30 de março de 2003

Dança de lobos

Jornal O Estado do Maranhão 
Cumprem-se uma vez mais a história e a natureza humanas com a segunda guerra dos Estados Unidos contra o Iraque. Se bem examinada, a trajetória de nossa espécie tem sido sempre essa, de dominação do fraco pelo forte, da imposição de vontades e interesses pelo uso ou pela ameaça do uso da força por nações e grupos de poder no interior das sociedades. O ideal de civilização perseguido pela humanidade há milhares de anos sempre foi e será o de controlar os instintos destrutivos compartilhados por nós com as outras espécies animais. Essa é a nossa missão civilizadora, lamentavelmente renegada atualmente.
Não é a superioridade material, seja tecnológica, econômica ou militar, a medida do verdadeiro progresso, mas a vitória contra a violência e a busca permanente de poder. Este instinto, pois se trata de um instinto, algo inerente à natureza humana, foi muito bem percebido por Hobbes em 1642 no seu Sobre o cidadão. Ele o caracterizou como parte de um “estado natural”, que inevitavelmente leva o homem a um “perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder que só termina com a morte”.
Vemos neste momento uma história diferente da do lobo e do cordeiro. Estamos lidando com dois lobos. Mas, um deles tem poderosas armas, jamais vistas, feitas com as mais avançadas tecnologias, supostamente capazes de destruir apenas alvos militares, mas em verdade tão assassinas quanto as armas antigas. Ele as usa agressivamente na defesa de seus interesses econômicos e na manutenção de seus domínios. Até quando? Outros impérios pretenderam durar eternamente. Todos caíram esmagados pela própria força.
Julga-se também esse lobo na legítima posse do outro mundo, o celestial, acredita em sua imunidades ante as ameaças do fogo do inferno, que só queimam os descrentes, os pecadores, e pensa possuir autorização divina para conquistar, com a ajuda de suas sofisticadas armas de altíssimo poder de extermínio global, até a última gota de petróleo deste mundo terreno, onde sobrevivemos precariamente.
Afinal, os iraquianos têm as tais “armas de destruição em massa”, como repete a imprensa a toda hora, macaqueando a propaganda norte-americana com referência ao Iraque? Quem as tem, ninguém duvida, é o mesmo lobo que não quer permitir sua posse pelo outro que, por sua vez, reprime e humilha seu próprio povo, que, no entanto, se levanta contra o invasor. O lobo iraquiano não é amigo, cooperativo, compreensivo, como o saudita ou o paquistanês. Este último, a exemplo do coreano, possui armas atômicas e tem dito e repetido que não duvidaria em usá-la contra o vizinho indiano, se as circunstâncias o exigirem. Quem pode matar a maior quantidade de pessoas e até matar mais de uma vez o mesmo morto, se preciso for? Não interessa. Ou melhor, interessa somente ao argumento da força bruta. Será com esse metro imoral que querem fornecer a justificativa dessa guerra torpe?
Um de suas características é ela não ser meramente por interesses econômicos e supremacia estratégica, embora estes fatores tenham, claro, um influência enorme na decisão americana de invadir e destruir o Iraque. O petróleo é certamente parte da motivação guerreira, mas não é a única.
Em verdade, trata-se também, na visão americana, da luta do bem contra o mal, do cristianismo, na sua versão fundamentalista, contra a fé dos muçulmanos, gente incapaz, além de primitiva, de compreender a democracia ocidental e praticá-la! O equivalente dessa atitude dentro dos Estados Unidos é a tentativa do presidente Bush, de confundir Estado e religião, mistura tão condenada pelos olhos ocidentais no Irã, mas não, por exemplo, na Arábia Saudita. É o fervor muito comum, mas nefasto, de quem se julgava decaído, recebeu a revelação salvadora e, por isso, se vê como um soldado de sua fé, com a obrigação de espalhá-la pelo universo, na conquista de muitas almas para a palavra divina do livro sagrado.
Religião e economia juntam-se, assim, numa infeliz, degradante e mortal dança de lobos.

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