26 de dezembro de 2004

Previsões

Jornal O Estado do Maranhão 
Na semana passada eu dizia que nesta época do ano florescem facilmente boas intenções e bons sentimentos, raramente transformados em boas ações capazes de povoar o paraíso. Proliferam também, acrescento, as previsões sobre o amanhã da humanidade, das pessoas famosas e, até, da gente simples do povo, compreensivelmente desejosas de saber como será a vida amorosa delas no ano prestes a começar, pois os amores – de todo mundo, parece – sempre se preocupam com as incertezas do futuro e anseiam por palavras otimistas e tranqüilizadoras como só os adivinhões sabem dizer, pois freqüentemente os romeus e julietas têm muitos desencontros que atrapalham a felicidade completa e permanente, tão perto dos amantes, mas freqüentemente tão distante, sendo simples quimera, segundo alguns descrentes no amor.
As previsões são rotineiramente feitas no tom solene e misterioso de quem tem um saber elevado e uma relação direta com um ser qualquer superior, capaz de comunicar ao previsor as novidades futuras, por assim dizer. Como em tudo mais, até mesmo no jogo de bolinha de gude, se é que este ainda é praticado, existem especialistas no assunto. A mãe isso, o pai aquilo, a madrasta não sei o quê, vestidos de branco, voz rouca e pose de sumo sacerdote, ou o cara que diz saber arrancar das cartas dos baralhos os acontecimentos futuros, ou jogar búzios ou entender de tarô, são chamados, por todo o Brasil para entrevistas no fim do ano pelos órgãos de comunicação, sempre dispostos a oferecer aos entendidos todo o tempo do mundo quando está em pauta a futurologia.
É injusta a exclusividade dada a esse pessoal. Não se pode permitir a imposição de um monopólio adivinhatório como esse. Somente eles podem fazer as tais previsões? Qual a razão de os outros cidadãos, honestos e trabalhadores, não serem ouvidos da mesma forma e com igual interesse, de não terem as mesmas oportunidades a fim de expor suas previsões igualmente úteis, ou até mais, do que as dos chamados “entendidos”? Onde fica a liberdade de expressão? Arvoro-me, portanto, em porta-voz dos excluídos e ofereço gratuitamente aos leitores as mais corretas previsões para o ano de 2005.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, aliás, continuará no cargo de presidente do Brasil, produzirá novas metáforas, sua especialidade no campo intelectual. Ele irá comparar a arte de governar à de conduzir um trem. Se a locomotiva (ele próprio) sair dos trilhos é líquido, muito líquido, e certo que o restante do comboio irá parar, dirá ele. Casos de corrupção serão descobertos em alguns órgãos públicos em todo o país. Os acusados dirão que é tudo uma “armação política”, por causa de interesses contrariados justamente pelo trabalho de combate à corrupção que vinham fazendo. Eles reafirmarão sua confiança na justiça, se, é claro, a decisão final no julgamento, na hipótese de serem julgados, lhes for favorável. Os não-acusados prometerão instaurar “rigoroso inquérito para apurar os fatos”.
O futebol continuará ser jogado por 11 jogadores em cada time, com uma bola redonda, apesar da sugestão de alguns americanófilos da substituição do esférico pelo oval, isto é da redonda ou balão de couro, como diziam nos velhos tempos os locutores esportivos, por aquele artefato ovalado, de couro também, usado no futebol americano. Os times do Rio de Janeiro continuarão a comemorar o terem escapado do rebaixamento para a segunda divisão do campeonato brasileiro, como se tivessem ganho o título de campeão pela décima vez.
Como o leitor poderá facilmente perceber, essas previsões são muito difíceis de fazer. Não fora a colaboração de uma equipe especializada, eu teria feito nada. Uma previsão, porém, não apresentou dificuldade alguma, a de que os leitores terão um bom 2005.

