4 de fevereiro de 2018

Competência

Jornal O Estado do Maranhão

Passo os olhos pela programação dos desfiles da chamada Passarela do Samba. A lista anuncia tanto os tradicionais concursos do Rei Momo, da Rainha e das Princesas do Carnaval quanto a entrega das chaves da cidade às autoridades carnavalesca. Elas só as devolverão ao prefeito, se não estiverem exaustos e, quem sabe, de ressaca, na Quarta-Feira de Cinzas. Espero a eleição de um rei do tipo tradicional, pesado, mas ágil e alegre, bom sambista, bem-humorado e magnânimo com os plebeus: os homens do sexo feminino, as mulheres, do masculino e o restante dos tradicionais súditos; não um rei malhado, como vimos alguns anos atrás.

Vi nomes curiosos, de tom marcial, entre os blocos tradicionais e entre os organizados (deve haver os desorganizados, mas estes não são mencionados), mas não entre as escolas de samba, turmas de samba, tribos de índios e blocos afros.

Entre estes últimos, vejo no primeiro lugar da lista do desfile da terça-feira de Carnaval, o GDAM. Quem vê o grupo em desfile na passarela e em outros circuitos da folia (esta, desconfio, é palavra usada nos dias de hoje somente na época de Carnaval) poderá incorrer no erro de pensar nele como apenas um bloco no meio de tantos. Não é. Sua participação no Carnaval, apresentando como uma de suas atrações um corpo de dança muito bom, é tão só uma de suas meritórias atividades.

O GDAM completará em breve 32 anos de fundação, sempre sob a liderança de meu amigo Cláudio Adão. É uma Organização Não Governamental que vem, durante esse tempo todo, prestando inestimáveis serviços de orientação contra as drogas e de atendimento a crianças, adolescentes e jovens de comunidades de baixa renda de São Luís e de uma área de quilombo, a de Santa Rosa dos Pretos, na zona rural de São Luís. Mais, ainda, o GDAM contribui com divulgação do reggae. Seu bom conceito permitiu sua habilitação ao recebimento de recursos do Criança Esperança, que hoje apoia um de seus projetos, de vários para os quais o GDAM tem obtido financiamentos ao longo do tempo. Suas receitas, portanto, não dependem do setor público.

Seu sucesso é exemplo a ser seguido e levanta a interessante questão acerca da conveniência ou não do apoio governamental, com recursos de impostos, a grupos da cultura popular. A meu ver – penso, em especial no Carnaval e no São João – estes nasceram e cresceram sozinhos, prova de sua capacidade inicial de andar com as próprias pernas. Mais tarde, sob o argumento falacioso de “apoio a nossa cultura”, passaram a ter seus custos bancados pelo setor público, como, por exemplo, o bumba-meu-boi e as escolas de samba, chegando-se, até, à institucionalização da figura do dono de boi. Ora, uns e outros, os bois e escolas, são empreendimentos privados lucrativos. Como tal, devem arcar com suas próprias despesas, especialmente em meio à crise como a atual, de que mal a economia começa a sair, mas à qual voltará sem a reforma da Previdência. Se, no entanto, forem deficitários, não merecem sobreviver, pois o déficit é sinal de incompetência administrativa ou da rejeição a eles, expressa no mercado, pelos apreciadores das escolas e dos bois. O GDAM sobrevive porque agrada e é competente.

Parabéns a Cláudio Adão e seus companheiros.

1 de fevereiro de 2018

Apresentação de meu livro de crônicas "A casa e outras crônicas e memórias"



Apresentação ao livro de crônicas
"A casa e outras crônicas e memórias"



Um cronista da memória

por Luiz Alfredo Raposo

“Não faça versos sobre acontecimentos” — é receita bem conhecida de Drummond. Mais longe vai outro Carlos, esse o pernambucano Pena Filho. Como se fora um velho lente em aula prática de manipulação, a bata branca entre tubos e retortas, ele ensina no soneto: “Tome um pouco de azul se a tarde é clara”. E este azul de céu sem nuvem, de céu mariano, é apenas outra forma de não-acontecimento.

