25 de fevereiro de 2001

Santa de casa

Jornal O Estado do Maranhão
O Carnaval está conosco novamente. Embora de origem portuguesa, de mistura com elementos africanos do samba, que lhe serve de complemento musical e suporte, nada mais brasileiro do que ele, junto com o futebol. Afirma-se, com freqüência, que suas festividades, permitindo a manifestação de desejos e comportamentos reprimidos fora da época carnavalesca, fazem bem à alma. Um tipo de divã psicanalítico coletivo para libertar o inconsciente nacional de seus traumas.
Mas ele pode contribuir não apenas para alívio do espírito. O Carnaval maranhense, este ano, poderá ajudar na medicação do corpo, por ele mesmo tão maltratado nos três dias de festas. É que de uns tempos para cá, as Escolas de Samba resolveram homenagear figuras ilustres da vida brasileira, em todos os campos. Poetas, escritores, compositores, atores, artistas plásticos, políticos, cientistas, jogadores de futebol.
Aqui em São Luís, seguindo a tendência, a Favela do Samba faz, no desfile oficial das Escolas, uma homenagem à professora Terezinha Rego, da Universidade Federal do Maranhão – Ufma, com o samba-enredo “Terapia Natural ou de Cabaça em Cabacinha Sou mais Terezinha”, dos compositores J. Assunção, Escrete e Tião. A letra fala da contribuição dela ao conhecimento científico, no campo da fitoterapia, que é a cura pelo uso de plantas. É o Carnaval dando a mão ao corpo.
Dos estudos e pesquisas da professora, ao longo de quatro décadas, resultou, entre muitas outras coisas, a obtenção da essência de cabacinha cujo nome científico é luffa operculata. A substância é usada na fabricação de um remédio de eficácia reconhecida, pelas comunidades científicas, brasileira e estrangeira, no tratamento da sinusite.
Mas, falar da planta cabacinha não é, tão somente, falar da matéria prima do medicamento. É também fazer alusão à própria história do Carnaval. O caso é que cabacinha era um limão de cera colorido, cheio de água, mas também de cal ou outras substâncias tóxicas, que se jogavam nos foliões durante o entrudo, forma de Carnaval primitivo, e parece que bárbaro, no século XIX. (Quase digo século passado, pela força do hábito, adquirido ainda no século XX, de assim me referir ao XIX).
A homenagem é justa, justíssima. A professora é uma das dez brasileiras no “Quem é Quem no Mundo”, publicação americana de larga circulação em muitos países. Ocupa uma cadeira, a de número 69, da Academia Nacional de Farmácia. Ministra a disciplina de Etnobotânica no Mestrado em Saúde e Ambiente da Ufma. Trabalha no herbário Ático Seabra que tem 10.800 espécies de plantas catalogadas.
Ela tem, publicados, Fitogeografia das plantas medicinais do Maranhão e Cinqüenta chás medicinais da flora do Maranhão, dois livros de prestígio nos meios acadêmicos brasileiros, além de artigos nos anais da Sociedade Botânica do Brasil. Coordena o Programa de Fitoterapia, da Ufma, que atende pessoas pobres de bairros periféricos de São Luís. Uma de suas monografias faz parte do conjunto dos documentos, na área de fitoterapia, da Agenda 21 nacional.
O mais admirável em tudo isso, porém, é a dedicação permanente, denodada, muitas vezes sem nenhuma compensação material, da professora Terezinha ao seu trabalho que tantos benefícios vem trazendo aos maranhenses. Além disso, centenas de pessoas, de todas as regiões do país, a procuram para alívio de seus males. A fé ­no que faz e a certeza de estar contribuindo para tornar melhor nossa sociedade ajudam-na, certamente, a persistir no seu esforço e levar adiante sua missão.
Temos aqui um belo desmentido ao dito de que santo de casa não faz milagres. Neste caso, Terezinha, a santa de casa, faz. Até no Carnaval. Por isso, é injusto deixar para nossa posteridade o reconhecimento dos méritos dela. Nós todos não estaremos mesmo presentes quando esse tempo chegar. O bom mesmo, o certo, é que se reconheça agora o que deve ser reconhecido, como está sendo feito. Os pósteros acrescentarão seu quinhão de justiça ao examinar sua obra.

