30 de maio de 2010

Vida kafkiana

Jornal o Estado do Maranhão, 30/5/2010

A imprensa deu notícia há poucos dias de um caso terrível. Em Curitiba um homem ficou preso durante um ano e dois meses, mesmo depois de inocentado da acusação de assalto a uma residência. Os policiais suspeitaram dele apenas porque os verdadeiros assaltantes moravam no mesmo bairro do inocente. O pobre pizzaiolo afirmou que vai processar o governo do Paraná por sua prisão. A prevalecer essa ideia de moradores da vizinhança de bandidos também o serem necessariamente, teríamos de criar bairros exclusivos de marginais, a fim de evitar que as pessoas honestas fossem com eles confundidas.
Agora outro caso, mais terrível ainda. Na época do Estado Novo, em 1937, na cidade de Araguari, em Minas Gerais, um homem, Benedito Pereira Caetano, enganou seus dois sócios e primos e fugiu com toda a receita resultante da venda da safra de arroz pertencente aos três. Os enganados, os irmãos Joaquim e Sebastião Naves, denunciaram o ladrão à polícia e acabaram passando de acusadores a acusados. Torturados, confessaram um crime que não cometeram. A história serviu em 1967 de tema de um filme, “O Caso dos Irmãos Naves”, dirigido por Luís Sérgio Person, com Raul Cortez e Juca de Oliveira no papel dos irmãos e Anselmo Duarte no do tenente de polícia Francisco Vieira dos Santos, chefe das investigações e torturador dos presos e, até, de seus familiares.
Não quero me deter no mau funcionamento das instituições policias e judiciárias. Algo tão evidente e corriqueiro acaba passando como normal e adequado. É assunto para muitos livros. Prefiro olhar essas coisas como sintoma de algo bem maior: o tipo de sociedade que criamos, pelo menos no mundo ocidental, mas que não é exclusividade do capitalismo, como a esquerda infantil gosta de afirmar, sendo característica até mais evidente nas sociedades totalitárias, como se observa na Coreia do Norte e no Irã, países, como se sabe, adeptos da democracia vigorosa, mesmo na base da repressão e da tortura de quem discorda do governo. Se me permitem a expressão, tudo na base do cacete.
Penso na luta dos cidadãos ou, com mais abrangência, dos seres humanos, contra forças cruéis e injustas presentes no dia a dia de todos. A esse respeito, vejo Franz Kafka como o escritor com a percepção mais aguda no século XX. Seus romances e contos mostram isso. Todos conhecem a maneira quase fleumática, neutra, indiferente mesmo, do narrador das histórias de Kafka de apresentar fatos do mais completo absurdo, criando com isso um efeito impactante sobre o leitor. Gosto de citar o exemplo do início de O processo (tradução de Modesto Carone): “Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum. [...] Isso nunca tinha acontecido antes”. Ora, qual a diferença entre isso e os exemplos citados acima? O livro escrito entre 1914 e 1915, mas publicado somente em 1925, e traduzido em 1937 para o inglês, quando alcançou público numeroso, ressoa até agora como de extrema atualidade, assim como toda obra do escritor tcheco de língua alemã. Não nos é estranha, nos dias atuais, sua temática do homem impotente diante daquelas forças que o apequenam e massacram e contra as quais pouco ele pode fazer, criando a impressão, ou a percepção, de estarmos todos num beco sem saída, presos a uma armadilha de onde é impossível sair e cujo instrumento é a burocracia, estatal ou não, inclusive a judicial.
O processo nos alerta, penso eu, sobre como poderia ser a vida na hipótese de, num estado totalitário como um desses apoiados pelo governo brasileiro, Irã, Cuba e outros, (a Venezuela está a caminho bem como os regimes “bolivarianistas da América do Sul”), fôssemos enredados nos labirintos das polícias políticas ou serviços de inteligência: tribunais invisíveis, acusações secretas e sem provas, impossibilidade de defesa, ameaças à família dos acusados e todo o conjunto de arbitrariedades desses regimes adorados de longe, aqui do Brasil, por “esquerdistas” que não se dispõem a viver nessas sociedades e experimentar suas delícias.

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