23 de setembro de 2012

Degradantemente



Jornal O Estado do Maranhão

          Todo mundo deve se lembrar, pois a coisa causou surpresa. Nos jardins da mansão de Paulo Maluf, com quem o PT gastou durante anos toneladas de saliva e tinta, não propriamente com o fim de elogiá-lo, mas mostrá-lo como o dragão da maldade, da desonestidade, da corrupção, da falta de escrúpulos, da cara de pau, da embromation, o representante dazelites insensíveis e exploradores dos trabalhadores, o adepto do capitalismo selvagem e voraz, nos jardins de Maluf, como eu ia dizendo – não na sede do PT ou na do partido do novo aliado –, reuniu-se este com Lula e um coadjuvante, Fernando Haddad, candidato a prefeito de São Paulo, com o fim de deixar bem claro a todos que a partir daquele dia o Partido dos Trabalhadores (representante dos explorados por seu parceiro de agora, pode-se supor da retórica petista anterior à aliança com o malufismo) e seu ex-eterno adversário passariam a seguir juntos pela vida política. E tome fotografias dos três. Era de ver as caras do trio.

          Os bônus e ônus de tal aliança estariam evidentes a todos e especialmente aos eleitores paulistanos na eleição municipal no próximo mês. Lá pelas tantas o pobre do Haddad começou a dizer que em caso de vitória de sua candidatura seu aliado não levaria nada, não teria secretarias, influência na administração municipal, etc. A levarem-se a sério suas declarações, não houve um acordo, mas a submissão do malufismo ao petismo, pois em verdadeiros acordos todos os participantes ganham (e perdem) alguma coisa. Neste esdrúxulo caso, as vantagens seriam todas apenas de um dos lados. Por definição, um não acordo.
          Pois bem, leio e ouço agora uma notícia em que a princípio me recusei a acreditar. Levei uma boa meia hora tentando convencer a mim mesmo da correção de minha leitura. Mas, o negócio era tão, como posso dizer, degradante, é, isso, degradante que eu continuei a pensar um pouco mais. Transcrevo a notícia, como dada na Folha de S. Paulo, de maneira a dar ao leitor a oportunidade de fazer seu próprio julgamento. Vejam, por favor, se eu perdi alguma coisa ou se foi Haddad quem perdeu a vergonha: “Ao tentar proibir na Justiça Eleitoral um comercial de José Serra (PSDB), a campanha de Fernando Haddad (PT) afirma ser "degradante" a associação de sua imagem à de José Dirceu e de Delúbio Soares, seus colegas de partido, e à de Paulo Maluf, que integra a sua coligação.” Eu li de novo, desta vez acreditando ter lido tudo ao contrário. Quando terminei, li mais uma vez. Quem sabe o candidato do PT não havia dito “degradante”, mas algo como “instigante”, palavra tida em alta conta pelos resenhistas de livros na grande imprensa, quando falam de livros de que gostam. Ou talvez tenha sido “elegante”, ou “retumbante” ou um mero “irrelevante”, talvez “beatificante”, “brilhante”, “chamejante”, “confortante”, qualquer coisa, menos “degradante”.
          O leitor, que é bastante esperto, já percebeu a razão de meu espanto. O sujeito, comandado por Lula, se adianta no palco, chega perto do distinto público e anuncia, sem corar e sem que lhe tremam os músculos da face: eu e este homem somos irmãos agora. Daí a algumas semanas quer proibir a propaganda eleitoral de um adversário na disputa pela prefeitura porque ele o associou exatamente a quem? Aos candidatos a prefeito de São Paulo, Celso Russomano, José Serra, Gabriel Chalita, Soninha? Não e não, a propaganda o associa, quanta surpresa, a Paulo Maluf, repito Paulo Maluf, esse mesmo com quem o candidato do PT posou numa sessão se fotos.
          Já nem quero falar da rejeição a José Dirceu e Delúbio Soares, réus de alto coturno no STF por causa do mensalão e companheiros do candidato petista desde criancinhas. Isso é assunto deles. Sabe-se, porém, que a rejeição é eleitoreira, é de brincadeira, não vale nada. Nos bastidores José Dirceu continuará sendo amado pela turma, condenado ou não no tribunal.
          Mas a história com o malufismo é diferente. Ela revela a mentalidade petista do uso instrumental de supostos aliados unicamente para seus próprios fins. É a ética companheira na prática.