18 de fevereiro de 2001

Almas vivas

Jornal O Estado do Maranhão
Leio nas folhas, vejo na televisão que, por falta de pagamento, vão despejar os mortos dos cemitérios do Gavião, São Cristóvão, Maracanã, Vila Maranhão, Tibiri, Santa Bárbara, Anjo da Guarda e São Raimundo. “A medida, apesar de funesta, é amparada por leis federais e municipais”, diz O Estado do Maranhão. Deve ter mesmo o tal amparo legal. É um pressuposto do contrato de terceirização da administração dos cemitérios que a prefeitura de São Luís assinou com a empresa Centurion.
De qualquer modo, quando se pensava que os mortos estivessem na paz eterna, eis que resolvem perturbá-los. Centurion é a denominação inglesa de centurião, comandante de uma centúria que, como sugerido pelo nome, era uma centena de soldados que formavam uma companhia nas tropas romanas. Haverá aí uma insinuação de que a ameaça de despejo é pra valer, podendo a empresa, se necessário, convocar o poder das armas para fazer cumprir a “funesta” lei?
Como se sabe, as irrevogáveis leis da natureza demitem todos da vida, mais dia menos dia, e nos mandam, pobres mortais, de retorno ao pó e ao nada. É verdade que uns poucos resolvem se antecipar, antes de mandados embora, evitando o curso comum das coisas: nascimento, crescimento, envelhecimento e morte natural. Esses são a exceção à regra do apego forte e instintivo à vida. Devem ser também os que maior fé têm na vida depois da morte. Não fosse assim, não se apressariam em aliviar seus sofrimentos terrenos.
O que não se sabia era de uma segunda morte, por culpa dos vivos. Alguns destes são tão vivos que não pagam ninguém. Por que pagariam, então, a dívida dos mortos? Estão lá, os amados defuntos, gozando de merecido repouso, certos da ressurreição e da vida eterna. De repente, alguém lhes lança aos ossos a pecha de caloteiros e os ameaça de despejo! É morrer novamente, a morte dentro da morte.
Por força dessa situação teremos que mudar nossa idéia de última morada. Antes supúnhamos que fosse o lugar onde ficaríamos para sempre, depois de passar desta pra melhor. Ou onde ficariam eternamente as lembranças daquilo que fomos. Lá, os que nos sucedessem na curta e bela aventura da vida, poderiam, enquanto vivessem, velar por nossa memória. As sucessivas gerações velariam, da mesma forma, até a consumação dos séculos. Vemos, agora, que pode ser apenas o lugar aonde chegamos mais recentemente. A última morada, sim, mas só até sermos mandados para outro local.
Não posso deixar de lembrar do romance Almas mortas, do escritor russo Nicolai Gógol. Na Rússia, de antes da revolução comunista de 1917, a riqueza de um proprietário rural era avaliada pelo número de almas, ou servos, que possuía. Por sugestão do seu compatriota, o poeta Púchkin, Gógol escreveu a história de um daqueles proprietários, que compra almas mortas por baixo preço e contabiliza-as, como vivas, por muito mais. Com esse aumento fictício da riqueza obtém financiamentos do governo, multiplicando sua fortuna.
Aqui em São Luís, parece dar-se o inverso. Em vez de aumentar as almas, a empresa deseja, pelo despejo, diminuí-las, com respaldo da lei. Mas só na aparência. O que ela quer mesmo são novas almas vivas, pagantes pontuais e, de preferência, caladas. Do tipo que não reclama de nada. Na ficção como na vida, ou melhor, na morte, igual é o desejo de aumentar o patrimônio. O que não deve surpreender porque, afinal de contas, empresas não investem para salvar almas, mas, como podemos ver nesta situação, para serem salvas por elas que podem gerar bons lucros.
Ao fim, uma boa ação poderá resultar dessa história. Pode ser, como na poesia de Alfonsina Storni, que os mortos estivessem mesmo enfastiados do cantar das aves dos cemitérios e quisessem mudar de ares.

