20 de maio de 2007

Vôo na manhã

Jornal O Estado do Maranhão
Da sacada vêem-se os prédios modernos, onde muitos anos antes pescadores passeavam seus pequenos barcos a vela e suas redes; vêem-se as ruas, as avenidas, o asfalto, o mangue, a lagoa, o mar e a praia com pequenos seres seminus caminhando aparentemente despreocupados, mas em verdade pensando na vida e em suas armadilhas. Será que ele me ama, divaga a garota e olha o próprio corpo descoberto por um biquíni azul. Ali estão os pássaros, os beija-flores, por exemplo, e também os urubus, em seu passeio matinal, lá no alto, despertando inveja nos caminhantes lá embaixo.
Um dia desses, dia de sol e muito vento, sem nuvem alguma no céu, presente somente o azul, um deles, cujo nome e espécie nunca se chegou a saber (seria descendente de um daqueles que costumavam pousar na pitombeira no fundo do quintal com cheiro de terra, depois do almoço, nas quentes tardes de antigamente, e que – tiro certeiro de baladeira –, morriam sem ao menos sentir a aproximação do caroço de pitomba, bala vegetal?), quis dar uma volta na avenida Litorânea e na cidade. Vinha do porto do Itaqui. Primeiro, ultrapassou a fileira de navios, mensageiros de terras distantes, esperando em fila indiana a vez de atracar, e voou em ziguezague entre eles. Depois, deu uma volta completa em torno de cada um, como a cumprimentar os homens do mar e consolá-los das saudades dos seus. Tão longe de casa se encontram, afinal. Aquele acenando do convés com um sorriso melancólico lembra-se da filha desconhecida que acabou de nascer.
Foi até a Ponta de São Francisco e à da Areia, disse bom-dia à brancura das duas, e finalmente, planou a meia altura de volta à Litorânea. Mirou o canteiro central da avenida como linha de referência e foi até o Barramar, já quase no Olho D’Água. Onde as dunas nas quais as crianças brincavam no passado? Foram os grandes ventos de agosto que as deixaram assim ou os homens? Fez então um semicírculo acrobático, suave e gracioso, e retornou, agora mais veloz, pois vinha a favor do forte vento feito de fortes rajadas, já quentes naquela hora da manhã, não sem antes lançar um olhar em direção ao Araçagi. Tomou novamente a avenida – a bem dizer, tomou apenas uma das infinitas dimensões do espaço a pouco mais de dez metros de altura da pista, talvez, – até chegar ao Calhau. Aí, imaginou deixar em casa, por uma dezena de minutos apenas, a companheira e os filhos, e resolveu ir mais longe, dar uma volta na cidade.
Olhou as pequenas dunas a sua esquerda, fez uma leve curva e aproveitando o vento ascendente que acompanhava o perfil de uma das elevações, quase a tocou, fazendo rápido e leve cumprimento, como os cavalheiros de outrora, antes de elevar-se até alcançar seu topo. Daí, por um instante parado no ar, após breve momento de hesitação, seguiu em direção da cidade velha, após concluir que a família não ficaria exposta à fúria dos elementos, naturais ou humanos. Pareceu não me ver na sacada.Talvez o sol em contraluz, talvez a ansiedade de passear em breve num mundo novo.
Em um bar no térreo de um prédio antigo, com mesas pequenas de metal, dessas fornecidas pelos fabricantes de bebidas, um homem tomava sua cachaça e maldizia a vida, que nada lhe dera e tudo, que sempre fora pouco, lhe tomara. O carteiro, a duas quadras dali, perguntava pelo antigo morador da porta-e-janela antiga. Entrega-se correspondência a mortos? Na ponte que liga a parte velha da cidade à nova, avistou um homem com a barba por fazer, os olhos fixos na água. Não reparou quando o pássaro pousou a seu lado na amurada. Pensaria no abandono pela namorada?
Enquanto voava de retorno a sua casa, pensou, ele também, na existência e seus ardis. Haveria um modo seguro de aprender com a vida, sem essa estranha sensação de desconhecer a própria vida?