Ah, esses poetas farmacêuticos... Tivessem eles próprios seguido seus preceitos, e não seríamos hoje legítimos legatários do ouro todo de joias como O desaparecimento de Luísa Porto, A morte do leiteiro, O padre e a moça. Ou de um cordel encantador, como é o Episódio sinistro de Virgulino Ferreira, narrando a chegada de Lampião em Vila Bela (“Volta Seca, solte os presos/ que o mundo já é prisão”). Mas a fórmula que eles produziram ainda assim tem a sua utilidade: invertido o sinal, ela se transmuda — como que por arte de alquimia — na fôrma canônica do gênero “crônica”. Sobre acontecimentos esta se faz. O cronista clássico é o viajante profissional, sentado à janela, com a obrigação contratual de comentar a paisagem. O mundo, seu país, sua província, sua cidade, sua rua. Sempre em certos dias e em tantos toques.

É isso: comentário, antes que ensaio. Trabalhador de jornal, o cronista apanha o serviço onde o repórter deixou. Escolhe dentre a produção deste, sempre apressada, o que o tocou mais, e lhe acrescenta o condimento do humor. A graça dançarina do sorriso, disse Gustavo Corção a propósito do Machado cronista. Sorriso branco de carmelita ante o feliz. Um neto, por exemplo, em flagrante de reinação. Esgar swifteano frente ao grotesco, à sem-razão. Ou riso escarninho e feroz, de dentes à mostra, em resposta às brutalidades do mundo. Só não vale chorar... Por revestir características tais, de guisado de prosa e poesia, trata-se de gênero muito mais difícil do que a princípio parece. Não está obrigado a deixar de ser jornalismo, aprofundando o trabalho do repórter na busca do que-quando-onde-como. Nem a ser quase-literatura, entre literatura e jornalismo. Pode ser literatura da boa.

Lino chega lá. E começa que o gênero lhe cai bem. Prova é que, por anos a fio, ele vem entregando a mercadoria na especificação acertada. Toda semana. De uns tempos para cá, toda quinzena. E, não que eu saiba, por interesse material, mas pelo puro prazer de fabricar e entregar. E ainda, estou certo, pelo de exercitar aquela aplicação anglo-saxônica que, no ambiente ianque do meio oeste industrial americano, onde viveu vários anos, acaso terá descoberto ser também algo sua. O presente volume é uma amostra representativa dessa produção, em seis anos de labuta (de 2003 a 2008), no eito jornalístico de O Estado do Maranhão.

Como reza o figurino, nosso autor fala quase sempre de um assunto da hora, sacado das manchetes, ou acontecimento vivo e recorrente, zoando na cabeça dele e do leitor. Mas o leitor de hoje constatará que Lino não é o cronista da sua cidade stricto sensu. Das dores e alegrias de um personalíssimo dia a dia (em Fortaleza, houve um jornalista, esqueço-lhe o nome, que, durante muitos anos, fazia num dos jornais locais sobre esses assuntos miúdos uma Crônica da Cidade Amada. Bonito nome para a obra de um cronista municipal...). Insurge-se ele, é certo, contra os maus costumes urbanos: a música alta demais, tirando o sossego dos vizinhos; o abuso da buzina; o estacionamento em locais proibidos; as filas duplas na porta das escolas; o desrespeito aos sinais de trânsito; os abusos dos cachorros de luxo e de lixo nas promenades pelas calçadas e praças. E sobretudo usa de todo seu poder de indignação para verberar numa crônica o desrespeito à lei seca no trânsito (“o equivalente da Lei de Responsabilidade Fiscal na economia”) e denunciar a tragédia que provoca no país (“50 mil mortos num ano”, “mais do que os eua tiveram na guerra do Vietnam”). Mas são, esses, problemas característicos, antes de um país e uma época, do que de sua São Luís.

