28 de maio de 2013

Discurso de posse de Phelipe Andrès na Academia Maranhense de Letras em 23 de maio de 2013



Senhor Presidente da Academia Maranhense de Letras Acadêmico Benedito Buzar, na pessoa de quem cumprimento as Senhoras e Senhores Acadêmicos, Digníssimo público. Boa noite!
Agradeço de coração a presença e a receptividade de todos nesta casa. Sinto-me muito feliz em receber esta manifestação de acolhimento que também é expressão de amizade e solidariedade. Ao me irmanar a esta Confraria que congrega homens e mulheres que deram grande contribuição para a cultura maranhense, não preciso enfatizar como é importante ter a certeza de que sou bem-vindo entre aqueles que já habitam a centenária Casa de Antônio Lobo, à qual a partir de hoje passarei a pertencer e que é tão digna e com tantas tradições, que aprendi a admirar e respeitar.
Mas não posso lhes oferecer aqui um discurso acadêmico. Não sou por formação um literato erudito e aos 64 anos isto não se muda facilmente. Três livros, alguns artigos, pareceres para tombamento e crônicas não me parecem suficientes para me ombrear aos excelentes escritores que integram este sodalício. A obra que dá razão a minha presença neste púlpito nesta noite feliz, não é, portanto eminentemente literária.
Mas não sendo um literato na expressão da forma, hão de perguntar algures; o que faz na Academia de Letras um engenheiro? Pois segundo os estudiosos da história desta Casa, depois do Acadêmico José Ewerton Neto, sou o segundo engenheiro a cruzar estes umbrais. Conforta-nos saber que se a Academia existisse nos primórdios do século dezessete, certamente teríamos sido precedidos por Francisco Frias de Mesquita, que projetou a malha urbana original de São Luís.
E sendo engenheiro, sou também um tanto operário. Um operário da cultura se podemos assim designar. Operário no sentido etimológico que vem do latim operarius, de “ópera”, com significado de “atividade”, “trabalho”, pois minha modesta obra tem sido construída na atividade cotidiana da vida prática.
Mas foram os acadêmicos Jomar Moraes e Lino Moreira que me aplacaram as dúvidas ao contra-argumentar e a me convencer. Diziam-me eles: A Academia é de Letras. E “Letras” é conceito que abrange significados mais amplos do que apenas literatura. Cada linguagem possui suas letras próprias nas diversas formas de expressão. Daí este sodalício facultar e desejar a entrada de autores de outras letras como as que nos legou o genial artista plástico Antônio Almeida. Pois assim como na natureza, também no meio cultural, é a riqueza da diversidade que nos fortalece.
A propósito, Graça Aranha, o patrono de minha cadeira, já nos idos de 1912, defendia para a Academia Brasileira de Letras, da qual foi um dos fundadores, que sua composição deveria ser ampla. Em suas palavras: “Deveria ter uma esfera mais larga do que a literatura exclusivamente literária”.
De fato, minhas obras são aquelas que pertencem a um livro escrito em pedra e cal, pois, como afirmava Araújo Porto Alegre, artista plástico, poeta romântico e um dos patronos de cadeira da Academia Brasileira de Letras: “Cada pedra colocada na construção de uma cidade é como uma letra no alfabeto da civilização”. Dito que sempre admirei e até mesmo adotei como epígrafe de meu segundo livro, para lembrar que as obras materializadas pelo ser humano na construção das cidades, são continentes perfeitos para um incomensurável conjunto de conceitos e informações sobre sua própria trajetória.
No contexto específico das cidades, a que ele se refere como uma das maiores realizações do homem sobre a terra, as ruas, os logradouros, as edificações e os monumentos são verdadeiros arquivos de conhecimentos, como enciclopédias concretas, de tal forma que, mesmo no caso absurdo em que todos os livros pudessem desaparecer, elas traduziriam para a posteridade grande parte dos conceitos criados até então. Como exemplo, a vida nova que ganharam os poemas homéricos após as escavações arqueológicas de Tróia.
