29 de março de 2009

Ardil



Jornal O Estado do Maranhão


O Brasil é o país do cadastro. Eu já fiz várias vezes essa afirmativa e repito: país do cadastro. Pois não é que o ministro Orlando Silva decidiu que o cidadão brasileiro terá de fazer um cadastro se quiser ir a jogos de futebol? A proposta não surpreende, dada a simpatia de seu partido, o PC do B, pelo extinto regime ditatorial da Albânia e pelas ditaduras de um modo geral, com a só exigência de serem autointituladas comunistas da linha albanesa.
Pois bem, o burocrata, incapaz de reprimir a violência nos campos de futebol, obrigação do poder público, ou de oferecer segurança aos frequentadores, achou por bem, sob o argumento de assim preparar o país para a Copa do Mundo de 2014, transferir a tarefa aos cidadãos e tenta fazê-lo com o auxílio de um cartão eletrônico de acesso aos jogos. O lógico, contudo, caso se admitisse, num momento de burocratice explícita, a necessidade de mais um cadastro, seria construí-lo pela inclusão dos baderneiros e não do torcedor cumpridor da lei. Se a Fifa tiver notícia da insanidade, é capaz de cancelar a realização do torneio aqui.
Todos se lembrarão do cadastro do titio Berzoini, aquele do PT, ministro por algum tempo. Ele tinha gana de matar os velhinhos brasileiros. Queria dessa forma reduzir as despesas da previdência social bem como aumentar a renda per capita do país, pela diminuição do denominador da divisão da renda nacional pela população. Não deu certo. Mas, como se vê, esse pessoal é persistente.
Na finada União das Repúblicas Socialista Soviéticas, regime liberal vendido ao capitalismo internacional, segundo a inteligente e original avaliação albanesa, as pessoas eram obrigadas a tirar passaporte se quisessem viajar. Não a outros países, mas de uma região a outra da União. Não demora, o Silva vai propor a mesma coisa. Vamos imaginar a seguinte situação. Eu resolvo relaxar no Piauí, na cidade de Parnaíba, e todo contente vou até a fronteira com o vizinho estado. Lá sou barrado por falta de visto em meu passaporte, pois sem que eu soubesse os piauienses decidiram não concedê-lo. Aliás, ninguém tinha me avisado da última do ministro. Fazer o quê? Invadir o antes estado-irmão e anexá-lo ao nosso ou, pelo menos, anexar a porção piauiense do Delta do Parnaíba?
Um dia, estou em casa, filosofando sobre a influência dos meiões do jogador Roberto Carlos na perda de Copas do Mundo, e eis que, inexplicavelmente, sou tomado pelo desejo de ir a uma partida de futebol do campeonato maranhense. Corro para o estádio. Ou melhor, não corro, porque me lembro de que não sou cadastrado e, portanto, seria proibido de entrar, como um desordeiro qualquer. Devo arrancar os cabelos? Ou me valer do mercado negro e comprar por debaixo dos panos um cartão de torcedor, provavelmente falsificado? E um turista da Samoa Americana, fã do futebol brasileiro, que desejasse em sua passagem por São Luís conhecer nossos craques? Teria de passar pela burocracia estatal a fim de satisfazer um prosaico desejo pequeno-burguês?
O certo, isto é, o errado é isto. As autoridades brasileiras, ao se defrontarem com dificuldades no cumprimento de suas obrigações, passam a responsabilidade adiante, e a colocam, de preferência, nas costas do cidadão comum. Adotam a linha que lhes parece de menor resistência a sandices. Os autores de ideias como essa deveriam ser castigados como antigamente nas escolas: uma dúzia de bolo em cada mão, sem direito a choro; depois, curado o inchaço, a repetição no caderninho, mil vezes, da frase: "Devo me comportar bem".
Orlando Silva era o nome do Cantor das Multidões" da era do rádio, que gravou "Lábios que Beijei", "Carinhoso" e outros grandes sucessos populares. Ele subjugava multidões. O Orlando atual deseja subjugar também, não, como o outro, com arte. Com ardil.