19 de dezembro de 2004

Papai noel capitalista

Jornal O Estado do Maranhão 
Nunca me pareceu tão verdadeiro como na semana passada o dito “vivendo e aprendendo”, que é parte do imenso baú da sabedoria popular, feita de senso-comum e lógica simples, e que tanto nos ajuda nos momentos de falta de inspiração, outro nome de falta de idéias. No rádio do carro, eu ouvia uma discussão sobre a implantação de projetos de siderurgia em São Luís. Os ouvintes davam opiniões, guiados, naturalmente, pela clarividência do apresentador. Um deles, aparentemente por nenhuma razão, começou a falar sobre o Natal e Papai Noel. Não me surpreendi de início, porque, afinal, estamos a poucos dias dessa grande festa cristã, tão cara a nossas tradições e propícia à floração de bons sentimentos e intenções, nem sempre transformados em boas ações.
No meio de seu discurso, no entanto, ele soltou a informação que até agora não me saiu da cabeça: o Bom Velhinho fora inventado pela Coca Cola. Querendo aumentar a venda de seu famoso refrigerante, a multinacional com sede nos Estados Unidos resolveu criar uma figura paternal e simpática como essa, com o fim de influenciar as crianças e garantir para a empresa um mercado de consumo no futuro. Acostumados desde pequenos a consumir o refrigerante, a manutenção dos hábitos adquiridos tão cedo na vida seria certa, quando crescessem. Ninguém havia notado a semelhança entre a cor vermelha da empresa e a da simpática roupa de frio de Papai Noel? Dito desta forma, sem a impostação de voz solene que usava, não se pode avaliar a transcendental importância dada por ele à informação.
Depois de alguns minutos, contudo, eu achei não haver entendido nada, pois o sujeito falava muito rápido e, ao mesmo tempo, fazia pequenas pausas, quebrando, inevitavelmente, o ritmo da fala. Com isso dificultava o entendimento de suas opiniões. Mas, no meio da confusão, percebi a seriedade do assunto. Até o ano passado, ele não sabia de nada sobre a invenção, vivia em completa ignorância. Por sorte, caiu-lhe nas mãos uma dessas revistas especializadas em generalidades e ele ficou sabendo da novidade.
O melhor, ou o pior, a depender do ponto de vista, veio em seguida. A Coca Cola e ”o capitalismo” (ele quase dizia capitalismo selvagem, porém deve ter percebido que a expressão está fora de moda desde a ascensão do PT ao poder), em mais uma de suas tramas diabólicas para subjugar a humanidade, haviam juntado forças nessa empreitada maligna. Não foram exatamente essas suas palavras, claro. A conversa, todavia, resultava no mesmo.
Quando o apresentador do programa perguntou se não seria o caso de apenas os trajes do Bom Velhinho, como os conhecemos hoje, terem sido copiados de um modelo usado numa antiga campanha publicitária da Coca-Cola, ele considerou a dúvida uma ofensa sem perdão, um ataque a seu caráter de lutador pela cidadania. O criador do Papai Noel de carne e osso, quer dizer, de imaginação e sonho, foram mesmo a empresa e o “capitalismo” em conluio. Eu tive então a certeza de que aquela risada meio boba do velhinho (ho, ho, ho) foi, na sua origem, uma risada malévola do “capitalismo”, ao pensar nos imensos lucros a serem obtidos da parceria com a influente multinacional. Exatamente como as risadas dos filmes de terror, quando um personagem do Mau antevê seu triunfo, efêmero embora, ante as forças do Bem.
Com diremos, daqui por diante, essa verdade terrível às nossas inocentes crianças, que essa figura tão marcante na imaginação delas e de todos nós adultos, que nunca deixaremos de ser crianças também, não passa de vil instrumento de lucro do capitalismo e, em vez de justo e bondoso, não passa de um Papai Noel capitalista interessado apenas no seu próprio bolso, ou saco, sem fundo?
Mas, ainda assim, é possível desejar a todos os leitores um feliz Natal.       

