1 de junho de 2014

Futebol e memória

Jornal O Estado do Maranhão

          A espécie humana tem uma característica especial, a capacidade de lembrar. Sem ela não seria possível sequer a estruturação da nossa própria personalidade. Uma das evidências disso está em doenças degenerativas como o Alzheimer. Varrendo o passado da mente das pessoas dele acometidas, destrói também a personalidade.
          Mas, é preciso não cair em armadilhas. A ninguém é estranha a afirmação: “No meu tempo tudo era melhor”. A mente é seletiva ao recordar. Passado algum tempo de certos acontecimentos em nossas vidas, ela começa a selecionar apenas os fatos mais agradáveis, esquecendo muita coisa nociva ao equilíbrio psicológico. Lembrar tudo do passado seria terrível maldição. Eu mesmo tive experiência que costumo apresentar como exemplo de como eliminamos as más lembranças.
          Quando fui estudar economia nos Estados Unidos, na Universidade de Notre Dame, passei cinco anos sem colocar o pé no Brasil. Depois dos dois primeiros anos, meu inconsciente começou a eliminar de minhas recordações os costumes, atitudes, hábitos e outras usanças daqui que sempre muito me irritam mas, naquele período desapareceram quase completamente de minhas considerações conscientes: a mania de só nos divertirmos com música a todo volume, sem consideração pela vizinhança com seus moradores e pelas leis proibitivas de tal absurdo (afinal temos o exotismo de leis que não pegam e não adianta apelar, como se faria em outros países, às autoridades, em especial às polícias e ao Ministério Público estadual, pois eles irão ignorar o queixoso); o desrespeito permanente às leis do trânsito; o descumprimento sistemático de horários; a desconsideração do mérito pessoal em favor do apadrinhamento político no acesso a posições na administração pública, etc. Tivesse eu vindo de férias alguma vez nesse período, talvez houvesse decidido ficar por lá.
          Esses pensamentos me ocorrem porque em época de Copa do Mundo como agora se ouve muito dizerem que Seleção boa mesmo foi a de 1982, ou de 1970, ou de 1958 e assim por diante. Os da geração de meu pai poderiam dizer, com relação aos jogadores, que Leônidas da Silva, artilheiro da Copa de 1938, quando o Brasil ficou em 3º lugar, foi o melhor de todos; os da minha, Pelé; os da de hoje, Neymar. Aquilo presenciado por nós na juventude parece o melhor, pelo menos na visão da maior parte das pessoas, exatamente porque os defeitos, os aspectos menos agradáveis são escondidos mais tarde por nossa psique, mesmo (ou principalmente) aqueles incômodos a ponto de tornarem-se traumáticos.
          Vejamos a Seleção de 1982, tratada pela imprensa e torcedores como quase perfeita, embora derrotada pela Itália, que se classificou na fase de grupo com três empates, mas no final venceu a Copa. Os torcedores pensam naquela equipe brasileira com tanta nostalgia porque esquecem de um membro daquele agrupamento de excelentes jogadores, um autêntico perna-de-pau certificado, o sr, Serginho Chulapa, conhecido pela falta de diálogo adulto com a bola. Ele furou uma cabeçada facílima aos 12 minutos de jogo, perdendo clara oportunidade de marcar o gol. Nem minha finada avó Marcelina, pequenina como ela era, erraria. Também, o lado direito da nossa defesa foi sacrificado porque o ala Leandro não tinha a mesma ajuda que no direito Éder dava à defesa, recuando a fim de ajudá-la, conforme afirmou Falcão em seu livro Brasil 82: o time que perdeu a Copa e conquistou o mundo, de 2012. Mais ainda, ao falhar miseravelmente nos três gols da Itália, o time mostrou não ter os requisitos para ser considerado o melhor de coisa nenhuma. A verdade é esta: passado o tempo, só lembramos das virtudes daquele conjunto e esquecemos os defeitos.
          Atualmente, há análises tendentes a reavaliar a Seleção de 1994, tão criticada apesar de campeã. Segundo alguns analistas, ela foi a inspiradora do tipo de futebol jogado depois pelo Barcelona e pela seleção da Espanha, com tão bons resultados. Quem sabe, passadas mais duas ou três Copas, a Seleção daquele ano e a deste, ganhe ou perca, sejam vistas como “uma das melhores de todos os tempos”.

Novos empregos serão abertos, para enfrentar a tarefa hercúlea de atualizar nossa literatura

