26 de outubro de 2003

Passo adiante

Jornal O Estado do Maranhão
Tenho feito diversas referências aqui à inflação que feriu nossa sociedade durante anos. A cura tardia dessa doença econômica trouxe dias melhores a milhares de brasileiros. Antes, porém, por falta de defesa contra ela e diferentemente dos ricos, capazes de defenderem-se, os pobres viam seus minúsculos rendimentos desmancharem-se rapidamente no ar, semelhantemente à dissolução, pelo capitalismo, de valores morais e espirituais, apontada pelos jovens Marx e Engels: “Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas”.
A verdade, contudo, é esta: há muita coisa a ser feita ainda, apesar do muito que já se fez. O fim da desordem no sistema de preços representou, claro, a eliminação do imposto inflacionário, fonte graciosa, para os governos, do financiamento da farra de gastos de então, com as conseqüências desastrosas bem conhecidas. Ora, em um ambiente econômico não-inflacionário, como o prevalecente no país a partir de 1994, o banimento desse tributo perverso não foi compensado por um sistema tributário que incentivasse a formação de poupança no Brasil e criasse, por conseqüência, a possibilidade do equilíbrio orçamentário do governo pelo financiamento interno. Em outras palavras, uma reforma profunda, exigida pelas novas circunstâncias não foi feita. Resultado: a fim de equilibrar suas contas, o governo passou a recorrer cada vez mais ao endividamento externo.
A proposta ora em discussão no Senado propõe prorrogar até 2007 o injusto imposto chamado CPMF bem como a Desvinculação das Receitas da União que permitirá ao governo federal utilizar em outras áreas parte das atuais vinculações orçamentárias da saúde e da educação; unificar a legislação do ICMS e reduzir o número de suas alíquotas a 5, acabando, na prática, com a guerra fiscal entre os Estados; manter tanto os fundos de desenvolvimento regional, adicionando-lhes, porém, um percentual do Orçamento Geral da União, quanto o Fundo de Compensação das Exportações, da forma como foi aprovado na Câmara dos Deputados.
Curiosamente, o texto do relator da reforma fixa o ano de 2007 como de revisão das novas regras, não se sabendo bem por que se deva fazer algo, hoje, com a prévia intenção de reformulá-lo amanhã. Não seria melhor construir alguma coisa mais sólida, que não desmanchasse facilmente?
Muito pouco das mudanças torna as atuais regras mais justas ou mais simples. O setor financeiro, por exemplo, capaz de auferir lucros enormes enquanto os demais setores sofrem profunda recessão, continuará pagando pouco em impostos. Uma sugestão do Ministério da Fazenda, anteriormente aprovada pela Câmara, foi rejeitada pelo relator. Ela previa a incidência sobre o os ganhos dos bancos da maior alíquota da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido. A simplificação do ICMS será superficial, confirmando a pecha de nossa máquina de arrecadação de ser um dos mais complicados do mundo, com suas exigências burocráticas irracionais e infernais. (Não digo satânicas para não ser também exorcizado pelos que costumam exorcizar Satanás eletronicamente pela televisão).
O professor José Cezar Castanhar, da Fundação Getúlio Vargas, observou o seguinte, ao comentar os resultados de um estudo do Banco Mundial, que nos aponta como um dos países onde há mais barreiras à abertura ou liquidação de empresas: “No Brasil, as exigências burocráticas são empecilhos à atividade empresarial. A dificuldade para abrir uma empresa, a carga tributária elevada e a rigidez das regras trabalhistas sã desestímulos que acabam levando a uma maior informalidade”.
O estudo mostra que a simplificação de procedimentos e a justiça tributária não são apenas questões de racionalidade administrativa ou de eqüidade social. São também, ou principalmente, exigências econômicas. Elas tornam a economia mais eficiente e ajudam a criar empregos e combater a pobreza e a corrupção endêmicas.
Uma reforma nessa linha é o passo adiante a ser dado.