Assim é que, aquele que souber efetuar a leitura de um espaço urbano como a cidade de São Luís, que guarda séculos de conhecimentos acumulados em suas edificações do centro antigo, terá ao seu alcance uma fonte inesgotável de ensinamentos, de civilização e de história.
E se minhas letras foram de pedra e cal, assim também é neste caso a essência da imortalidade que não está em nós, mas nos é transmitida pela cidade de São Luís, que já tendo celebrado seus 400 anos, irá sobreviver a todos nós através dos séculos e porventura dos milênios.
 Veja-se esta magnífica edificação onde nos encontramos, localizada no coração do centro histórico, área reconhecida pela UNESCO na lista do Patrimônio Mundial. Foi erguida em 1873 no curto espaço de um ano. Com suas paredes de um metro de espessura e seu estilo neoclássico, é reconhecida pelos especialistas como um exemplar de elevado mérito arquitetônico e valor ambiental. Primeiramente abrigou várias escolas, depois a biblioteca pública estadual e finalmente, a sede desta veneranda instituição, que por feliz coincidência foi fundada em 1908 exatamente neste salão.
Este auditório resplandecente de luzes e cheio de vida, onde há mais de um século se exercitam atividades voltadas para a cultura, onde se cultivam as tradições e se celebram rituais, na forma de seminários, palestras e cerimônias, é o exemplo vivo da pedra e cal como continente de informações e conhecimentos, bastante representativo da sociedade que habita esta cidade histórica.
Assim fui compreendendo haver sido o meu empenho e modesta contribuição no sentido de preservar o núcleo urbano original desta cidade que me abriu as portas para esta casa e para me tornar simbolicamente imortal. E quanto à imortalidade? Fantasias da vaidade? Óbvio que não nos tornamos imortais em corpo, mas sim através das obras que se realizam através de nós. Nós que somos utilizados para realizá-las em nossa breve passagem por este mundo.
Mas, ainda tive que enfrentar outra dificuldade que confessei àqueles que me convidaram. É que eu não saberia pedir votos a meu próprio favor. Havendo observado desde cedo as minhas fragilidades e limitações, bem como as surpresas que a roda da vida nos proporciona, logo me convenci de que nunca deveria julgar-me melhor do que ninguém, porque não o somos de fato em nossa condição humana. Agora,  creio eu, o caminho para atingirmos simbolicamente a aludida imortalidade, passa pelo reconhecimento tácito de que igualados somos em nossa finitude.
Mas diante de tantas hesitações, e como uma resposta a elas, no inicio de 2012,  fui novamente informado, por um grupo de acadêmicos liderados pelo presidente Benedito Buzar, ser irreversível a minha candidatura. Afinal me diziam que segundo uma sondagem feita, já podia eu contar com votos suficientes para a eleição. Logo eu que, aos 63 anos de vida, ao receber este honroso chamado, jamais havia experimentado a vivencia de ser candidato a qualquer cargo ou função.
Ora, para alguém que se dispôs a viver longe de sua terra natal, o fato de ser bem aceito é um conforto para a alma. Sinto-me assim após 36 anos de vida nesta cidade, plenamente integrado com esta que é minha terra de adoção. Embora muito bem recebido desde os primeiros momentos. (Aqui estão Zelinda Lima, Jomar Moraes, Antônio Carlos Lima,  Lino Moreira e Alcindo Alves entre tantos que me acolheram de braços abertos), este é um tipo de carência afetiva nunca suprida e que possui aquele que é "de fora” mesmo sendo do mesmo país. No meu caso duplamente, pois além de originário de fora do Maranhão, ainda sou natural de Juiz "de Fora".
Fui eleito para a Cadeira nº 23, fundada por Clodoaldo Cardoso, cujo patrono é Graça Aranha e teve até o momento, como sucessores, Nunes Pereira e Joaquim Filgueiras. Clodoaldo Cardoso, eleito providencialmente quando a Academia encontrava-se em situação preocupante, logo foi feito presidente, arranjou sede provisória para a Instituição e lhe deu a seguir esta sede conseguida com seu prestígio por doação do governo do Governador Sebastião Archer da Silva.