Na verdade, a pauta do nosso cronista bota mais longe. Das 75 crônicas, algo como 30% tratam de assuntos econômicos e políticos de âmbito nacional ou internacional. Curiosamente, a partir de 2005. Nos dois primeiros anos, tema dessa natureza só uma vez é abordado, e já no finzinho de 2004. Ainda assim, ao sentir Lino ganas de desmanchar no ácido da ironia a obsessão de algumas entidades com a ideia de uma auditoria na nossa dívida externa. Objeto de uma esdrúxula disposição transitória da Constituição de 1988, de há muito perempta àquela altura. Mas era o clima! O ameno período inicial do governo petista, em que se colhia (inclusive os cronistas!) o pomar maduro deixado pelo antecessor. E o pt ainda xingava a colheita benfazeja de herança maldita... Nos anos seguintes, alterada a cena , vem o vernissage satírico das feridas expostas do petismo: numa meia dúzia de textos, os desdobramentos do Mensalão e o desmascaramento ético do partido no poder (“antes queriam ser diferentes, agora, iguais”). A passividade ante a expropriação dos ativos da Petrobras pelo governo bolivariano de Evo Morales e a “compreensão” compreensível, mas injustificável ante o fechamento por Chávez da rede de televisão oposicionista rctv (um ato legal e democrático, segundo Lula). O apagão aéreo no auge, em fins de 2006, resultado direto da falência da Varig, que um governo menos infectado pelo vírus antiprivatista teria evitado (talvez tivesse feito um “Proer da Varig”: estatização, saneamento, entrega dos culpados à Justiça, reprivatização em leilão de bolsa). O abuso dos cartões corporativos, no âmbito federal, financiadores de uma gastança escandalosa (e criminosa), e a tapeação das pseudossoluções anunciadas pelo governo, na verdade para esconder, mais do que para resolver.

Fazendo numa crônica um balanço da privatização da telefonia, mostra, contrariamente aos slogans petistas, a notável democratização resultante e os enormes benefícios trazidos por ela às pessoas comuns. Antes, telefonia era “coisa exclusiva da elite”. Mas alerta que, para garantir esse novo pão, “o telefone nosso de cada dia”, há que estar de olho no perigo sempre vivo da monopolização. Desmascara a embromação do pac: pouco mais do que uma sigla publicitária, que só produzia o impressionante total quadrienal de r$ 0,5 trilhão ao juntar os investimentos cobertos pelo orçamento fiscal (na grande maioria de inclusão forçada, “mesmo sem plano nenhum”) com os privados e os das estatais. Os primeiros, meras estimativas. Quanto às estatais, algumas com ações em bolsa, questiona o sentido de falar em impor a elas investimentos que teriam de ser antes combinados com os “russos”, o mercado. Ante a escandalosa falta de ética e de etiqueta da nossa vida congressual, mais uma vez exibida em episódio recente, tem um instante de saudosismo. Evoca os senadores que Machado descreve em O Velho Senado. Em majestosas sobrecasacas, com suas barbas solenes e seus latins, eles foram atores de um período de consolidação da unidade nacional, é certo. Mas de crônica paradeira, que nos empurrou para trás no mundo, em termos econômicos. É o que constatou em números a historiografia moderna de um Jorge Caldeira.

Mas Lino, acusando uma vez mais as influências ou afinidades anglo-saxônicas, não é de pensar só com a cabeça ou com o coração. Está sempre a procurar com as mãos, atento aos detalhes, um jeito melhor de fazer, de resolver. Numa peça antológica, mostra o despropósito da política de cotas raciais implantada pelo governo Lula. Política que instituiu uma discriminação às avessas e, sobretudo, prejudicial, porque adversa ao princípio do mérito. E apresenta a alternativa adotada com sucesso pelas universidades americanas (e pela Unicamp nossa) da pontuação compensatória: a atribuição aos grupos menos favorecidos, não-brancos ou oriundos da escola pública, de um certo número, igual para todos, de pontos adicionais às notas obtidas no exames. Uma lambuja, em dialeto de menino, com o que se nivelavam as desvantagens iniciais de preparação, sem ferir a hierarquia do mérito. Não adiantou, dez anos depois as cotas permanecem intocadas... Enfim, para não me alongar mais, num texto de setembro/2008 ele mostra o economista moderno que é, ao comentar o socorro massivo, o giga-Proer que o governo americano (seguido depois, dos europeus e asiáticos) estava a conceder ao seu sistema financeiro, ameaçado de bancarrota pela crise do subprime. Os de esquerda diziam tratar-se de medida neoliberal, protetiva dos grandes interesses. A direita radical acusava-a de comunista, uma intromissão do governo num problema que cabia ao mercado resolver sozinho. Mas Lino sabe das coisas e argumenta: “o uso do dinheiro do contribuinte servirá ao fim de impedir que pouco mais adiante ele se veja sem emprego e sem renda”. Não deu outra, as economias maduras aguentaram o tranco, o sistema financeiro readquiriu um mínimo de saúde, sem grandes prejuízos nem ao emprego nem à renda. Os governos estavam certos, a avaliação de Lino, correta.