19 de outubro de 2003

Rei morto

Jornal O Estado do Maranhão 
Apresentava-se sempre como rei. Quando cruzávamos com ele pelas ruas do Monte Castelo – pois ele agia como um rei escandinavo, facilmente acessível a seus súditos sem os rapapés da corte, sem trombetas a anunciarem sua passagem, sem escolta ou proteção de espécie alguma, numa atitude de plebeu mais do que de soberano – quando cruzávamos com ele, observávamos seus ternos de um tecido grosso, apesar do calor, infalivelmente folgados e desabotoados, a despeito da majestade dele, os sapatos privados de qualquer graxa e um tanto gastos, as meias e calças largas, estas, porém, um pouco curtas, as mãos nos bolsos e o cinto ligeiramente apertado sobre uma barriga em crescimento com o passar dos anos.
Seria difícil adivinhar quantos anos deveria ter. Entre nós, alguns achavam mesmo que sua idade nunca tinha mudado, desde quando pela primeira vez o tínhamos visto, surpresos, havia alguns anos. Sabíamos, sim, da constância do seu passeio. Ficávamos ali reunidos à noite na pequena praça em frente ao cinema. Dali, podíamos ver quando se aproximava, em sua ronda solitária e digna, tão certa quanto certo era falarmos de nossas peladas de futebol, de namoradas, então dificilmente peladas em qualquer circunstância, da primeira viagem do homem à lua e da próxima ida no fim de semana ao bar Deus é Grande, que depois passou a ser o Bar do Nezinho, a fim de tomarmos – quatro ou cinco de nós – um litro inteiro de rum Montila com uma única e escassa garrafa de coca-cola, porque o dinheiro não dava para mais, e, em seguida, terminarmos a noite em alguma festa, sabe-se lá onde, até tarde, jamais pensando na imensa preocupação de nossas mães pela demora.
Quando nos encontrava, ele se esquecia de seus insondáveis sonhos, parava de repente, olhava-nos com uma certa condescendência real, escolhia um de nós ao acaso e dava uma ordem, com sua voz grave e firme, pronto a calar contestações com seu olhar superior: “Me dá um dinheiro, aí. Eu sou o rei dos homens”.
Era assim, uma das figuras mais populares de São Luís naqueles anos. Todos o conheciam como Rei dos Homens e essa era sua maneira de referir-se a si mesmo. Contudo, seu verdadeiro nome era Ivonaldo. O apelido veio das histórias contadas por ele sobre suas aventuras amorosas. Nelas, feito um potentado oriental, apesar de ser filho de um português, ele possuía todas as mulheres que desejasse, sinal seguro, de qualquer maneira, ainda que somente na imaginação, de ser herdeiro dos feitos amorosos dos lusitanos nestes trópicos.
 Havia outros tipos também muito conhecidos em toda a cidade. Nesse tempo, eles podiam andar pelas ruas, livres do risco de sofrer assaltos ou ser assassinados. Desapareceram todos com o crescimento da cidade e da violência urbana. Retirados das ruas, passaram a ser supostamente amparados por um sistema de saúde que não sei se lhes proporciona uma sobrevivência decente, com exceções, como a do Hospital Nina Rodrigues, dirigido pela doutora Teresa Viveiros.
É quase certo que a mudança não os tornou mais felizes. Mas, é incerto o alcance da felicidade pela cura da mente. Afinal, onde fica o limite entre a insanidade e a sanidade mentais, quando se vê diariamente essas barbaridades cometidas no mundo inteiro pelos fazedores da guerra, que matam em nome da racionalidade do dinheiro, com as mais poderosas armas de destruição dos mais fracos?
Rei dos Homens, e outros como ele, eram inofensivos, engraçados e parte do espírito da cidade, e do nosso dia-a-dia, apesar do drama carregado penosamente por cada um deles. Mas, não tínhamos consciência disto. Não pensávamos na tristeza e no sofrimento de suas famílias e de todos que lhes estavam próximos e os amavam.
Passei muitos anos sem notícias dele. Agora, Dr. Raimundo Viveiros, diretor do Hospital Aldenora Bello, excelente cirurgião, velho amigo de infância, me diz que Rei está morto há três anos. No entanto, o velho ditado “rei morto, rei posto” não se cumpriu, pois ele continua a reinar na imaginação de seus contemporâneos.