Já Nunes Pereira, tornou-se nacionalmente conhecido e admirado por seus trabalhos pioneiros sobre o índio brasileiro e a Casa da Minas de São Luís. Ou seja, três longevos luminares da nossa cultura aqui tomaram acento. Esta é, portanto a breve linha sucessória que nos conduz, desde Graça Aranha seu patrono, até o presente momento na minha pessoa.
A apologia dos antecessores e suas obras, celebrada no momento da posse é um dos rituais mais sagrados desta instituição. É que, ao relembrarmos periodicamente seus feitos assim contribuímos para que sejam inesquecíveis e simbolicamente imortais, como farei a partir de agora e um dia meus sucessores o farão por mim. 
 Iniciarei referindo-me ao meu antecessor imediato, José Joaquim Ramos Filgueiras, jornalista, orador fluente, professor, poeta, escritor, magistrado. Segundo Dona Zelinda Lima que o conheceu de perto e privou de sua amizade, cada passo de sua brilhante carreira fora conquistado com persistência nos estudos e dedicação incondicional ao trabalho.
Nasceu o Dr. Filgueiras nesta cidade de São Luís, a 20 de abril de 1928. Seus pais, Isac Joaquim Filgueiras e Marieta Perdigão Ramos Filgueiras. Casado com Dona Magnólia Branco da Costa Fontoura Filgueiras, tornou-se Bacharel pela Faculdade de Direito de São Luís em dezembro de 1950.
Foi promotor público entre os anos de 1952 e 1955, das Comarcas de Pastos Bons, Vitória do Mearim, Viana e Itapecuru-Mirim.  Nestas sendas conheceu o Maranhão da frente pastoril, nas rotas de ocupação e conquista dos sertões, seguindo os caminhos do gado e das missões jesuíticas que aqui deixaram o rastro de sua missão evangelizadora.
Um dia confessou ao acadêmico José Chagas, que o recebeu nesta Casa, haver adquirido desde menino, um grande fascínio pela leitura. Na infância morou em Teresina onde continuou estudos com professores particulares, desenvolvendo em seu precoce aprendizado o gosto pela leitura, e a vocação para escrever e falar fluentemente.
Aos dez anos foi orador de sua turma por ser o que melhor se expressava verbalmente. Ainda em Teresina integrou o Grêmio Literário Da Costa e Silva e divulgava entre os piauienses, o grande bardo maranhense Gonçalves Dias, declamando de cor todo o I-Juca Pirama e o Canto do Piaga.
“Sempre me perdi nas páginas dos livros” confessava ele. Das leituras juvenis dos contos dos Irmãos Grimm e do Almanaque do Reco-Reco, das aventuras do Tarzan, que povoaram as infâncias de muitos de nós, foi um salto para que, em plena adolescência passasse aos clássicos da literatura portuguesa, francesa e russa, impregnando-se de Eça de Queiroz, Emile Zola, Tosltoi e Dostoieviski.    
Anos depois já como Juiz em Grajaú, ele teria oportunidade de ler de uma só empreitada, os 36 volumes da obra de Balzac traduzida no Brasil. Teve ainda uma forte influência de Emile Zola através da obra Germinal que fala do drama terrível da exploração dos trabalhadores das minas de carvão na França. Segundo depoimento dele ao poeta Chagas: Daí lhe veio a ternura que passou a sentir pelos “trabalhadores nas minas subterrâneas, mas também pelos que estão em cima da terra, sem terra e passando fome.”
Ao voltar de Teresina, terminado o ginásio, em plenos anos de 1940, fazia aqui o curso científico e foi convidado por um grupo de jovens maranhenses a participar da fundação de um centro literário. Vivia-se um período conturbado da história, com os abalos e as consequências da segunda guerra mundial. O impacto da primeira bomba atômica, revelando a apocalíptica força de destruição nas mãos do ser humano a um simples apertar de botões, causou profundos efeitos, em curto e longo prazo, nos corações e mentes.  
