23 de abril de 2006

As memórias

Jornal O Estado do Maranhão

Há poucas semanas falei da confusão entre realidade e ficção enraizada na política nacional, ao considerar o caso da quebra ilegal de sigilo bancário de um caseiro que acusara o ministro da Fazenda de freqüentar com regularidade certo local suspeito em Brasília. Concluí que o mordomo do ministério era o culpado do crime. No entanto, como a realidade dele era ficcional, achei um culpado alternativo, o porteiro. Sendo este real, onipresente nos prédios públicos de Brasília, tornou-se um tipo ideal, abstrato, ficcional. Se tudo isso parece confuso é porque sempre ocorre essa mistura de realidade com ficção, que provoca imenso fascínio sobre as pessoas.
Vejamos algumas idéias de Umberto Eco sobre a memória, que tem muita coisa em comum com a ficção. Ele é especialista em filosofia medieval, professor de semiótica, (a ciência das representações que leva em conta os signos sob todas as sua manifestações), e festejado romancista de O nome da rosa. Em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção, resultado de conferências na Universidade de Harvard em 1993, no sexto capítulo, Protocolos  Ficcionais, ele diz: “Nosso relacionamento perceptual com o mundo funciona porque confiamos em histórias anteriores”. Qual o significado dessa afirmação? É isto. Aceitamos como verdadeiras as histórias que nos são transmitidas. O fato de não estarmos presentes na Alemanha por ocasião da queda do Muro de Berlim ou ao lançamento pelos Estados Unidos de bombas atômicas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial, não nos faz duvidar  da realidade desses acontecimentos.
Não é difícil ver, após tomarmos em consideração essas observações, algo corriqueiro, contudo quase imperceptível: vivemos com duas memórias.Uma é a nossa, individual, que torna possível dizer: “ontem eu comprei a biografia Stálin – A corte do czar vermelho, de Simon Montefiore”; outra, de início completamente separada da minha, é a de um conjunto de pessoas, que me diz que nasci em São Luís no Hospital Português no ano de .... É a memória coletiva  Eu não “presenciei” minha chegada ao mundo. Tenho de me valer dos outros a fim de saber o local e o dia de meu nascimento e, afinal, acabo tornando a memória deles parte da minha.
Quantas vezes, aqui neste espaço, tenho duvidado, ao falar de minha infância e juventude, da veracidade de minhas próprias lembranças, porque, com freqüência, não consigo identificar a origem delas. São minhas mesmo, nasceram de minha experiência, ou representam um a memória coletiva familiar incorporada à minha depois de determinado fato não vivido por mim? Faço-me muitas vezes essa pergunta nessas ocasiões, mas quase sempre não chego a conclusão esclarecedora e acabo achando que posso ter empulhado meu eventual leitor. No entanto, o esforço de separá-las é inútil, pois jamais se consegue fazê-lo por completo.
“Esse emaranhado de memória individual e memória coletiva prolonga nossa vida, fazendo-a recuar no tempo, e nos parece uma promessa de imortalidade”, diz Eco. Eu consigo “ver”, em seu comércio na Praça João Lisboa, meu avô Lino Antônio Moreira, morto nos anos trinta do século XX, muito antes de eu nascer, graças à memória coletiva de minha família. O texto ficcional tem poder semelhante de reconstituir um passado de outra forma desconhecido para nós e de nos fazer descobrir um mundo que estaria além de nosso alcance. Daí seu imenso fascínio.
Quando me perguntam se algum dia vou ler todos os livros de ficção de minha biblioteca, e mais os outros, milhares deles, digo que não sei. Sei que quando quero descobrir novos mundos e recuar no tempo até a origem do universo, eles estão ali do lado, em silêncio aparente, ao alcance de minha mão, prontos a me acompanhar na viagem.