15 de março de 2009

Soneca



Jornal O Estado do Maranhão


Não sei se o leitor se lembra de meu assunto da semana passada. Lembra-se, claro. Não? Desculpe a pretensão. Aqui está. O ovo, considerado durantes anos e anos o vilão-mor da saúde, por nunca provados malefícios ao frágil coração humano, de repente passou a herói, a quase um certificado de garantia de que podemos viver tanto quanto Matusalém, e mais mil anos, se fizermos farras diárias e espetaculares com ele: feito farofa, omeletes e gemada. Cozido ou frito. Ovo, ovo e mais ovo. Ele foi declarado não apenas inofensivo. Passou à categoria de benemérito do nosso corpo, um insuperável viagra, uma espécie de remédio de "amplo espectro", como dizem as bulas de antibióticos, com efeitos em todo o corpo e não só nos pontos fracos da anatomia masculina. Ou nas pontas. Faz até emagrecer.
Agora outra revolução, que não sei se destruirá o Ancien Régime da prática médica, decapitando em pouco tempo quem, com a descoberta, iniciou o movimento, como a Revolução Francesa decapitaram seus líderes, acaba de ser apresentada ao respeitável público. Se o leitor estiver em pé, sente-se por favor numa confortável poltrona, se não quiser correr o risco de "ir ao chão", como Terezinha de Jesus na canção infantil. É verdade. Tirar aquela velha soneca depois do almoço aumenta o risco de aparecimento da diabetes do tipo 2, dizem respeitados cientistas britânicos, de mais respeitado ainda centro de pesquisa científica da Inglaterra, ou da Escócia. Ou será da Irlanda? Sei, lá, já não me lembro. O importante é o fato.
Quer dizer então que foi um inexcedível engano, um equívoco tenebroso toda aquela pregação sobre a necessidade de se descansar depois do almoço, a fim de recuperarmos as forças para o resto da jornada de trabalho? Nada daquilo serve mais? Nada? Foi tudo jogado no lixo? Devemos esquecer assim, sem mais nem menos? Foi mentira de capitalistas selvagens? Caíram numa esparrela as grandes empresas de todo o mundo que investiram muito dinheiro na adaptação do ambiente de trabalho a fim de que seus empregados (desculpem, colaboradores, como é moda chamar os empregados agora), possam roncar em sossego sem ter de ir pra casa, de papo pro ar ali nas barbas, ou nos bigodes, dos patrões, quer dizer, dos colaboradores-chefes?
No princípio não acreditei na notícia. Ou melhor, acreditei, sim. Afinal, refleti com calma, esse vai-e-vém sobre o bom e ruim para a saúde é mais antigo do que a minissaia ou a Jovem Guarda, mais antigo do que o Big Bang, mais antigo do que o próprio tempo. Pensei. Será o México uma nação de diabéticos? A siesta dos mexicanos, esporte nacional, é tão ruim assim, maléfica? Qual a razão de não a proibirem logo, então? E os espanhóis, conhecidos sonequeiros, irão sofrer as consequências de tão funesto hábito? Ficarão com receio de perder as forças e a capacidade de tourear? Por falta de toureiros livres da doença, não se ouvirão mais olés nas arenas de touro, apenas nos campos de futebol?
De hoje em diante nunca mais direi "esse menino não me deixa dormir" nem reclamarei quando meu neto Davi, ou, daqui a alguns meses, quando aprender a andar, minha neta Ludmila (sobre ela falarei em breve) me acordarem no meio da gostosa sesta a fim de mostrar o dedo machucado e pedir um beijo. Darei mais de um, receberei muitos e pensarei depois: Poxa, fui salvo mais uma vez.
Mas, no dia seguinte não deixarei de voltar a praticar o esporte mexicano, certo de que os dois irão me salvar, como nos filmes de aventura, no último momento, à beira do precipício tenebroso, quando a traiçoeira enfermidade estiver a ponto de lançar o assalto final sobre um membro de uma família de diabéticos no lado paterno e eterno assombrado com o espectro da glicemia.
Mas, com guardiães como Davi e Ludmila, que mal poderá me assaltar?