Para melhor entendermos o valor da obra de um homem são necessários a compreensão e conhecimento do contexto da sociedade e  do tempo histórico em que viveu. Wassili Kandinski, advogado, poeta e sobretudo, artista plástico russo, expoente do movimento abstracionista do qual se tornara um dos grandes teóricos, tendo sido também um dos principais professores da Bauhauss, dizia que toda arte é filha de seu tempo.
E no tempo em que José Joaquim Filgueiras viveu os momentos de sua formação, grandes verdades e certezas eternas haviam sido demolidas e se tornaram pó, em segundos, como as cidades de Hiroshima e Nagasaki. No Brasil vivia-se o fim da era Vargas, o fim da ditadura getulista. Organizava-se a assembleia constituinte. Tudo contribuindo para que antigas convicções filosóficas e políticas caíssem por terra deixando um vazio.
A São Luís, onde o então jovem Filgueiras arriscava seus primeiros passos na área do Direito e como intelectual, encontrava-se igualmente mergulhada em agudo período de crise. O clímax de uma longa fase de depressão econômica que se abatera sobre toda a região do meio-norte brasileiro trouxe como consequência a falência do pensamento crítico e o esvaziamento cultural.
Filgueiras e sua geração viviam assim as terríveis desvantagens e o desafio de iniciar carreira e dar sentido a suas vidas em um dos momentos mais difíceis de nossa história. No plano cultural as atividades artísticas e literárias estavam igualmente imersas em marasmo, e o centro que fora a Atenas Brasileira dos meados do século dezenove tinha uma pulsação próxima da frequência zero, da estagnação, afetando inclusive o desempenho desta casa, presa que estava do imobilismo reinante.
Pois foi como reação a esse ambiente desfavorável que surgiu o Grêmio Cultural Gonçalves Dias, liderado por Nascimento Morais Filho, recriando-se um ambiente para a realização de debates conferências e palestras. Abrindo-se novo púlpito para o exercício da oratória e palco para acaloradas e proveitosas discussões, declamações e apresentação de peças teatrais.
Na mesma época outro grupo de jovens se reunia na famosa Movelaria Guanabara, na Rua do Sol. Este segundo grupo então era tido como mais avançado ainda. Criado com mais liberdade e franqueza para as novidades e transformações que começavam a surgir, ocupando vazios e preenchendo a carência de movimentos intelectuais. 
O fato é que, estes movimentos se constituíram em capítulo importante da história local de nossa literatura. Filgueiras se movimentava bem entre os dois grupos e deles participava indistintamente, tendo sido, como já vimos, um dos principais líderes e fundadores do primeiro.
Este protagonismo, certamente contribuiu decisivamente para a sua formação já em andamento na faculdade de Direito. Ao mesmo tempo escrevia seus ensaios e poemas, exercitando à surdina sua vocação literária, pois não lhes creditando valor, ele mesmo a escondia de todos.
          Tempos depois se tornou professor de Direito da Universidade Estadual do Maranhão e alto dignitário das Cortes Maçônicas do Maranhão e do País. Suas qualidades de liderança, competência e inteireza no trato das causas públicas o levaram a ocupar por duas vezes a presidência da Associação dos Magistrados do Estado.
Em 1965 foi promovido para a comarca de São Luís, quando assumiu a 7ª Vara Criminal da Capital. Elevado ao cargo de Desembargador atingiu o ápice de sua carreira ao ser eleito presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Após sua passagem pelo comando, foi reconhecido por seus pares como competente e profícuo administrador daquela casa e honrado chefe do Poder Judiciário do Maranhão.
Sob sua liderança, o Poder Judiciário experimentou sensíveis melhoras, e se modernizou. Realizaram-se obras de restauração de suas sedes espalhadas em todo o Estado. Houve sensível aumento da eficiência, atribuído às suas qualidades de liderança, baseadas no rigor da ética e do trabalho, que foram postas em prática com o vigor que caracterizava seu comportamento e também pelos mecanismos que criou, de premiação aos bons juízes, estimulando a meritocracia na carreira.