11 de fevereiro de 2001

Porta da escola

Jornal O Estado do Maranhão 
As aulas voltaram. Com elas, chegou, como em todo começo de ano escolar, a esperança na força libertadora da educação, com seu poder intangível, porém enorme, de transformação. Não há exemplos de sociedades que tenham se libertado da miséria e da fome, tão degradantes para o homem, sem educar seu povo.

Dizer isso me ocorreu por causa da afirmativa de um amigo, de que a educação de um povo pode ser medida pela forma de conduzir automóveis. Não sei se isso é verdade. Se for, há motivos de preocupação com nossa cidade. Se fôssemos julgar pela postura de alguns ao volante, seria uma terra de gente mal educada. Ironicamente, o amigo chama a atenção para a falta de educação, exibida com orgulho. Onde? Nas portas das escolas, lugar de educação. Pior, ainda, diz ele. O mau exemplo é dado pelos pais dos educandos. Estes, guiados por aqueles, acabarão igualmente mal educados.
O que se vê é de lamentar. Na ânsia de apanhar seus amados filhos, depois das intermináveis três ou quatro horas de ausência, e não suportando mais tão longa separação, os pais não se importam de parar seus carros em filas duplas, triplas, quádruplas, impedindo a passagem de outros veículos.
Não lhes ocorre, ou se ocorre não os comove, a possibilidade de alguém numa situação de emergência — um doente a caminho do hospital, um acidentado em busca de socorro urgente — tentar passar ali naquela hora. O importante é evitar a angústia do pobre rapaz, de não ver logo a mamãe ou o papai. Assim se evitarão traumas aos pobrezinhos. Danem-se o doente, o acidentado, o engarrafamento e a confusão.
Na hora da saída das escolas, é um vale-tudo. Vale subir na calçada, buzinar desesperado, estacionar de qualquer jeito. Só não vale parar um pouco antes, ou depois, do portão e andar extenuantes cinqüenta ou cem metros.
Cito o exemplo de uma escola do centro da cidade, porque tenho experiência da época em que trabalhei perto dela. A caminho de casa, tinha que passar diariamente na sua porta. Era sempre a mesma coisa: trânsito lento ou parado, esperando pelo saída dos alunos. Como em muitas outras saídas.
O raciocínio dessas pessoas é simples. Digo mal. Não é simples, é simplista: fazer uma parada de, vamos dizer, trinta segundos no meio da rua, no lugar errado, não vai criar problema algum. Ora, se todos raciocinarem dessa mesma forma e tomarem a mesma atitude, o resultado é o que se vê. É a chamada falácia da composição. Em determinadas situações, se todos agirem com base, apenas, em seu interesse individual, o resultado será desastroso para todos, embora pareça vantajoso para cada um em particular.
O que mais espanta é tratar-se de pessoas de classe média, com nível de renda alto, a julgar pelo valor das mensalidades escolares que pagam ou pelos carros que compram. Formalmente, têm bom nível educacional. Vamos conceder o benefício da dúvida e admitir que sim. Mas, podem, no máximo, ter aprendido, quem sabe, soma e subtração. Como esse amigo diz, eles entraram na escola, mas a escola não entrou neles. Ou talvez entrou, mas era tão deficiente que não os formou. Deformou-os para o convívio social.
Os órgãos encarregados do trânsito — não sei se municipais ou estaduais — têm sua parte de culpa. A sinalização de trânsito é ruim e a má conservação das ruas não ajuda. Mas o pedaço maior da culpa vai para os mal educados. Esse pessoal é o mesmo que não respeita a faixa de pedestre, ignora o sinal luminoso, anda na contramão (“’é só um pedacinho”), ultrapassa os limites de velocidade, não usa o cinto de segurança, reclama das barreiras eletrônicas, não pára na placa de “pare” e, de modo geral, se acha o centro do mundo.
No entanto, é possível fazer cumprir a lei, disciplinar essas coisas. Basta querer, não dar bola para a suposta importância dos infratores, alguns dos quais são da turma do “sabe com quem está falando?”. Brasília e outras cidades conseguiram. Nós também conseguiremos, se quisermos. Queremos?

