10 de julho de 2005

Destroços

Jornal O Estado do Maranhão   
Machado de Assis, agnóstico assumido, gostava de ler um importante livro do Velho Testamento: “Eu me consolo no desconsolo do Eclesiastes”, disse certa vez referindo-se a suas leituras bíblicas. Sigo seu exemplo. É dessa porção da milenar sabedoria judaica a afirmação de não haver novidades no mundo. “Não há nada que seja novo debaixo do céu e ninguém pode dizer : Eis uma coisa nova. Porque ela já houve nos séculos que passaram antes de nós”. Portanto, não devemos nos surpreender por ter a alta direção do novo PT se revelado tão corrupta e incompetente como se revelou, adotando práticas mais desonestas do que as apontadas nos seus antigos adversários.
Mas, como todas as coisas têm o tempo certo, de acordo ainda com o Eclesiastes, havendo o momento de destruir e o de construir, pode ser que estivesse escrito desde sempre ser este o de CPIs. Se não forem por estas erguidos os fundamentos da eliminação da corrupção brasileira bem como da reconstrução moral de um dos países mais corruptos do mundo – o nosso – as últimas esperanças de regeneração da nação estarão mortas.
A verdade é esta. Mesmo aqueles que não votaram em Lula, alguns por temerem suas bravatas e de seu partido contra o FMI e as políticas “neoliberais” do governo FHC, outros por julgarem primária sua visão sobre a difícil tarefa de governar um país de economia complexa como a do Brasil, num ambiente de feroz competição nos mercados globalizados, e perceberem nele certa tendência à adoção de soluções simplistas para problemas de intricada solução, mesmo os que não votaram em Lula, eu dizia, tinham uma ponta de esperança, pelo menos quanto à ética, de ser o seu governo capaz de fazer-nos chegar a melhor tempo, tempo de “lançar fora” o joio e de edificar uma nova ordem moral.
No entanto, o oposto se vê agora com a enxurrada de denúncias de compra de votos de parlamentares, visando o apoio a projetos encaminhados ao Congresso pelo governo, e de revelação de esquemas de desvios de dinheiro nas estatais. A corrupção anterior não só não foi extirpada como aprofundou, infelizmente, seu status como uma das instituições mais características da cultura brasileira.
Sinceramente, não digo isso com prazer nem para me regozijar no conhecido “eu não disse?”. Digo como um lamento, por causa da frustração da grande maioria dos brasileiros honestos. Dos políticos antigos se dizia: “Eles são assim mesmo, não têm jeito”. Do PT se esperava alguma mudança, pela sua pregação anterior. Quando iremos novamente ter a mesma esperança? A única restante é a de que tudo isso possa servir para reformas verdadeiras. A política, por exemplo, uma entre muitas necessárias, mas não essa em tramitação atualmente no Congresso, que mal fala em fidelidade partidária, permite a existência de partidos de aluguel e retira do eleitor a escolha dos nomes dos candidatos a serem eleitos e a transfere aos caciques partidários.
Mas, nem tudo são destroços morais malcheirosos. Eis, para quem tiver olhos para ver, a figura admirável do senador do PT Eduardo Suplicy. Ameaçado de punição pela direção do partido, por ter apoiado a criação da CPI destinada à apuração das denúncias, foi ainda chamado de estranho pelo estalinista José Dirceu. Foi ao dicionário e deu sua resposta. Era sim, estranho, porque ser estranho é ser diferente, e ele era diferente moralmente do próprio Dirceu e de seus cupinchas. Aí está um autêntico Quixote, aquele que na concepção de Vargas Llosa, no seu magistral estudo introdutório à edição do quarto centenário do Don Quixote, da Real Academia Espanhola, era capaz de “desacatar os poderes, as leis e os usos estabelecidos, em nome do que é para ele um imperativo moral superior”. Nem tudo está perdido com homens assim. Pelo menos temos esse consolo.

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