O desembargador Filgueiras passou à história na relação dos homens de bem por seu caráter sem jaça e por isto foi detentor das mais altas comendas do Maranhão e do País. Foi por sua produção especificamente no campo das letras jurídicas um gigante, mas nunca deixou de lançar ao ser humano um olhar poético no cotidiano de suas experiências profissionais.
Sem que ele próprio atribuísse relevância às suas letras poéticas, a Academia lhe reconheceu este mérito, que se manifesta com eloquência em seus livros publicados, Caminhantes e Pedra de toque. Sabemos que outros três livros ficaram inéditos. E todos são testemunhos de sua sensibilidade e valor literário.
Assim José Joaquim Ramos Filgueiras foi uma expressão dos homens que compartilham das letras jurídicas e literárias e bem representam uma tradição nesta casa, na mesma linha dos desembargadores que o precederam, Alfredo de Assis Castro, por sinal um dos fundadores da Academia e Barros e Vasconcelos, Henrique Costa Fernandes, Isac Ferreira, e estes que nos alegram e enriquecem com seu convívio fraternal: Milson Coutinho, Lourival Serejo, Alberto Tavares e nosso Juiz Federal Ney Bello Filho.  
Do manejo das leis e da convivência com os homens em seus momentos de maior fragilidade retirou o barro com que moldou as delicadas porcelanas do seu lirismo, com as quais plasmou estrofes vazadas em preocupações com a injustiça, que, como ele o sabia bem de perto e de dentro, muitas vezes se abate sobre os mais fracos e desprovidos.
Deixemos pois que se cumpra neste momento a finalidade do ritual acadêmico e que o Desembargador José Filgueiras, meu brilhante antecessor imediato, volte a falar entre nós como imortal que se faz agora na minha voz hesitante.
 De seu próprio discurso de posse nesta casa retirei as palavras com as quais encerro esta parte de minha fala, neste texto apenas tangencialmente apologético. Aqui, no pretexto de registrar o impacto do momento em que recebeu a proposta de se candidatar, acaba por nos lançar uma reflexão bastante atual, em texto crítico sobre as contradições e dificuldades do ofício de julgar o próximo com a busca da verdade e total isenção. Que fale o Filgueiras através de minha voz, mas por suas próprias palavras:
Na lida incessante com leis e códigos: nos dias sempre tormentosos de julgar semelhantes, às vezes iguais e pares: no manuseio de processos que, como diria Von Ihering, não passam de organismos destinados a multiplicar dificuldades na defesa dos direitos pleiteados; na dúvida cruciante sobre se somos nós juízes árbitros inúteis no combate inescrupuloso entre a competência e a ignorância; nas amargas reflexões sobre a lei ruim que é ótima quando a magistratura é boa e a lei ótima que é péssima quando a magistratura é má; no suspiro por aquele dolce far niente do ócio com dignidade, após 34 anos de autos empoeirados, de conflitos que toldam a alma, de esgotos por onde fluem dores e misérias incalculáveis, enodoando escritórios e gabinetes, esfumaçando audiências e às vezes, até tisnando decisões; escrevendo, vez por outra, versos despretensiosos, e sentenças, onde o que transborda da análise do factual e do legal, perece, quase sempre, nos limites da pedanteria, eis que subitamente o choque do desafio jamais esperado, sequer sonhado, para o ingresso no mais alto sodalício intelectual de minha terra.
Assim até hoje reverberam as palavras daquele a quem tenho, pela vossa vontade senhores acadêmicos a imensa responsabilidade de suceder. Parafraseando o Papa Francisco, direi: - Que Deus vos perdoe por isto meus confrades.
Senhoras e senhores,
Passo agora a me ocupar do Patrono da cadeira, José Pereira da Graça Aranha e o farei identificando certas ligações e sinais anteriores que colocaram seu valoroso nome em minha pequena trajetória.