4 de fevereiro de 2001

Globalização

Jornal O Estado do Maranhão
Descobriu-se, finalmente, a causa de todos os males e bens do mundo. A gasolina subiu, o real caiu? Deu terremoto na Índia, maremoto no Japão, tempestade na Austrália? O deputado enfartou, o senador gripou, a saúde piorou? O amor acabou, o marido se mandou, a mulher nem lamentou? A seca arrasa o Nordeste, as enchentes o Sudeste? A fome mata na África, as guerras em todo lugar?  É a globalização. A recessão melhorou, a economia cresceu, o emprego aumentou? A inflação encolheu, o preço agora tá certo, deu pra comprar a TV? Fez muito sol no domingo, o futebol foi legal, deu pra jogar no bingo? É a globalização.
Fenômeno já bastante antigo, ela parece responsável por tudo no mundo de hoje. No Fórum Econômico Mundial realizado na semana passada em Davos, na Suíça, reuniram-se homens sérios e solenes. Eram chefes de Estado, economistas famosos, financistas, empresários, gente de peso econômico, para longas discussões sobre o futuro da economia mundial. Foi lá que se ouviram os mais belos discursos sobre as virtudes da globalização e os benefícios que pode trazer para todos os povos da Terra. Como contraponto, o Fórum Social Mundial reuniu-se em Porto Alegre. Aí, a história foi outra. Pela televisão, viu-se um clima dos anos setenta, velhos sobreviventes da cultura de paz e amor dos hippies – palavra tão antiga e distante – protestando contra tudo e contra nada, ar de nostalgia soprando nas ruas. Os discursos eram de repúdio à ordem econômica mundial, ao FMI, ao Banco Mundial, à Organização Mundial do Comércio, aos Estados Unidos.
Acho que não se pode conduzir um debate dessa importância com base em avaliações puramente ideológicas que, inevitavelmente, levam ao desprezo dos fatos. Se eles não estão de acordo com a teoria, vamos escondê-los ou inventar outros mais convenientes! A história é velha. Minha impressão é de que é exatamente isso que está ocorrendo. Ou se vêem somente os defeitos ou se mostram apenas os benefícios. Muito da retórica pró-globalização se sustenta no interesse próprio dos grandes conglomerados econômico-financeiros mundiais. Do outro lado, grande parte dos protestos não é, verdadeiramente, contra a globalização. O grande alvo é o sistema capitalista.
A globalização, até recentemente “capitalismo selvagem” no surrado jargão esquerdista, representa uma tendência tão antiga das economias capitalistas que não deveria mais surpreender ninguém. A formação dos estados nacionais na Europa, no fim da Idade Média, trouxe a unificação e ampliação de mercados antes divididos por barreiras locais. O processo de expansão mundial capitalista teve aí inegável apoio e, simultaneamente, forçou sua efetivação. Esse processo se completou com a chamada Segunda Revolução Industrial dos anos setenta do século XIX, levando o capitalismo a todas as partes do nosso planeta, para o bem ou para o mal.
O que se vê hoje é tão somente a aceleração desse movimento pela disponibilidade de tecnologias de comunicação que permitem a transferência instantânea de recursos financeiros entre mercados distantes. É evidente a possibilidade, com isso, da ocorrência de instabilidades, em conseqüência mesmo da velocidade de movimentação desses fundos, destinados principalmente à aplicação em mercados de liquidez imediata, ou quase, como as Bolsas de Valores.
Mas, não é e não será mais possível voltar aos velhos maus tempos para eliminar o avanço tecnológico que facilitou essas mudanças. Não há local para retorno nessa estrada de mão única. O problema do desemprego, que é o mais grave das economias de quase todos os países atualmente, não é muito diferente do que tem ocorrido em toda a história econômica. O avanço tecnológico sempre destruiu e criou empregos. Destruição nos setores atrasados tecnologicamente e criação nos de vanguarda. É uma característica do capitalismo. Sei que isso não serve de consolo para aqueles que estão desempregados, mas essa compreensão poderá certamente orientar os governos na adoção de programas corretos de treinamento de mão de obra que poderão dar aos trabalhadores dos setores defasados a empregabilidade de que eles e a sociedade necessitam.

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