A arte de nosso tempo


Ferreira Gullar – Folha de S. Paulo, 23/9/2012

           Uma leitura possível da história das artes visuais - de que resultaram as manifestações contemporâneas - identificará a invenção da fotografia como um fator decisivo desse processo.
          A crítica, de modo geral, há muito associa ao surgimento da fotografia a mudança da linguagem pictórica, de que resultou o movimento impressionista.
          É uma observação pertinente, desde que se tenha o cuidado de não simplificar as coisas, ou seja, não desconhecer a existência de outros fatores que também influíram nessa mudança. Um desses fatores foi a descoberta da cor como resultante da vibração da luz sobre a superfície das coisas.
           Noutras palavras, o surgimento do impressionismo -que constituiu uma ruptura radical com a concepção pictórica da época- estava latente na pintura de alguns artistas de então, como, por exemplo, Eugène Delacroix e Édouard Manet, que já anunciavam a superação de certos valores estéticos em vigor. Não resta dúvida, no entanto, que a invenção da fotografia, por tornar possível a fixação da imagem real com total fidelidade, impunha o abandono do propósito de conceber a pintura como imitação da realidade.
          Se tal fato não determinou, por si só, a revolução impressionista, sem dúvida alguma libertou a pintura da tendência a copiar as formas do mundo real e, assim, deixou o pintor livre para inventar o que pintava.
          Pretendo dizer com isso que, se a cópia da realidade, pela pintura, se tornara sem propósito, isso não implicaria automaticamente em pintar como o fez Monet, ao realizar a tela "Impression, Soleil Levant", que deu origem ao impressionismo. Poderia ter seguido outro rumo.
          Mas, se o que nasceu naquelas circunstâncias foi a pintura impressionista, houve razões para que isso ocorresse. E essas razões, tanto estavam implícitas na potencialidade da linguagem pictórica daquele momento, como no talento de Monet, na sua personalidade criadora. É que assim são as coisas, na vida como na arte: fruto das probabilidades que se tornam ou não necessárias.
          A verdade, porém, é que, se não houvesse surgido uma maneira de captar as imagens do real de modo fiel e mecânico, o futuro da pintura (e das artes visuais em geral) teria sido outro. A pintura, então, livre da imitação da natureza, ganha autonomia: o pintor então podia usar de seus recursos expressivos para inventar o quadro conforme o desejasse e pudesse.
          Como consequência disso, não muito depois, nasceram as vanguardas artísticas do século 20: o cubismo, o futurismo, o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo -todos eles descomprometidos com a imitação da realidade.
          Mas essa desvinculação com o mundo objetivo terá consequências: a liberdade sem limites levará, de uma maneira ou de outra, à desintegração da linguagem artística, particularmente a da pintura.
          Os dadaístas chegam a realizar quadros mais determinados pelo acaso do que por alguma qualquer intenção deliberada do autor. E se a arte podia ser fruto de tamanha gratuidade, não teria mais sentido pintar nem esculpir. O urinol de Marcel Duchamp é resultado disso. Por essa razão, ele afirmou: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". Ou seja, tudo é arte. Ou seja, nada é arte.
          Por outro lado, a fotografia, que nasceu como retrato do real, foi se afastando dessa condição e, como a pintura, passou também a inventá-lo. Por outro lado, ela ganhou movimento e se transformou em cinema, que tem como principal conquista a criação de uma linguagem própria, totalmente distinta da de todas as outras artes.
          Cabe aqui uma observação: a pintura não apenas fazia o retrato das pessoas, como também mostrava cenas da vida, como as ceias, os encontros na alcova, as batalhas, os idílios etc. Quanto a isso, mais que a fotografia, o cinema criou, com sua linguagem narrativa, um mundo ficcional, que nenhuma outra arte -e tampouco a pintura- é capaz de nos oferecer.
          A meu ver, o cinema, superando o artesanato, é a grande arte tecnológica, que criou uma linguagem própria -condição essencial para que algo seja considerado arte-, geradora de um univewrso imaginário inconfundível, de possibilidades inesgotáveis, sofisticado e ao mesmo tempo popular. O cinema é, sem dúvida, a arte de nosso tempo.


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