29 de junho de 2003

Ficar

Jornal O Estado do Maranhão  
Ouço por todos os lugares aonde vou aquela conversa sobre as maravilhas do passado: “No meu tempo, sim, era bom”. E lá vem discurso sobre coisas supostamente originais que se faziam e não se fazem mais – como se houvesse novidades sob o Sol e sobre a Terra –, sobre os jovens não saberem como o mundo era melhor naquela época, sobre aventuras que, acho eu, parecem aos de hoje do tempo do Noé de antes do dilúvio, tudo num infindável lamento, parecido com o do personagem de Machado de Assis, Dom Casmurro.
Este tentou unir as duas extremidades da existência, a juventude e a velhice, construindo, já na meia-idade, uma nova casa, copiada daquela de sua infância no Rio de Janeiro do século XIX. “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”, diz ele logo no início do livro. Será isso mero saudosismo? Não poderia ser a perene tentativa dos seres humanos de voltar no tempo, a fim de escapar, ainda que apenas simbolicamente, do destino de voltar ao pó e ao nada de onde viemos?
Não era minha intenção ficar discursando aqui acerca da origem e destino dos seres humanos, tema de debate constante entre os filósofos desde que, em um ponto qualquer da evolução da nossa espécie, nos separamos de nossos parentes primatas e nos pusemos a indagar sobre o sentido da vida. Essas idéias, no entanto, insinuam-se em nossa cachola (espera aí, essa é uma palavra de antigamente) e, quando menos se espera, elas pulam para o papel e de lá não querem mais sair.
Eis o que eu queria dizer. Pode ser bem o contrário. Não seriam os costumes atuais melhores, mais interessantes, pelo menos com respeito ao namoro? Antes não seria pior? Vamos tomar um exemplo só. Esse negócio de “ficar”, dos jovens de agora, mas não unicamente deles, pois não faltam por aí coroas (eles e elas) assanhados.
Sei, assim vagamente, com base em conhecimento exclusivamente livresco, sem o apoio, evidentemente, de prática nenhuma, de nenhuma experimentação, o significado de ficar. É aquele agarra-agarra de algumas horas, em geral de jovens que se encontram nos lugares da moda nos fins de semana, sem compromissos ou promessas, principalmente a de casar, ou de reencontro na semana seguinte. Se o ficar implica também em ir para a cama é difícil dizer, a não ser no meio de seus mais assíduos praticantes. Esses, porém, não ficam revelando à toa os segredos dessa arte.
Minha interrogação é esta. Uma época que pratica o ficar com tanta desenvoltura, graça e naturalidade pode ser considerada ruim, insossa, como parecem pensar os que vivem falando sobre seus longínquos tempos? Com o fim de fazer uma comparação justa, pensem nos costumes do passado, pelo menos aqui em São Luís.
Se conseguir uma namorada era uma façanha notável, imaginem pegar na mão dela sem pedir licença à futura (?) sogra. Em outras partes do corpo, nem pensar. Aliás, pensar o pobre rapaz pensava o tempo todo. Só não tinha peito (em verdade, tinha o da namorada por perto do seu desejo, mas longe de seu alcance) de pôr as mãos à obra. Se o saliente tentasse, a vigilante mãe da garota estaria por perto, quem sabe até no escurinho do cinema, pronta para cortar as asinhas e outras partes do saliente. É claro, derrotado pelos chamamentos irresistíveis da carne, o casalzinho às vezes “fugia”. Reapareciam depois de alguns dias, ruborizados, mas felizes, os dois fujões, já tendo dado alguns passos (ou seriam muitos?) no cumprimento do preceito bíblico do “crescei e multiplicai-vos”.
As escolas, quase todas, eram destinadas exclusivamente a homens ou a mulheres. Dificilmente, apareceria um maluco com a idéia de misturar moças e rapazes no mesmo ambiente de estudo. O resultado dessa separação artificial aparecia na falta de jeito deles no trato com os do outro sexo. Daí que, nas festas, tirar as meninas para dançar tinha a dimensão de uma tragédia grega. A vida era difícil, acreditem!
Diante de tudo isso, pergunto: Era melhor ou pior? A resposta é fácil. Em dúvida não dá pra ficar.

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