12 de dezembro de 2004

Dívida, sem dúvida!

Jornal O Estado do Maranhão 
Tudo mundo sabe. Em nome de hipotética “conquista de direitos” e quixotesca “defesa da soberania nacional” face ao bicho-papão FMI, algumas bobagens foram colocadas na Constituição de 1988. Uma das mais pitorescas foi a da limitação da cobrança de juros a 12%, exigência que, cumprida, nos levaria à anarquia econômico-financeiro, porquanto implicaria a renúncia a qualquer política monetária.
Os juros, como os estudantes de primeiro semestre de economia sabem, é o preço do dinheiro. Eles são uma referência básica para todas as atividades econômicas, junto com a taxa de câmbio e os salários. Seu tabelamento em nível artificialmente baixo causaria desestímulo à poupança e problemas de crédito, com as conseqüências que não precisamos mencionar de tão óbvias. Felizmente esse dispositivo constitucional, produto da ignorância acerca dos mais elementares princípios econômicos, foi revogado, por absoluta impraticabilidade, como os congressistas perceberam em crise momentânea de bom senso.
Outra daquelas besteiras é a da auditoria da dívida externa. O artigo 26, do Ato das Disposições Transitórias de nossa opulenta Constituição, exige no prazo de um ano, a partir de sua promulgação, “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”.No caso da apuração de irregularidades, “o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato [...]”.
Ora, essa nulidade é outro nome de calote. O raciocínio enviesado é este. Se o governo do Brasil pediu dinheiro emprestado no passado e algum pilantra federal meteu os dólares no bolso, quem deve pagar pela traquinagem é o emprestador, porque os dirigentes do mesmo Brasil, hoje representado por outras pessoas, fizeram opção preferencial por colocar a culpa da molecagem indígena no satanás alienígena. Todavia, os supostos ladrões eram representantes tão legítimos do país quanto os governantes de hoje. A dívida, óbvio, é do Brasil, não de certo gatuno.
O endividamento mais recente de São Paulo não foi feito por Maluf ou Pita na condição de cidadãos, mas como delegados legítimos, embora tidos por desonestos, do município. Seus sucessores, por causa dessas virtudes, deveriam desobrigar-se do reembolso ao credor? Se alguém deve ser punido são os punguistas dos recursos ou quem tomou os empréstimos sem o devido zelo com respeito às condições de pagamento. Terá algum banco internacional enfiado dinheiro goela abaixo do Brasil?
Agora a veneranda Ordem dos Advogados do Brasil e a benemerente CNBB, apoiadas pelo MST, embarcam nessa canoa ideológica de auditoria. Eu sou a favor também de se apurarem as condições em que a dívida foi contraída (não sei se desde a época de D Pedro II ou de Deodoro), não para não pagá-la e sim para processar os eventuais larápios. Se se descobrir que não tomamos emprestado x, mas a metade de x, ótimo, vamos pagar apenas o devido, contudo pagar. Isso, porém, não livrará a cara dos ladrões nacionais nem colocará a culpa dos nossos males em ombros estrangeiros.
A fim de mostrar ao leitor até onde chega o delírio de algumas pessoas quando se deixam contaminar por idéias pré-concebidas, menciono Beverly Keene, especialista que participou de um seminário sobre o tema. Primeiro, ela fez a redescoberta da roda: “A dívida não é natural. Isso tudo foi construído e vendido”. É verdade, apenas num sentido trivial, pois toda a cultura humana igualmente é uma construção. Depois, propõe uma solução “política” através, de uma “batalha cultural”. Esse é o tipo de palavra de ordem de passeata que não significa nada. Ou significa tudo, dá no mesmo.
Assim como se arrancou da Constituição a idéia de tabelamento dos juros, já é hora de se arrancar também a de auditoria da dívida. Sem dúvida!

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