Noutra direção, dos assuntos culturais, o cronista traz a sua cidade notícias e recados de cidadão do mundo, de um clube do qual é sócio. Um desses recados é a acolhida sem reservas que faz ao reggae, cuja absorção ele vê como parte de um enriquecedor comércio intercultural. E com uma ponta de emoção, também como um épico, um episódio vivo da aventura humana. Onda vinda do Caribe até o Maranhão de praia em praia, deixando em cada praia um sotaque. Em dois fevereiros, em nome do direito da festa para todos, insurge-se contra o que chama de concentração do carnaval, crescentemente tornado, em São Luís e no resto do país, um espetáculo de show business, em que uns poucos brincam e os demais veem (ou não). Aponta, certeira e paradoxalmente, a relação de causa e efeito disso com o patrocínio oficial, que o festejo passou a ter nas últimas décadas. E escarnece de deformações associadas, como a ridícula adesão a padrões de fitness que levaram (só por um momento, felizmente) aos reis momos magros e malhados. Papai Noel é presenteado em dois Natais. É que para o avô de Davi, o Bom Velhinho vale mais do que uma tradição: é um mito, uma dessas mentiras poéticas nas quais é gostoso acreditar. Os mitos, aliás, sustentam os antropólogos culturais, são coisa muito séria, cumpriram o papel humanizante de unir, criar lembranças e emoções comuns, e assim transfigurar a horda humana em tribo. E como, dizem, a magia nunca se conclui, a cada manhã precisamos deles para levantar e prosseguir. Enfim, Lino comenta o centenário de morte de Machado de Assis, falando do avanço de seu prestígio. E por um método (de novo!) de scholar anglo-saxônico, de professor de departamento de letras de universidade americana: usa as estatísticas de referências bibliográficas (a simples ideia que teve de obtê-las já me fez pasmar!), para aferir a crescente presença do bruxo de Cosme Velho nas mentes e nos corações do mundo inteiro. O tempo a confirmar seu valor universal, para a alegria do machadiano devoto da Ponta d’Areia. Que é também a de muitíssima gente. Diria o agregado José Dias que o culto a Machado é hoje parte do catolicismo da literatura...

Lino, acabo de dizer, é um cidadão do mundo plantado à beira-mar de São Luís. Mas, ao mesmo tempo, uma voz do mundo-Maranhão. Às páginas tais, propõe como programa “falar de sua aldeia para falar do mundo”. É o que faz quando valoriza a produção cultural autóctone, a ponto de, aos que não conhecem sua propensão importadora, talvez parecer um chauvinista. Veja-se sua crônica sobre a extraordinária experiência da Companhia de Dança Cazumbá. Ou sua devoção ao ciclo inteiro do São João, ritos, ritmos e danças, que ele vê como o verdadeiro Carnaval do maranhense. E, digo eu, do nordestino em geral. O mais é a valorização do décor, que ele, de propósito, bota de personagem eminente nas crônicas “locais”. A São Luís que eu, olhando do lado de fora, desde menino vejo como que encerrada numa redoma, contando seus séculos de história. Uma urbe, mostra ele, apegada a suas ruas e praças, que orgulhosamente insiste em chamar pelos amoráveis nomes batismais: rua Grande, da Paz, do Sol, da Cruz, de Santaninha, dos Remédios, do Passeio, praça da Alegria, antigo largo da Forca Velha (quer dizer, veio depois outra mais nova...), largo do Carmo. Aí, pelo menos, é minha impressão, não conseguiram desembargadores, senadores, governadores imortalizar seus nomes às custas da história e da tradição popular.

