20 de fevereiro de 2011

Cortes, onde estão os cortes?

 
Jornal O Estado do Maranhão


Imaginemos uma família brasileira de classe média com rendimento em 2010 de R$ 30 mil. Desta quantia, ela destinou R$ 10 mil ao pagamento de juros de empréstimos e financiamentos. Os restantes R$ 20 mil foram utilizados no consumo de bens duráveis e não duráveis. A estimativa pela família, de sua receita em 2011, é de R$ 40 mil; de pagamento de juros, R$ 15 mil; e de gastos em consumo, os R$ 25 mil restantes. No entanto, ao perceber o aumento acentuado, de 50%, no valor dos juros a serem pagos, consequência de novos empréstimos e financiamentos assumidos ainda em 2010 e usados na sustentação de grande parte de seu aumento de consumo, ela chegou à conclusão de que deveria cortar seu custeio, evitando com isso a necessidade da tomada de novos empréstimos e a ameaça de aumento adicional na sua conta de juros, com sério risco de insolvência financeira. A decisão foi comunicada em reunião solene no primeiro dia de 2011, apesar dos protestos dos adolescentes da casa, todos ávidos por emendas ao orçamento familiar, com a destinação das verbas assim obtidas a seus ficantes.
A chefe da família decreta então um pesado corte de 15%, ou R$ 6 mil, no orçamento familiar de 2011, baixando assim a estimativa de suas despesas a R$ 34 mil. (Deveria eu dizer “a chefa da família”, como exigiria a senadora e sexóloga Marta Suplicy, ignorando a forma mais corrente na língua, “a chefe”? Melhor, penso eu, usar “a dirigenta”). Em que pesem as reclamações dos filhos, a “dirigenta” não deixou de ser reconhecida pelos familiares como correta do ponto de vista das finanças do lar. Mas, como nem sempre o rei se encontra vestido, o caçula saiu-se com esta: “Peraí, no ano passado os gastos foram de 30 mil, este ano vão ser de 34 mil. Afinal, nós vamos gastar menos ou mais? Se, mais, quero minhas emendas”. Chatos, esses adolescentes!
Essa é com precisão a situação com respeito aos anunciados cortes no orçamento do governo federal. Fala-se em tesourada de R$ 50 bilhões na previsão de despesas de custeio, estimado em R$ 769 bilhões no orçamento de 2011. Repito, no orçamento de 2011. Se a bordoada fosse de fato aplicada, haveria redução para R$ 719 bilhões na previsão inicial. Ora, na execução orçamentária de 2010 esse item teve valor mais baixo, chegando a “tão só” R$ R$ 657 bilhões. Pela minha aritmética, a diferença entre os dois valores, já considerada a possível diminuição de despesas, chegaria a R$ 62 bilhões. Esse é o aumento deste ano em relação a 2010. Em outras palavras, vai se gastar mais em 2001 do que se gastou em 2010. Onde, o corte?
Poderá alguém argumentar corretamente que tão importante quanto o montante do custeio é sua participação sobre o PIB. Pois bem, se este crescer 10% nominalmente em 2011, como muitos economistas preveem, o percentual do custeio sobre o PIB praticamente não se modificará. No ano passado, tal relação foi de 17,9%. Nula seria a contribuição do propalado corte ao combate às atuais pressões inflacionárias, herança maldita herdada dos gastos de custeio descontrolados do governo anterior. Na ausência de reduções realmente profundas e consistentes, os juros continuarão, como hoje, um dos mais altos do mundo.
Vamos agora à questão da viabilidade de implementação da promessa do governo. Valho-me de análise feita em seu blog por Mansueto Almeida, economista do Ipea.
O cálculo é simples. Se, do custeio previsto para 2011, no valor de R$ 194,53 bilhões, forem retirados os gastos com saúde e educação (R$ 72,18 bilhões) que, conforme a promessa, serão poupados da tesoura, então ficaremos com R$ 122,4 bilhões. Deve-se tirar daí outros gastos sociais, também isentos de sacrifício. Exemplos mais evidentes: o beneficio mensal ao deficiente e ao idoso, bolsa-família , auxílio financeiro a estudantes, seguro-desemprego e PIS/PASEP. Eles somam R$ 68,65 bilhões. Restarão apenas R$ 53,7 bilhões. É deste valor que o governo diz querer cortar mais R$ 50 bilhões. Restariam míseros R$ 3,7 bilhões a serem usados no custeio de todas as áreas da administração, exceto as sociais.
Assim, não dá.