12 de dezembro de 2004

Dívida, sem dúvida!

Jornal O Estado do Maranhão 
Tudo mundo sabe. Em nome de hipotética “conquista de direitos” e quixotesca “defesa da soberania nacional” face ao bicho-papão FMI, algumas bobagens foram colocadas na Constituição de 1988. Uma das mais pitorescas foi a da limitação da cobrança de juros a 12%, exigência que, cumprida, nos levaria à anarquia econômico-financeiro, porquanto implicaria a renúncia a qualquer política monetária.
Os juros, como os estudantes de primeiro semestre de economia sabem, é o preço do dinheiro. Eles são uma referência básica para todas as atividades econômicas, junto com a taxa de câmbio e os salários. Seu tabelamento em nível artificialmente baixo causaria desestímulo à poupança e problemas de crédito, com as conseqüências que não precisamos mencionar de tão óbvias. Felizmente esse dispositivo constitucional, produto da ignorância acerca dos mais elementares princípios econômicos, foi revogado, por absoluta impraticabilidade, como os congressistas perceberam em crise momentânea de bom senso.
Outra daquelas besteiras é a da auditoria da dívida externa. O artigo 26, do Ato das Disposições Transitórias de nossa opulenta Constituição, exige no prazo de um ano, a partir de sua promulgação, “exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”.No caso da apuração de irregularidades, “o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato [...]”.
Ora, essa nulidade é outro nome de calote. O raciocínio enviesado é este. Se o governo do Brasil pediu dinheiro emprestado no passado e algum pilantra federal meteu os dólares no bolso, quem deve pagar pela traquinagem é o emprestador, porque os dirigentes do mesmo Brasil, hoje representado por outras pessoas, fizeram opção preferencial por colocar a culpa da molecagem indígena no satanás alienígena. Todavia, os supostos ladrões eram representantes tão legítimos do país quanto os governantes de hoje. A dívida, óbvio, é do Brasil, não de certo gatuno.
O endividamento mais recente de São Paulo não foi feito por Maluf ou Pita na condição de cidadãos, mas como delegados legítimos, embora tidos por desonestos, do município. Seus sucessores, por causa dessas virtudes, deveriam desobrigar-se do reembolso ao credor? Se alguém deve ser punido são os punguistas dos recursos ou quem tomou os empréstimos sem o devido zelo com respeito às condições de pagamento. Terá algum banco internacional enfiado dinheiro goela abaixo do Brasil?
Agora a veneranda Ordem dos Advogados do Brasil e a benemerente CNBB, apoiadas pelo MST, embarcam nessa canoa ideológica de auditoria. Eu sou a favor também de se apurarem as condições em que a dívida foi contraída (não sei se desde a época de D Pedro II ou de Deodoro), não para não pagá-la e sim para processar os eventuais larápios. Se se descobrir que não tomamos emprestado x, mas a metade de x, ótimo, vamos pagar apenas o devido, contudo pagar. Isso, porém, não livrará a cara dos ladrões nacionais nem colocará a culpa dos nossos males em ombros estrangeiros.
A fim de mostrar ao leitor até onde chega o delírio de algumas pessoas quando se deixam contaminar por idéias pré-concebidas, menciono Beverly Keene, especialista que participou de um seminário sobre o tema. Primeiro, ela fez a redescoberta da roda: “A dívida não é natural. Isso tudo foi construído e vendido”. É verdade, apenas num sentido trivial, pois toda a cultura humana igualmente é uma construção. Depois, propõe uma solução “política” através, de uma “batalha cultural”. Esse é o tipo de palavra de ordem de passeata que não significa nada. Ou significa tudo, dá no mesmo.
Assim como se arrancou da Constituição a idéia de tabelamento dos juros, já é hora de se arrancar também a de auditoria da dívida. Sem dúvida!