13 de maio de 2007

Contar histórias

Jornal O Estado do Maranhão

Há poucos dias, em conversa com Carlos Gaspar, confrade da Academia Maranhense de Letras, falamos sobre a falta de convívio freqüente entre netos e avós nos dias correntes, ou da falta, em muitas famílias, da proximidade de outros tempos, quando não poucas vezes três gerações moravam na mesma casa em enriquecedor contato. Eu havia passado os olhos nas crônicas de um livro que ele planeja lançar este ano, tendo Viana como referência, e notara a forte presença do avô dele, o português Delfim, nas lembranças de Carlos de seu tempo de menino naquela histórica cidade de belos lagos e campos, na Baixada Maranhense, região onde tenho um bom pedaço de minhas origens, porque vem de Cajapió a família de minha mãe.
A mesma proximidade entre gerações sinto em bate-papos com o erudito diplomata, poeta e historiador Milton Torres, autor de O Maranhão e o Piauí no espaço colonial e do livro de poesia No fim das terras, que se encontra em São Luís finalizando livro sobre o Estado do Maranhão e Grão-Pará. A figura de sua avó materna, matemática de renome internacional em sua época, avulta nas recordações da infância de Milton no Rio Grande do Sul. A admiração dele por ela só poderia advir de saudável convivência que não se limitou, creio, a mero relacionamento formal, mas a verdadeira amizade.
No meu próprio caso, a minha avó materna, Marcelina Raposo, era presença constante no bangalô do Monte Castelo em que morávamos, construído no início dos anos cinqüenta, e onde, mais tarde, ela veio residir, para nosso proveito. Jamais me saíram da lembrança as histórias sobre sua querida terra, Cajapió, contadas por ela enquanto se balançava numa cadeira cujos encosto e assento eram formados por lona inteiriça presa a uma estrutura de madeira que se apoiava em peças curvas e longas, apropriadas ao balanço para frente e para trás, no terraço da casa, até tarde da noite, numa época em que 9 horas da noite era muito tarde e a última novela do dia ia ao ar às 7. No rádio a válvula.
A Cajapió fui em raríssimas ocasiões. Mas eu não precisaria ir mesmo, a fim de conhecer aquele chão, pois o conhecia de muito tempo. Não o mesmo daquelas ruas empoeiradas do município rural, pequeno e pobre que mais tarde conheci e sobre o qual, ainda hoje, não tenho conhecimento íntimo embora dele tenha herança afetiva recebida de várias gerações. Houve então um choque entre a realidade e o lugar imaginário construído por mim. Eu conhecia outro Cajapió, mítico, que talvez tenha despertado em mim o gosto por histórias, como essas narradas nos bons livros, não muito diferentes das de minha avó. Eu vi quando lá cheguei pela primeira vez outro mundo, em nada igual ao imaginado. Aquele trazido por ela em seu coração até São Luís, para nos mostrar, não existia. Ou, melhor, existia, mas ela soubera da pedra e da cal dele extrair tão-só o barro de poesia que há em todas as coisas e as une.
Cajapió sempre foi para mim e sempre será os mistérios presentes nos relatos dela, de navios encantados que desfilavam majestosos ao largo da praia de Itapeua; de curas sem explicação, a não ser a da fé em Nossa Senhora; das manhas do tinhoso e seu gosto por bailes durante os quais era descoberto por causa dos pés trocados; da descoberta de crimes sem aparente solução a não ser por concessão dos santos da devoção e de muitas e muitas outras.
Agora, quando vejo meu próprio neto, Davi, fico imaginando as histórias que ouvirá de nós, seus avós, a serem guardadas eternamente em sua memória. Assim, ele criará também cidades e mundos imaginários, mas tão reais, onde caminhará livre das atribulações da vida. Daqui a muitas décadas, quando formos apenas boas recordações para ele, da mesma forma irá contar histórias a seus netos que as contarão a seus netos....