Globo On Line - 1/6/2014
João Ubaldo Ribeiro


          Não sei se vocês lembram, ou que fim levou, aquela história de censurarem, expurgarem ou proibirem um livro infantil de Monteiro Lobato, por aspectos considerados racistas. De vez em quando, fico um pouco impaciente e pergunto por que não proíbem logo “Os Sertões”, com tanto racismo contido na parte que todo mundo diz que leu, mas não leu, a referente ao homem. Deve ser porque de fato não leram, senão a grita ia poder começar até mesmo por Itaparica, onde somos todos, de acordo com a visão dele, mestiços neurastênicos do litoral. A antropologia da época tinha convicções que podem hoje ser qualificadas de racistas, mas era a ciência de então e no mesmo barco estão outros cuja obra haverá de merecer ser reescrita ou banida, como Oliveira Vianna ou Sílvio Romero. Imagino que devemos até nos surpreender por ainda não terem começado uma reavaliação da figura de Machado de Assis, sob a acusação de ele ter sido um mulato alienado metido a branco, ou uma condenação da crítica, por não o haver qualificado de maior escritor negro do Brasil.
Mas, no caso de Machado, dizem as novidades, não se trata de racismo, trata-se da elaboração, com a chancela e o apoio do Estado, de versões populares, ou acessíveis à maioria, de obras dele. Segundo o que saiu nos jornais, concluíram que os jovens e pessoas menos cultas não leem Machado porque não entendem as palavras e não percebem o que querem dizer certos arranjos sintáticos. Ou seja, o problema é com Machado, cujos textos obsoletos são preservados supersticiosamente e já não têm serventia para as gerações presentes. Urge, portanto, que nos livremos dessa tralha inútil e elitista, corrigindo o muito que clama por atualização.
          A observação inicial que se pode fazer sobre tal premissa é que ela se fundamenta na crença, comum entre pessoas semiletradas e analfabetos funcionais, de que, na obra literária, existe uma diferença, ou separação, entre forma e conteúdo. O conteúdo seria a “história”, o “enredo”. A forma seriam as palavras usadas pelo escritor e seu jeito de narrar. O que interessa aos que reescrevem Machado é esse “conteúdo”, que pode ser contado de diversas maneiras. Assim, “Dom Casmurro” seria basicamente o mesmo, quer tendo sido escrito por Machado, quer por Dostoiévski, Balzac ou Jorge Amado. Isto, realmente, é de uma estupidez inexcedível e contribui para que ganhe corpo a noção primária de que é possível conhecer a literatura de um país, simplesmente ouvindo, da boca dos que já as leram, as histórias contadas pelos grandes escritores, não vindo ao caso suas palavras, seu estilo, suas sutilezas, suas referências.
          É curioso como iniciativas desse tipo se veem como antielitistas. As elites, o que lá seja isso por aqui, querem preservar para si mesmas a fruição da grande arte. Só quem tem vocabulário e fez esforços para ser um bom leitor é que pode desfrutar de Machado de Assis? Não, senhor, agora qualquer um, mesmo com vocabulário restrito e praticamente inculto em todas as áreas, vai poder ter esse privilégio. Para isso, vamos rebaixar, vamos reduzir os textos a uma voz tatibitate, modernosa e linguisticamente irresponsável, vamos limitar o vocabulário e tomar outras medidas simplificadoras. Não se nota como essa posição — ela, sim — é presunçosa, arrogante e elitista. Não se pensa em estender a todos o que hoje é visto como das elites, pensa-se em baixar o nível e assim ser democrático, quando o que ocorre é o contrário.
          Os laços lógicos desse paternalismo condescendente desafiam a imaginação e, num contexto em que cada vez mais o Estado (ou seja, no nosso caso, o governo) mete o bedelho na vida individual de seus súditos, podemos temer qualquer coisa. Quanto a Machado de Assis, não se pode fazer mais nada, além de reescrever seus textos. Mas, quanto aos autores vivos, pode-se incentivá-los (ou obrigá-los, conforme o momento) a ater seus escritos ao Vocabulário Popular Brasileiro, que um dia destes pipoca por aí, tem muita gente no governo sem ter o que fazer. Constará ele das 1.200 palavras compreensíveis pela melhor parte da juventude e do povo brasileiros e, para não ser elitista, quem publicar livro ou matéria de jornal não deve passar delas e quem usar uma palavra considerada difícil não apenas será sempre vaiado quando em público, como pagará uma multa por vocábulo metido a sebo.
          Novos empregos serão abertos, para enfrentar a tarefa hercúlea de atualizar nossa literatura. Para que os poetas precisam de tantas palavras, quando as do Vocabulário seriam suficientes para exprimir qualquer sentimento ou percepção? Ou o elitista diria o contrário, menosprezando preconceituosamente a sensibilidade e a criatividade do povão? E rima, meu Deus do céu, para que se usou tanto rima, uma coisa hoje em dia completamente superada? E ordens inversas, palavras postas fora do lugar, que só podem confundir o leitor comum? Por essas e outras é que os jovens também não leem poesia.
          E a lição se estende da literatura às outras artes. O povo não gosta de música erudita porque são aquelas peças vagarosas e demoradas demais. De novo, a solução virá ao adaptarmos Bach a ritmos funk, fazermos arranjos de sinfonias de Beethoven em compasso de pagode e trechos de no máximo cinco minutos cada e organizarmos uma coleção axé das obras de Villa-Lobos. Tudo para distribuição gratuita, como acontecerá com os livros de Machado reescritos, pois continuamos a ser um dos poucos povos do mundo que acreditam na existência de alguma coisa gratuita. E talvez o único em que o governo chancela, com dinheiro do cidadão, o aviltamento de marcos essenciais ao autorrespeito cultural e à identidade da nação, ao tempo em que incentiva o empobrecimento da língua e a manutenção do atraso e do privilégio.

João Ubaldo Ribeiro é escritor

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