Mas às vezes acontece que nada acontece. Ou então os acontecimentos entediam, como aconteceu a Valéry. E esse é o teste revelador do cronista, a prova da trivia. Que a Rubem Braga, deu ocasião de acompanhar três dias seguidos de acrobacias de uma borboleta amarela pelo centro do Rio (sim, naquele tempo o maior cronista do Brasil trabalhava na diária como uma faxineira!). Para Lino é justo quando ele costuma receber as visitas da graça. E ei-lo que brinca com o uso vicioso do “enfim” e outras palavras. Graceja com árbitras e bandeirinhas de futebol de bela plástica e nomes bonitos. Ridiculariza o mandado de prisão contra o cachorro Bingo, caso levado até o Tribunal de Justiça do Maranhão. Zomba de uma iminente guerra entre Piauí e Maranhão por conta da tentativa de deportação do Coragyps atratus, o popular urubu preto, réu do crime de interferir no tráfego aéreo do Estado vizinho. Escarnece da moda das dietas de nomes chamativos e dos espertos que tiram proveito da vaidade humana com seus chás e publicações. Inventa um profeta que tranquilamente anuncia o fim do mundo. Arremeda os videntes de Ano Novo e suas previsões nunca checadas. Ri do caráter do morcego (Rhinolophus ferrumequinum!), que, pior do que o Palhares rodrigueano, que beijava as cunhadas pelos corredores, faz sexo com a sogra e até com a avó de sua mulher. Propõe uma campanha nacional de levantamento de fundos para erguer uma estátua ao Honesto Desconhecido, o único deputado estadual de Rondônia, de nome não revelado, a não se envolver em falcatruas então descobertas por lá. Comenta, num risonho ceticismo, o caráter volátil da Dietética, sujeita a reviravoltas espetaculares. O comentário, de 2008, era motivado pela novíssima constatação de pesquisadores americanos de que a tão difamada manteiga não fazia mal algum. Seria tão sadia e inocente quanto... a margarina! Coitada, alguns anos depois, esta é que se vê lançada na geena, no rol dos alimentos comeu-morreu. Sua produção está em queda livre. Não resta dúvida, nada muda mais do que os preceitos da Dietética. Mais do que o desenho dos sapatos femininos. Mais até do que o passado...

Falei não ser Lino um cronista municipal. Mas há momentos em que ele é definitivamente do seu chão. Por exemplo, quando relembra amigos recém-falecidos: o barbeiro Djalma, leitor dos clássicos brasileiros e portugueses; o cronista Oliveira Ramos; o doido oficial de sua primeira mocidade, Rei dos Homens, a quem tributa uma crônica emocionada e pungente; o arquiteto norte-americano John Gisiger, benfeitor da cidade, de cujo patrimônio arquitetônico ajudou a cuidar; José Aniesse, querido amigo de infância no Monte Castelo; Lucy Teixeira, figura literária de projeção nacional (na juventude, organizou com o adolescente Ferreira Gullar o Congresso Súbito de Poesia!) e amiga temporã. A ela agradece pelo estímulo que recebeu, no início da carreira literária.

Ou quando de alguns, vivos, comemora vitórias. É o caso de Mílson Coutinho, “repórter de coisas antigas”, saudado no lançamento de livro sobre ouvidores-gerais e juízes de fora do período colonial; ou de seu ex-professor Raimundo Lobato, que vinha de receber a láurea de cidadão maranhense; ou do poeta oitentão José Chagas (andando com Lino, um dia eu lhe vi um soneto grafitado num muro de São Luís! E o fato feito foto produziu um microssismo poético em meu clã recifense). Por último, mas não menos notável, para dar as boas vindas ao neto Davi recém-nascido, o autor pula a cerca e na fôrma da crônica exara um poema.

Sobre outros, deixa o território da crônica e escreve sem evento-base nenhum. É um papo gratuito, por pura precisão de compor um cantar de amigo. Zagalo, de quem é fã confesso, é um deles. De Tribuzzi, que há tempo se foi, fala a saudade. Narra episódios da convivência profissional e pessoal, e conta do ser humano por detrás do grande poeta, amigo dos amigos e das coisas simples. No ex-presidente Sarney, destaca finamente: a hostilidade recebida viria sobretudo de suas qualidades de craque político, que os adversários não conseguiriam emular... A lista (que é apenas amostral) evidencia em Lino os dons do afeto, a queda para a philia ampla, sem aduana nem tarifas. São todos recebíveis, gente pobre e gente rica...