5 de outubro de 2003

Brasil, Século XX

Jornal O Estado do Maranhão
O IBGE acaba de publicar as Estatísticas do Século XX, um resumo de informações sobre o Brasil nesses cem anos. Com base nos Censos, nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios, realizadas a partir de 1967, nos Anuários Estatísticos, publicados de 1938 em diante, e em outras pesquisas, o órgão reuniu informações sobre o país.
Durante o século, o nosso crescimento foi um dos maiores do mundo. Ele alcançou uma taxa média de 4,5% ao ano, inferior apenas à de Taiwan, com 5%, e igual à da Coréia. O Produto Interno Bruto – PIB brasileiro foi multiplicado por um fator de 110! Entre 1900 e 1973, tivemos um crescimento médio anual de 4,9%, o maior do mundo. O nosso PIB per capita aumentou doze vezes, de R$ 516 em 1901, para R$ 6.056 em 2000; a mortalidade infantil, o número de mortes de crianças de até um ano de idade dividido por mil crianças nascidas vivas, que era de 162,4 em 1930, caiu a 29,6 em 2000; a expectativa de vida ao nascer, de meros 33,6 anos em 1900, chegou a 68,6 anos, mais do dobro, no final do século. (O pessoal de antigamente vivia menos e não mais, como afirma o senso comum); a inflação, mal terrível, que atinge com mais força os mais pobres, foi controlada.
A despeito de todos esses números positivos, a persistência da extrema concentração de renda continua a embaraçar e perturbar nossa sociedade. O coeficiente de Gini, medida usada universalmente como indicador de desigualdades na distribuição de renda, aumentou de 0,50 para 0,59 entre 1960 e 1999. (Quanto mais próximo de 1 esse índice, maior a concentração). O Brasil só não tem uma desigualdade maior do que a Namíbia, Botsuana, Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia, todos nações africanas muito pobres, com economias pequenas. A renda brasileira cresceu. Tornou-se, porém, mais concentrada. Hoje, o conjunto das pessoas que formam o 1% mais rico da população fica com 13% do PIB do Brasil, enquanto o imenso grupo dos 50% mais pobres fica com apenas 13,9%, uma participação no PIB apenas ligeiramente superior à do reduzido número de ricos.
Há poucos dias, falei aqui sobre meu tempo de estudante no Colégio Maranhense, dos Irmãos Maristas. (Equivocadamente, eu chamei de boletim, o que, de fato, todos chamavam de caderneta. Traições da memória!). Eu dizia que, infelizmente, a massificação do ensino havia levado à perda de sua qualidade. Vejo agora o IBGE confirmar minha avaliação.
Houve um formidável aumento na oportunidade de acesso à educação fundamental e à média e uma enorme queda no analfabetismo. Em 1940, o número de alunos matriculados nesses dois níveis de ensino representava 21% do total das pessoas entre 5 e 19 anos. Em 1998, havia subido para 86%. Na população de 7 a 14 anos, em 2000, 94,5% freqüentavam a escola. A taxa de analfabetismo encolheu de 65,1% em 1900, para 13% em 2000. São taxas ainda relativamente altas, ao se considerar o desempenho de outros países que não tiveram as mesmas taxas de crescimento brasileiras. Mas, é um grande avanço.
Mas, o ensino, especialmente a partir dos anos 70, não se adaptou às novas demandas da massificação e viu sua qualidade desabar rapidamente. Chegou-se a uma democratização do acesso à educação baseada exclusivamente na quantidade. É muita gente aprendendo pouco ou nada. Isso representa um formidável obstáculo à superação de nossas desigualdades e ao desenvolvimento econômico. É preciso ter em conta que não existem exemplos históricos de sociedades que tenham melhorado sua qualidade de vida sem um sistema de educação e pesquisa de boa qualidade, adequado ao atendimento das necessidades de crescimento equilibrado.
Uma nação capaz de crescer às altas taxas, como o Brasil o fez no século XX, saberá enfrentar e superar os desafios restantes. Se já viemos de tão longe em muitas áreas, não há razão para não continuarmos a fazê-lo em outras ainda necessitadas de mudanças. Os números mostram o caminho a ser seguido: desconcentração de renda e boa educação. Iremos percorrê-lo até o fim?

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