6 de maio de 2007

Crime privilegiado

Jornal O Estado do Maranhão
Sempre me pareceu coisa de país de bacharéis, herdada de nossa formação social vinda da Colônia, essa lei (ela existe mesmo?) que manda colocar em cela especial os encarcerados portadores de diploma de curso superior. Especial aí é sinônimo de cela separada das dos presos ditos comuns, e mais confortável. Poderia alguém supor, então, que bastaria a um ladrão, para ter regalias na cadeia, a suposição de ter ele certa ilustração, suposição incerta na maioria dos casos, a não ser que se considerem ações criminosas como socialmente desejáveis. Delinqüir com um canudo debaixo do sovaco tornaria seu portador menos danoso à coletividade, justificando a obtenção de regalias negadas a outros com pouca instrução? Haveria bandidos de primeira e segunda classe? Ou melhor, bandidos com classe e sem classe? É a luta de classes na prisão?
Algum ingênuo do povo talvez afirmasse que seriam precisamente essas pessoas classificadas como especiais as merecedoras dos rigores da lei. Possuindo, como decorrência de seu nível de educação – abstraindo-se os casos em que o sujeito entra na escola, mas a escola não entra nele – entendimento claro dos prejuízos para a sociedade de conduta ilegal, e, apesar disso, dispostos a burlar a lei, deveriam ser colocados, continuaria o argumento, numa espécie de purgatório prisional, longe dos presos comuns, de tal forma a não terem a possibilidade de transmitir aos companheiros conhecimentos especializados sobre modernas tecnologias usadas em ações delituosas.
O costume de classificar delinqüentes com base no grau de instrução, gerou, com respeito a potenciais encarcerados que cursaram faculdades, distinção de outra natureza, agora entre, de um lado, os conhecedores da lei, contudo não cumpridores dela, e, de outro, os leigos nas mesmas leis, embora doutores em seus estudos e em trambiques.
Imaginemos uma situação em que magistrados (e também procuradores e policiais federais) em associação com pessoas de formação universitária – não em direito –, decidam constituir um bando com o fim de burlar o fisco e vender sentenças de liberação de bingo, jogo cujo funcionamento é usado como fachada na lavagem de dinheiro do tráfico de droga. A quem se dirigiria, com justificada razão, maior indignação por parte do cidadão? Ao leigo, todavia de nível superior, ou aos bandidos especialista nelas, os magistrados, envolvidos na formação de quadrilhas, que usam para ganho pessoal e ilícito o cargo no qual foram investidos pela sociedade a fim de distribuir justiça?
A Polícia Federal, com respaldo judicial de juízes honestos, que os há em grande número, prendeu há pouco magistrados envolvidos com malfeitores em situação como a descrita acima. A operação, herança do ex-ministro da Justiça Márcio Bastos, deve ser louvada, mas não seu nome, Hurricane. Soa ridículo denominar ação da polícia brasileira com uma palavra em inglês, em vez de chamá-la pela equivalente em português, Furacão, como se diz em nosso idioma, agredido, até, por altas figuras da República. Desejarão mudar também o nome da PF para FBI, a Federal dos americanos?
O Supremo Tribunal Federal manteve a prisão temporária dos envolvidos, com exceção dos magistrados, como se não estivessem todos juntos no cometimento dos mesmos crimes. A isso dá-se o nome de corporativismo. O ministro do STJ acusado de participação no esquema sequer foi importunado. Sei que haverá argumentos técnicos a justificar a decisão. Tal argumentação apenas reforça a percepção geral sobre a inoperância e ineficiência do Poder Judiciário. O Tribunal deverá ainda julgar durante este mês de maio os pedidos de prisão preventiva. Num país onde existe aberração como foro privilegiado, ninguém ficará surpreso se inventarem o crime privilegiado.

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