5 de dezembro de 2004

Saúde perfeita

Jornal O Estado do Maranhão 
Há três anos, eu escrevi uma crônica com o título “Coco mata”. Eu fazia referência ao conselho, de parte dos entendidos em prevenção de doenças, sobre a necessidade de se fazerem checkups anuais, depois de certa idade, que, tenho de confessar, já ultrapassei com relutância e má vontade, mas há não muito tempo. Seria, tal procedimento, uma espécie de seguro contra ataques traiçoeiros de uma doença moderna qualquer, dessas desconhecidas de nossos avós, ou mesmo das mais antigas, como derrame cerebral, atualmente chamado de acidente vascular-cerebral.
Nós, que não somos médicos nem ameaçamos ninguém com o desejo de sê-lo, ficamos sem saber como proceder a fim de preservar a saúde, pois o recomendável num momento pode não sê-lo no seguinte, como no caso da margarina que, dizem atualmente os pesquisadores, não é boa nem ruim para nosso organismo. Antes, não só não fazia mal ao coração como até o protegia, por causa de sua procedência vegetal, sendo o substituto ideal da nociva manteiga, de origem animal. Era o reino vegetal contra o reino o animal, um defendendo o nosso organismo e o outro atacando.
Vejam agora esta novidade. Dos Estados Unidos, país onde os checkups foram inventados, vem a notícia. Uma equipe de médicos e estatísticos andou examinando os exames utilizados nessas vistorias e chegou a conclusões que precisamos examinar com bastante cuidado.
O grupo deu notas baixíssimas aos preventivos de câncer de próstata, (PSA e toque retal, este de má fama entre os potenciais examinandos, que, vê-se hoje, estavam certos em rejeitá-lo, embora pela razão errada) e de pulmão (raios-X de tórax, tomografia computadorizada e análise de escarro). Os pesquisadores revelaram restrições também aos exames teoricamente destinados à descoberta precoce de câncer de ovário (ultra-sonografia transvaginal) e de doenças coronarianas (eletrocardiograma, exercícios de esforço ou tomografia computadorizada).
Em todos esses casos, ou os danos dos tratamentos precoces superam os benefícios para os pacientes, na suposição de haver eficácia nos exames, hipótese duvidosa, ou não se pode afirmar que os tratamentos adotados como resultado do diagnóstico precoce são benéficos ou maléficos. Em resumo, a recomendação é de não serem feitos regularmente. Outros testes, no entanto, como do colo do útero, medição da pressão arterial e mamografia continuam com a recomendação de realização rotineira.
E assim a gente leva a vida, na ilusão de ter boa defesa contra as doenças, mas em verdade sofrendo, por assim dizer, ataques científicos a toda hora. É difícil apontar com segurança a melhor maneira de se tratar. Dou um exemplo.
Com o fim de emagrecer e evitar os problemas de saúde sobre os quais os checkups deveriam nos avisar com antecedência, um gaúcho, sob orientação médica, resolveu fazer uma dieta de engorda, indo de 125 quilos a 134 em 70 dias. Depois, fez uma cirurgia de redução do estômago, caindo para meros 71 quilos. É que a operação, de acordo com normas das entidades médicas, só pode ser feita em obesos gravíssimos, o que ele ainda não era antes da engorda. Quase morreu no pós-operatório, mas sobreviveu, não sei se feliz ou infeliz, porque de agora em diante não poderá comer muitas comidas de que gosta, pelo resto da vida, possivelmente longa. Tornou-se um magro frustrado, sequer melhorou seu bem-estar físico e vive na incerteza sobre seu futuro.
A continuar esse excesso de, vamos dizer, zelo, chegará a hora de uma simples torção no tornozelo levar o sujeito à internação em um hospital. Lá, ele fará dezenas de exames. Se morrer durante a cirurgia, sua família terá o conforto de saber que ele se foi com a saúde perfeita, contente pelo tratamento com a melhor tecnologia disponível no mercado da medicina.

Machado de Assis no Amazon