Também fora dos limites estritos da crônica, baseado sobretudo em ex-acontecimentos ou em recordações de fatos antigos que não deram no jornal, há um bairro para os seus. A maioria dos quais já dormiam profundamente, à época da escritura. O tio Cursino merece duas matérias, a última, por ocasião de seu falecimento aos 91 anos. Ainda adolescente, em meados da década de 30, fugiu de casa. Como se ditasse com a própria aventura a letra daquela canção de Caymmi, “pegou um Ita no norte e foi pro Rio morar”. Ser jornalista (e gauche na vida, sina muito Raposo, muito nossa). Para o sobrinho fascinado, ele será sempre alguém que, “ao nascer, já possuísse todas as letras da língua portuguesa”. A propósito de um robô americano acabado de pousar no solo de Marte, Lino recorda um programa de uma emissora de rádio de São Luís (decalcado de Orson Welles), simulando uma invasão da cidade por tropas marcianas. E isso o leva à figura de Haroldo Raposo. Aquele que, ao ouvir a notícia, num gesto característico, bota o pau de fogo nos quartos e vai para a esquina esperar os homenzinhos verdes, disposto a trocar sua vida pela de uma penca deles. Era o meu (o nosso) tio Dom Quixote. Um Dom Quixote do Anil, serventuário e casado, “quotidiano e tributável”. E que alcançou a suprema ventura de ter Dulcineia no ofício de Sancho Pança... Lino evoca também o tio-avô Maneco e a avó Marcelina, dois irmãos ranhetas frente a frente no jogo da bisca. E o duelo sempre repetido e nunca resolvido ensinava ao menino as humanidades animais: “astúcia, alerta, medo, incerteza, agressividade”. Sua mãe, minha tia Maria... O retrato de Lino é contido e fiel, em meio à dor da perda. Conheci-a, eu ainda muito menino, ela beirando os 30. E confirmo: parecia uma portuguesa bonita, louçã, tinha o caráter firme, zelos de uma mãe do reino animal (com um medo pânico das más influências de alguns meninos da vizinhança, “pequenos sem costumes”). E ainda hoje ela me sorri com aquele sorriso.

Esses parentes todos hoje habitam, como disse, extramuros, no subúrbio vivente da memória. Noutro setor deste, estão a infância profunda e a primeira mocidade, de que nos é dada, em forma de crônica, uma dezena de retratos. Destaco só alguns que bolem mais comigo. O livro começa com Lino contando como um ônibus comercial de seu pai, o Cara chata, por um descuido, meteu-se bem no meio de um trágico entrevero político local, nos idos de 1951, que resultou em perda de vidas. E, milagre ou corpo fechado, o ônibus voltou do tiroteio indene e inemotivo, como um espécie de Burrinho Pedrês mecânico. Noutra página, narra o sempre doloroso rito de passagem, a entrada na escola. Num jardim da infância da praça da Alegria. O tom (o páthos) a mim lembrou um enjeitado numa roda, exposto à curiosidade da praça. E ele, muito quieto e retraído. Aliás, a primeira impressão que me deixou o primo mais novo foi de molengo, pouco combativo. Menino psicanalisando outro menino, eu estava longe de adivinhar o bravo, o valente que a vida revelou. Que neste livro mesmo não teme apontar o dedo para um profissional que julgou remisso, ao tratar de sua mãe enferma. Relembra o cronista os médicos de família de seis décadas atrás, ao focalizar um deles de sua hagiografia afetiva: seu pediatra Dr. Amaral de Mattos. O respeito que ele inspirava a sua mãe e a ele próprio, doentinho, já era meia cura andada... A circunspecção, os usos e costumes clínicos, a letra indecifrável — tudo comunicava-lhe uma certa aura sobre-humana de instituição. Para o que contribuía o próprio nome, com um quê de razão social...

Orestes... E, aqui, as memórias de Lino se misturam com as minhas. Uma única vez o vi, quando estivemos em São Luís, em 1954. E minha visão é muito vaga: um paletó de brim e talhe barnabé, vestígios de espinha... E um genuíno afeto pelo tenente meu pai. Sua visita, decifrei, era a anunciação de um bem geral e imenso. E esse o segredo que guardei. Dois anos depois, informa Lino, Orestes tombou (acaso levasse ainda o velho paletó surrado), num conflito entre duas facções da polícia militar. Sem ter nada com aquilo. Vítima de uma bala rigorosamente perdida, já que as duas frações usavam armamentos iguaizinhos. Vítima também, talvez filosofasse alguma alma shakespeareana, do destino que há nos nomes...

