Futebol e memória
Jornal O Estado do Maranhão
A espécie humana tem uma característica especial, a
capacidade de lembrar. Sem ela não seria possível sequer a estruturação da
nossa própria personalidade. Uma das evidências disso está em doenças
degenerativas como o Alzheimer. Varrendo o passado da mente das pessoas dele
acometidas, destrói também a personalidade.
Mas, é preciso não cair em armadilhas. A ninguém é estranha
a afirmação: “No meu tempo tudo era melhor”. A mente é seletiva ao recordar. Passado
algum tempo de certos acontecimentos em nossas vidas, ela começa a selecionar
apenas os fatos mais agradáveis, esquecendo muita coisa nociva ao equilíbrio
psicológico. Lembrar tudo do passado seria terrível maldição. Eu mesmo tive
experiência que costumo apresentar como exemplo de como eliminamos as más
lembranças.
Quando fui estudar economia nos Estados Unidos, na
Universidade de Notre Dame, passei cinco anos sem colocar o pé no Brasil.
Depois dos dois primeiros anos, meu inconsciente começou a eliminar de minhas
recordações os costumes, atitudes, hábitos e outras usanças daqui que sempre
muito me irritam mas, naquele período desapareceram quase completamente de
minhas considerações conscientes: a mania de só nos divertirmos com música a
todo volume, sem consideração pela vizinhança com seus moradores e pelas leis
proibitivas de tal absurdo (afinal temos o exotismo de leis que não pegam e não
adianta apelar, como se faria em outros países, às autoridades, em especial às polícias
e ao Ministério Público estadual, pois eles irão ignorar o queixoso); o
desrespeito permanente às leis do trânsito; o descumprimento sistemático de
horários; a desconsideração do mérito pessoal em favor do apadrinhamento
político no acesso a posições na administração pública, etc. Tivesse eu vindo
de férias alguma vez nesse período, talvez houvesse decidido ficar por lá.
Esses pensamentos me ocorrem porque em época de Copa do
Mundo como agora se ouve muito dizerem que Seleção boa mesmo foi a de 1982, ou
de 1970, ou de 1958 e assim por diante. Os da geração de meu pai poderiam
dizer, com relação aos jogadores, que Leônidas da Silva, artilheiro da Copa de
1938, quando o Brasil ficou em 3º lugar, foi o melhor de todos; os da minha,
Pelé; os da de hoje, Neymar. Aquilo presenciado por nós na juventude parece o
melhor, pelo menos na visão da maior parte das pessoas, exatamente porque os
defeitos, os aspectos menos agradáveis são escondidos mais tarde por nossa
psique, mesmo (ou principalmente) aqueles incômodos a ponto de tornarem-se traumáticos.
Vejamos a Seleção de 1982, tratada pela imprensa e
torcedores como quase perfeita, embora derrotada pela Itália, que se classificou
na fase de grupo com três empates, mas no final venceu a Copa. Os torcedores pensam
naquela equipe brasileira com tanta nostalgia porque esquecem de um membro daquele
agrupamento de excelentes jogadores, um autêntico perna-de-pau certificado, o
sr, Serginho Chulapa, conhecido pela falta de diálogo adulto com a bola. Ele
furou uma cabeçada facílima aos 12 minutos de jogo, perdendo clara oportunidade
de marcar o gol. Nem minha finada avó Marcelina, pequenina como ela era, erraria.
Também, o lado direito da nossa defesa foi sacrificado porque o ala Leandro não
tinha a mesma ajuda que no direito Éder dava à defesa, recuando a fim de ajudá-la,
conforme afirmou Falcão em seu livro Brasil
82: o time que perdeu a Copa e conquistou o mundo, de 2012. Mais ainda, ao
falhar miseravelmente nos três gols da Itália, o time mostrou não ter os
requisitos para ser considerado o melhor de coisa nenhuma. A verdade é esta:
passado o tempo, só lembramos das virtudes daquele conjunto e esquecemos os
defeitos.
Atualmente, há análises tendentes a reavaliar a
Seleção de 1994, tão criticada apesar de campeã. Segundo alguns analistas, ela
foi a inspiradora do tipo de futebol jogado depois pelo Barcelona e pela
seleção da Espanha, com tão bons resultados. Quem sabe, passadas mais duas ou
três Copas, a Seleção daquele ano e a deste, ganhe ou perca, sejam vistas como
“uma das melhores de todos os tempos”.
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