6 de fevereiro de 2011

Arrumação


Jornal O Estado do Maranhão

          Bibliotecas são modelos perfeitos da lei da entropia, tendência de aumento, com o passar do tempo, do grau de desorganização de um sistema fechado. (Suponhamos que elas constituam sistemas fechados). Essa ideia, visitante frequente de minhas divagações noturnas, se revelou concreta recentemente quando a percepção da bagunça imperante em minha biblioteca quase me levou ao desespero e me alertou acerca da necessidade de evitar os custos de horas e horas perdidas em procuras inúteis. Livros que eu tinha a certeza de gozarem de tranquilo repouso nas prateleiras não podiam ser localizados, justamente na hora de grande necessidade. Papéis importantes não apareciam. Aquele recorte de jornal, a ser usado algum dia como fonte na produção de um texto importante e transcendental, de interesse da humanidade, sumido. Os desaparecimentos me lembravam daqueles dos personagens de A revolta de Atlas, de Ayn Rand. A certa altura da trama romanesca, eles sumiam sem explicação.
Com determinação lancei-me à empreitada de colocar ordem na casa. “Na casa” não é força de expressão porque, considerando tempo que passo na biblioteca, ela é quase minha casa mesmo.
O ataque imediato foi às obras espalhadas pelo chão do quarto, ao lado da cama, da rede, entulhados na mesinha de cabeceira. Depois, às em cima da mesa da sala e ao lado da televisão. Não, no banheiro não havia nenhuma nem na cozinha. De algumas, minhas lembranças já estavam quase apagadas. Olha só, eu dizia a mim mesmo, esta edição de Dom Casmurro, eu já não me lembrava dela.
Terminada a incursão pelos aposentos, um carrinho do tipo de supermercados serviu de transporte aos volumes até a antiga morada, seu lugar de origem, a biblioteca, de onde nunca deviam ter saído e para onde deveriam ter voltado muito antes. A tarefa era criar espaço para eles. Mas, não dizem “quem foi ao ar, perdeu o lugar”? Pelo menos, diziam. Pois eles tinham ido precisamente ao ar – e também ao chão, às cadeiras, às mesinhas –, e perdido o lugar. Novos exemplares tinham, sem mais demora ocupado as vagas disponíveis. Talvez seja melhor dizer que tinham se apossado delas. Solução radical e, como tive consciência mais tarde, dolorosa, se impunha. Empilhar tudo na área da biblioteca era atividade de risco pela ameaça permanente de soterramento. Vieram-me à lembrança as cenas recentes dos deslizamentos de terra nas cidades serranas do Rio de Janeiro. A diferença é que, no meu caso, nem haveria necessidade de chuva para a ocorrência da tragédia.
Com relutância admiti a utilização de medida até então não considerada: a adoção dos desalojados por almas caridosas. Trauma sofrido por mim há mais de quinze anos em Brasília me atormentava, no entanto. Eu fora a um sebo numa fatídica manhã de sábado, na Asa Norte. Lá vendi, pela mesma razão de agora, falta de espaço, um dicionário Caldas Aulete, em vários volumes, publicado, creio, nos anos sessenta. Depois, arrependido, tentei a anulação do negócio, sem sucesso. Alguém já o havia adquirido. Eram dias, agora, de indecisão, mas, sem alternativa, levei adiante a ideia.
Ao fazer a seleção dos livros com a finalidade de fazer a doação a suas novas famílias, criando com isso espaço para os que permaneceriam, dei explicações a eles e procurei consolá-los e a mim mesmo: vocês estarão mais bem acomodados em outra biblioteca, nada de mal lhes acontecerá, tenham certeza, ninguém vai rasgar suas páginas, quem sabe no novo lar haverá até um sistema de prevenção de incêndio, etc.
Terminada a primeira etapa, comecei a distribuição entre pessoas bondosas o suficiente para não deixarem nenhum deles ao relento, num lixão, pegando sol e chuva até se desintegrarem na mãe natureza, numa fábrica de papel reciclado ou, suprema perversidade de gente desalmada e suprema humilhação dessas criaturas, em usos menos do que nobres em instalações sanitárias públicas ou mesmo em privadas.
Dias após, notei alguns dos retornados às prateleiras repousando de novo ao lado da cama. Trabalho de Sísifo. Trabalho à toa? Onde seriam acomodados os livros recém-adquiridos?

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