8 de março de 2009

Pode, Não Pode



Jornal O Estado do Maranhão


Eu passei quase toda minha vida de adulto ouvindo condenações definitivas ao consumo de ovo. Comê-lo era suicidar-se aos poucos ou condenar-se a eternos dramas de consciência. Quem cometesse o pecado teria poucas chances de viver mais de 30 ou 40 anos. Com sorte, chegaria a 50, pois junto com o maldito viria o acúmulo inevitável de colesterol no sangue (do mau colesterol, evidentemente). Daí ao entupimento das artérias, com todas as apavorantes consequências sobre a saúde do corpo e do bolso de quem só podia ser um autodestrutivo, seria um passo. Um ataque de coração não era apenas uma possibilidade. Tratava-se de uma certeza, como a de o fisco cobrar impostos. No meu tempo de criança, no entanto, e depois, já bem crescido, eu comia, com a permissão de minha mãe, ovo diariamente no almoço e no jantar.
Pobre ovo! Suportou por tanto tempo a pecha de assassino, embora assassino de sabor inigualável, assassino de quem muita gente não gostaria de escapar, produto de uma galinha qualquer com um galo todo apressado. Galo do tipo galinha, por assim dizer, sempre a ponto de atacar qualquer fêmea a atravessar seu caminho, dando ela bola ou não ao tarado de crista. Poderia estar nessa promiscuidade galinácea, quem sabe, a origem da má fama do ovo, assim como a maçã foi, dizem os relatos bíblicos, a origem dos nossos pecados, razão insuficiente de ser vaiada e apontada na rua como inimiga da saúde humana, como o foi o ovo.
De repente, porém, sem aviso prévio, sem um cocorocó agudo, sem estardalhaço, sem um bater de asas, deselegante embora, eis os pesquisadores americanos – sempre eles –, aproveitando-se de nossa distração enquanto comíamos escondidos uns bons ovos fritos, com o maior sentimento de culpa, claro, a anunciarem o fim do pesadelo. A partir desse anúncio, estamos livres para comer quantos ovos quisermos, quando quisermos. Há não apenas um, há vários estudos bem fundamentados, supõe-se, todos demonstrando os benefícios desfrutados por seres ovívoros.
Um dos estudos chegou a conclusão surpreendente. A ingestão de ovo ajuda a perder peso, o sonho de toda modelo. Imagino elas se empanturrando nas semanas de desfile. "Quantos você comeu hoje?" uma pergunta. "Já perdi a conta", responde a outra, "eu como dois de cada vez". Ovo faz perder peso mais do que o fazem dietas radicais e reduz a gordura da cintura. Em outras palavras, chegou-se finalmente ao nirvana da alimentação. Levante a mão quem disse que toda comida gostosa engorda e faz mal.
Um outro estudo mostrou ser o consumo de colina, componente do ovo e indispensável ao funcionamento do cérebro e das células, muito pequeno entre a população americana. Assim, ovos deveriam ser consumidos em maior quantidade.Apenas dois deles fornecem por dia metade da quantidade necessária ao organismo. Um verdadeiro ovo de Colombo. Ou, melhor dizendo, dois.
Um terceiro estudo afirma, a respeito das restrições ao consumo de ovos, impostas por conta do colesterol, ser o procedimento besteira.  Os pesquisadores compararam o risco representado por essa vilipendiada substância com outros fatores de desenvolvimento de doenças coronárias, como idade, genética, hábitos alimentares, tabagismo, consumo de álcool, pressão sanguínea, obesidade, diabetes e sedentarismo, e chegaram à conclusão de ser a contribuição dos ovos insignificante, de apenas 0,5% para esses males nos homens e 0,4% nas mulheres.
O perigo, dizem eles, está na gordura saturada. Não se sabe até quando essa avaliação será válida. Em pouco tempo os entendidos poderão garantir que gordura desse tipo é boa para o coração, matando-nos de coração e de arrependimento por não termos nos deliciado com ela durante tantos anos. E quem ficará surpreso com a mudança?
Prefiro a sabedoria de minha mãe.

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