2 de abril de 2006

Gato na Caixa

Jornal O Estado do Maranhão

Quando Collor governava o Brasil e acusações de desonestidade contra seu governo cresciam dia a dia, o testemunho de um motorista tornou-se decisivo no processo de impeachment que resultaria no afastamento do presidente. Aquele homem simples foi saudado como a encarnação de todas as virtudes do povo. O PT quase o canonizou, deixando de fazê-lo porque o partido não dispunha ainda de um papa, como hoje, embora já fosse uma igreja de confusos ritos, como o de fazer intermináveis assembléias e reuniões a troco de tudo e de nada.
Tínhamos naquela hora a impressão de estar diante de um daqueles operários-padrão retratados na arte realista do socialismo soviético, com bandeiras trêmulas ao vento, olhar rútilo em direção ao futuro e inimigos da revolução subjugados aos pés do herói proletário. Imagem cultivada ainda hoje pela fantasia de algumas pessoas politicamente corretas, como as que resolveram nos últimos tempos modificar as letras das cantigas de roda ou de ninar, com propostas exóticas. Atirei o Pau no Gato seria assim: “Não atire o pau no gato / Porque isso / Não se faz / O gatinho é nosso amigo /Não devemos maltratar /os animais”, palavras que, como perceberá logo o perspicaz leitor, soam muito edificantes.
Apareceu há pouco outro do povo, homem também simples, caseiro de profissão. Ele desconhece como se armam grandes esquemas para afanar o dinheiro público – algum cético dirá que por falta de oportunidade e bons professores –, porém tem olhos de ver, e, de fato, viu o ex-ministro da Fazenda, Antonio Palocci, diversas vezes na “casa do lobby”, local em Brasília onde seus auxiliares planejavam atividades heterodoxas, incluídas aí festas com a presença de jovens mulheres da multimilenar profissão, contratadas por empresária do ramo, Jane Mary Corner. Palocci, em depoimento a uma CPI, havia dito nunca ter ido lá. Quem dizia a verdade?
Se estivéssemos no ocaso da era Collor, a resposta seria simples como velhas canções de ninar: o homem virtuoso do povo contava a verdade e o ex-ministro mentia. Pau no gato! No entanto, os tempos são outros. O PT deixou de descobrir virtudes em humildes trabalhadores. Pensa, ao contrário, que o caseiro fora corrompido pela oposição. Com base nessa hipótese, divulgou um extrato bancário dele, com valores incompatíveis com sua renda e obtido de maneira ilegal na Caixa Econômica Federal. O dinheiro veio de seu pai biológico, que confirmou os depósitos. Mas, afinal, que diferença faria a origem dos recursos, se Palocci era de fato freqüentador da casa? O PT tinha a esperança de desqualificá-lo, um homem do povo, quem diria, como testemunha. Arrumou mais um escândalo para o governo Lula.
O presidente da Caixa, hoje exonerado, prometeu apurar a ilegalidade com rigor, por certo semelhante ao da apuração de outras acusações recentes. Em seguida, após depor na Polícia Federal, afirmou que ele mesmo dera a Palocci o extrato. Sua promessa fora, assim, de investigar o próprio crime. Não revelou até agora o mandante, embora tenha insinuado haver um. Apesar disso, é fácil saber a verdade.
Não dizem ser a ficção mais real do que a própria realidade e esta a mais delirante ficção? Nos romances policiais, o culpado não é sempre o mordomo? Pois foi ele. Pura realidade. A Caixa ainda não tem mordomos, grita ali um leitor que detesta ficção e, por isso, confunde o real com o irreal. Então, respondo, foi o porteiro. Quem mais poderia ser? E não me venham com a ficção de ter sido algum alto funcionário governamental. Quem não concordar comigo, atire o primeiro pau no gato da Caixa.
Como diz Luiz Alfredo Raposo, excelente poeta piauiense-pernambucano: “Nisso tudo, quem se sai airosamente são as meninas da Dona Jane Mary Corner. Até aqui delas não se ouviu um pio”.

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