, de acordo com suas próprias avaliações, mas no que a burocracia arrogante vê como melhor para as famílias, utilizando-se dos onipresentes cadastros e cartões. Há um enorme desperdício de preciosos recursos, através de suas tentaculares atividades burocráticas, em verdade muito ineficientes.
O senador Eduardo Suplicy, do próprio PT, vem propondo uma alternativa simples e superior pela qual seria dada uma complementação em dinheiro, sem burocracia, a todas as famílias pobres, de tal forma que sua renda atingisse um nível mínimo previamente definido de acordo com padrões amplamente aceitos. Elas teriam, então, a liberdade de gastar a renda extra assim obtida naquilo que consideram mais adequado a seu bem-estar. Infelizmente a idéia foi jogada ad calendas Graecas pelo partido.
Uma grande ironia, contudo, está na arena econômica. O PT não implantou suas idéias de “fora o FMI” de sua época de oposição, renunciando, assim, a inventar um novo capitalismo sem capital, sem capitalistas e sem lucros. Ainda bem. O governo vem recebendo, em conseqüência dessa atitude sensata de renúncia a idéias esdrúxulas, o “fogo amigo” de parlamentares, supostamente de sua base de apoio. Agora mesmo, parte da bancada governamental lança uma ofensiva contra a política econômica, defendida em várias oportunidades por setores da oposição.
Reclama-se dos juros. Ora, Lula adotou uma política monetária baseada em metas de inflação. Ele segue um modelo usado com muito sucesso nos países desenvolvidos e, também, nos emergentes. Dessa forma, estabelecido um objetivo para a inflação, digamos de 8% no ano, a autoridade monetária calibra as taxas de juros com o fim de a atingir a meta até o fim do período. Não há nesse regime nada que implique necessariamente em juros elevados. Mas isso ocorre no nosso caso como resultado de diversos fatores não econômicos. Vejamos os principais.
A histórica instabilidade brasileira nas regras de funcionamento da economia aumenta os riscos relativos aos investimentos privados. Quantas vezes, por exemplo, já mudamos a regulamentação sobre o movimento de capitais? Recentemente diretrizes para o setor elétrico, estabelecidas havia poucos anos, receberam um viés estatizante, com a redução ou eliminação do poder da agência reguladora do setor, antes relativamente independente. O que dizer do judiciário, tão lento em definir direitos de propriedade, dificultando também a realização de investimentos? E a confusão, ineficiência e injustiça dos aparelhos tributário e trabalhista, empecilhos à produção? E a anarquia político-partidária?
Isso tudo aumenta o chamado custo Brasil que se expressa em altas taxas de juros. Enquanto reformas de caráter estrutural nessas áreas não forem feitas nossas taxas não irão apresentar quedas expressivas. Estamos diante da opção de reformar ou estagnar. Não podemos mais ser o país de futuro virtual apenas.

14 de março de 2004

A batalha

Jornal O Estado do Maranhão 
Não se ouvia ruído algum quando ele chegava, apesar de seus tamancos, que em outros pés não seriam tão silenciosos, e de o silêncio não ser de seu temperamento de não levar desaforo para casa. Se não fosse pelo cheiro forte da fumaça do Astória recém-acesso (não se fabricavam cigarros com filtro) ou pelo cheiro de nicotina a lhe impregnar as mãos e a roupa, ambos os odores se espalhando pelas horas do amanhecer na residência, ninguém perceberia que ele já abrira o pequeno portão verde (não seria azul?) de madeira em um plano acima do da avenida, subira a pequena escada de cimento em forma de ele que levava ao terraço, tomara à esquerda evitando a entrada principal, caminhara pela comprida área que ia do terraço até o quintal, formada pelo muro e a lateral da casa, e chegara à cozinha pela porta dos fundos para tomar seu café, feito na hora, com o pão que ele mergulhava na xícara, um costume com origem na Baixada Maranhense, em Cajapió, pois de lá viera.
A mudez dos pés vinha de seu corpo magro e pequeno, de ex-jóquei na sua agitada juventude, no Rio de Janeiro, e, quem sabe, da consciência de ser uma espécie de agregado, sem a expectativa de ser integralmente da família, apesar do parentesco e da amizade. Alguém cuidadoso em não perturbar tão cedo o sossego do bangalô recém-construído. Anoitecendo, ou já bem escuro, retornava para sua humilde casa, que não sei se era seu lar, distante poucas quadras, perto da Estrada da Vitória, por onde corriam os trilhos da Estrada de Ferro São Luís-Teresina. Nunca chegamos a ver na televisão sua filha que, ouvíamos curiosos dizerem, era atriz, porque íamos dormir cedo a fim de não chegarmos atrasados à escola na manhã seguinte. Por isso algumas vezes não víamos ele sair, novamente silencioso, a não ser pelo fundo ecoar da tosse de fumante inveterado, depois do jantar.
Não me lembro de o ter visto uma vez sequer fora de nossa casa. Às vezes eu pensava que ele não ia a lugar algum, seu mundo todo estava naquele curto trajeto entre ambientes tão diferentes. Raríssimas vezes fomos à residência dele. Uma delas foi no dia de seu enterro modesto. As rugas acentuadas do rosto e o nariz adunco dos ancestrais mouro-portugueses ainda chamavam a atenção no pequeno caixão de gente do povo.
Ficaram célebres as brigas do meu tio-avô Maneco – esse o seu apelido, derivado de Manuel, nome herdado de seu pai português – com sua irmã mais velha, Marcelina, minha avó materna, no jogo de bisca. Havia uma rivalidade insuperável entre os dois revelada nas coisas mais simples e supostamente sem importância. Ele tinha prazer imenso em “matar a sete” dela. Nada podia ofendê-la tanto quanto essa desfeita inominável. Ela julgava estar isenta da regra do jogo que permite tal desrespeito, sobretudo se partia dele.
Morando ela conosco naquela época, sentavam-se os dois em torno da mesa oval da copa, no meio da manhã ou da tarde, jamais formando uma dupla, olhando-se pelos cantos dos olhos, mas incapazes de abandonar o confronto e a proximidade do rival que o jogo impunha, atraídos e repelidos um pelo outro. Convidavam cada um seu próprio parceiro, na maioria das vezes um dos muitos netos dela, ou uma empregada em momento de folga, e iniciavam a disputa.
Ver suas fisionomias então era contemplar em apenas duas pessoas muitos dos sentimentos atávicos que todos carregamos de nosso passado remoto, quando apenas começávamos a ter consciência de sermos humanos, de astúcia, alerta, medo, incerteza, agressividade. Era como se suas próprias vidas estivessem em jogo naqueles instantes de tensão extrema.
Como última arma da luta, esgotados todas as manobras do jogo, mas, ao mesmo tempo, denunciando a todo mundo por olhares, movimentos do corpo e tiques nervosos quais cartas tinha nas mãos e vendo sua sete ser “morta” por Maneco, que lhe lançava olhares triunfais e sorrisos debochados, ela recorria ao insulto definitivo: “Tu não passas de um urubu, nunca mais jogo contigo”.
No dia seguinte estavam de volta, prontos para recomeçar a batalha.

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