Apesar de o conteúdo memorialístico não exceder 20% do total, seu impacto foi forte, confesso. Por aí, terá o leitor um começo de avaliação: uma testemunha do poder evocativo do cronista. E isso explica o título dado a esse estudo-apresentação. Lino, um cronista da memória. E vou além: Lucy Teixeira lhe cobrava contos. Eu espero um livro de memórias. Até já o vejo sendo feito e me agrado do feitio. Quadros compostos no molde da crônica, em regime de dieta lírica. Formando blocos soltos, que aos poucos são completados, ajustados e unidos a outros num todo inteiriço. Como fizeram os operários com o telhado do Cine Monte Castelo. Um desses blocos eu aguardo com ansiedade: aquele em torno de um Carlos especial, meu tio Carlos Saturnino Moreira, pai do autor. Para mim que o conheci e li Guerra e paz, um santo maçon de Tolstoi.

Exibi os naipes, as cores temáticas das crônicas. Faço, agora, uma breve referência ao desenho das cartas. Ao estilo literário, ao modo de dizer do autor. Em cada texto seu, lá está a pitada de sal, a graça que faz sorrir e pensar. Os jogos de palavras, os achados felizes que tudo iluminam. Ao abordar o processo de formação de palavras, ele se toma de evolucionismos e sugere que as palavras espalham “genes etimológicos”. Compara certeiramente a Baixada Maranhense a “um pequeno Pantanal Mato-Grossense”. Recorda em Rei dos Homens os ares benevolentes de “um rei escandinavo”. Diz do rei momo Herberth Matos, com seus 140 kg, que “sambou com muita leveza”. No texto sobre o morcego Rhinolophus ferrumequinum, reinventa nelson-rodrigueanamente a figura mítica do “canalha irretocável”. Passando, muitos anos depois, defronte de sua casa de infância, tornada estabelecimento de serviços, ele se surpreende ao vê-la “com alma estranha”, mercantil, de quem “contabiliza pequenos lucros”. De José Aniesse recorda “aquele jeito de andar como quem está sempre a ponto de dar um abraço amistoso”. Na crônica sobre o pac, sentencia, machadiano, que “todos os governos são otimistas”. Sobre a volta definitiva a São Luís de Lucy Teixeira, diz que ela veio ali “ficar e fincar sua luz”. Reproduz de Machado o flash verbal que revela todo o ambiente do senado vitalício do Império: “metade militante, metade triunfante”. Narrando as interrupções de seus devaneios de criança que espiava o telhamento do prédio vizinho em construção: “e lá se iam as telhas e a imaginação”. Enfim, ao analisar a arte de contar histórias da sua e minha avó Marcelina (de puro estilo cervantino, verifiquei depois que li as Novelas exemplares), desvela o segredo de toda literatura, inclusive da crônica: ela trabalhava com “o barro da poesia que há em todas as coisas e as une”.

Aliando, assim, aos dons do espírito os do estilo, Lino cumpre o dever de ofício do escritor: agradar para construir. Eu falo por mim, estou sempre a procurar (na internet) por suas crônicas, e costumo sair delas melhor do que entrei. Daí porque eu defendo que os escritos merecem segunda vida (ou via), nessa nova embalagem mais duradoura. Chega, porém, de blá-blá-blá! Alonguei-me um pouco demais, desconfio. Mas tudo foi emoção. Resposta à honra que me deu o autor de me pedir uma apresentação. Apresentação a rigor desnecessária. O que vale mesmo é entrar no livro. Tomar assento no Cara-chata (dou garantias de que não há mais perigo de vida no fogo amigo vindo dos partidários de Eugênio Barros!), e seguir um roteiro qualquer escolhido. Contanto que, de parada em parada, de crônica em crônica, o leitor chegue até o terminal festivo do centenário da Academia Maranhense de Letras. Aí, Lino lhe entregará a prestação de contas da memorável passagem que teve pela presidência daquele sodalício. Recebê-la é um direito seu de cidadão. Pois então, só me resta desejar: boa viagem! E boa leitura!

Poço da Panela (Recife), julho/2016

Machado de Assis no Amazon