19 de dezembro de 2004

Papai noel capitalista

Jornal O Estado do Maranhão 
Nunca me pareceu tão verdadeiro como na semana passada o dito “vivendo e aprendendo”, que é parte do imenso baú da sabedoria popular, feita de senso-comum e lógica simples, e que tanto nos ajuda nos momentos de falta de inspiração, outro nome de falta de idéias. No rádio do carro, eu ouvia uma discussão sobre a implantação de projetos de siderurgia em São Luís. Os ouvintes davam opiniões, guiados, naturalmente, pela clarividência do apresentador. Um deles, aparentemente por nenhuma razão, começou a falar sobre o Natal e Papai Noel. Não me surpreendi de início, porque, afinal, estamos a poucos dias dessa grande festa cristã, tão cara a nossas tradições e propícia à floração de bons sentimentos e intenções, nem sempre transformados em boas ações.
No meio de seu discurso, no entanto, ele soltou a informação que até agora não me saiu da cabeça: o Bom Velhinho fora inventado pela Coca Cola. Querendo aumentar a venda de seu famoso refrigerante, a multinacional com sede nos Estados Unidos resolveu criar uma figura paternal e simpática como essa, com o fim de influenciar as crianças e garantir para a empresa um mercado de consumo no futuro. Acostumados desde pequenos a consumir o refrigerante, a manutenção dos hábitos adquiridos tão cedo na vida seria certa, quando crescessem. Ninguém havia notado a semelhança entre a cor vermelha da empresa e a da simpática roupa de frio de Papai Noel? Dito desta forma, sem a impostação de voz solene que usava, não se pode avaliar a transcendental importância dada por ele à informação.
Depois de alguns minutos, contudo, eu achei não haver entendido nada, pois o sujeito falava muito rápido e, ao mesmo tempo, fazia pequenas pausas, quebrando, inevitavelmente, o ritmo da fala. Com isso dificultava o entendimento de suas opiniões. Mas, no meio da confusão, percebi a seriedade do assunto. Até o ano passado, ele não sabia de nada sobre a invenção, vivia em completa ignorância. Por sorte, caiu-lhe nas mãos uma dessas revistas especializadas em generalidades e ele ficou sabendo da novidade.
O melhor, ou o pior, a depender do ponto de vista, veio em seguida. A Coca Cola e ”o capitalismo” (ele quase dizia capitalismo selvagem, porém deve ter percebido que a expressão está fora de moda desde a ascensão do PT ao poder), em mais uma de suas tramas diabólicas para subjugar a humanidade, haviam juntado forças nessa empreitada maligna. Não foram exatamente essas suas palavras, claro. A conversa, todavia, resultava no mesmo.
Quando o apresentador do programa perguntou se não seria o caso de apenas os trajes do Bom Velhinho, como os conhecemos hoje, terem sido copiados de um modelo usado numa antiga campanha publicitária da Coca-Cola, ele considerou a dúvida uma ofensa sem perdão, um ataque a seu caráter de lutador pela cidadania. O criador do Papai Noel de carne e osso, quer dizer, de imaginação e sonho, foram mesmo a empresa e o “capitalismo” em conluio. Eu tive então a certeza de que aquela risada meio boba do velhinho (ho, ho, ho) foi, na sua origem, uma risada malévola do “capitalismo”, ao pensar nos imensos lucros a serem obtidos da parceria com a influente multinacional. Exatamente como as risadas dos filmes de terror, quando um personagem do Mau antevê seu triunfo, efêmero embora, ante as forças do Bem.
Com diremos, daqui por diante, essa verdade terrível às nossas inocentes crianças, que essa figura tão marcante na imaginação delas e de todos nós adultos, que nunca deixaremos de ser crianças também, não passa de vil instrumento de lucro do capitalismo e, em vez de justo e bondoso, não passa de um Papai Noel capitalista interessado apenas no seu próprio bolso, ou saco, sem fundo?
Mas, ainda assim, é possível desejar a todos os leitores um feliz Natal.       

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