Tal como a maior parte dos cidadãos brasileiros, na minha juventude, antes de sequer desconfiar que passaria a viver no Maranhão, eu o conheci primeiro como nome de uma das mais importantes avenidas do centro do Rio de Janeiro e daí costumava imaginar sua importância para a história do País, mas sem sequer saber que era maranhense.
Quando aqui cheguei, nos idos de 1977, ao iniciar minhas primeiras pesquisas sobre o patrimônio histórico, comecei a descobrir mais detalhes sobre sua existência generosa e profícua e seu papel proeminente na história da literatura nacional e no movimento modernista, como um dos líderes da Semana de 1922.
Mas agora instado pela circunstância de elaborar este discurso, fui buscar algumas informações mais detalhadas sobre sua biografia. Retiro do texto Um livro essencial de Jomar Moraes, a certeza de que foi ele  um dos maranhenses que ao longo dos séculos, mais elevou a imagem de sua terra no cenário nacional.
Não só por sua obra literária onde se destacam os romances Canaã e A viagem maravilhosa, duas coletâneas de ensaios em A estética da vida e Espírito moderno, e o drama Malazarte. Sua derradeira obra, o projeto de escrever autobiografia, não conseguiu concluir pois faleceu antes, mas o que iniciou foi suficiente para nos legar uma obra-prima, seu derradeiro livro denominado  O meu próprio romance.
Surpreendentemente precoce até para os dias de hoje, aos 13 anos embarcou num vapor de São Luís até Pernambuco, onde começou a cursar a Escola de Direito de Recife, tendo tido o privilégio de haver sido discípulo do sergipano Tobias Barreto, a grande revelação intelectual do país na segunda metade do século dezenove, cuja contribuição filosófica e científica foi de excepcional importância na vida de Graça Aranha. Este por sua vez lhe devotava profunda admiração, pois ambos, de espírito rebelde e contestador, questionavam as linhas gerais do pensamento jurídico dominante, pregando o entrosamento entre a filosofia e o direito, invocando os estudos de Darwin e de Haeckel. Tal admiração levou Graça Aranha a escolher Tobias Barreto como patrono da cadeira que fundou na Academia Brasileira de Letras.
 Esse ambiente de efervescência cultural que encontrou em Recife foi o estímulo para que se entregasse apaixonadamente aos estudos e de tal forma que concluiu sua faculdade com apenas 18 anos. Logo se destacou como diplomata, o sentido que deu inicialmente a seu título de advogado.
Cumprindo com destaque sua carreira na diplomacia brasileira, então sob a liderança do Barão do Rio Branco, residiu muitos anos fora do país, vivendo nas grandes capitais europeias como Paris, Roma e Londres, lado a lado com Joaquim Nabuco nas missões que tratavam da definição das fronteiras brasileiras com a Inglaterra, a partir da formação territorial da Guiana Inglesa.
E foi relendo O meu próprio romance que entendi algo, um pequeno detalhe que sempre me intrigou no urbanismo de São Luís. O verdadeiro sentido de uma escultura assim tão pagã, representante do imaginário e das lendas populares mais antigas, de uma linda mulher de longos cabelos que com seu torço nu e nadadeiras no lugar dos pés, adorna uma fonte no centro da praça situada bem diante da Igreja da Sé.
Sempre me intrigou a pouca relação simbólica entre esta escultura colocada tão próxima da Igreja matriz e a Igreja. Estranhamento em mim acentuado desde que tomei conhecimento de uma das lendas urbanas de São Luís, registrada por César Augusto Marques em seu Dicionário histórico-geográfico da Província do Maranhão, segundo a qual, o glorioso Teatro Arthur Azevedo, o mais antigo do país e de dimensões europeias, fora construído com suas portas principais voltadas para a estreiteza da Rua do Sol e não para a amplitude do Largo do Carmo, onde poderia ostentar todo esplendor de sua fachada neoclássica. Tal situação se deu por conta de que a Diocese não admitira que uma casa de atividades consideradas profanas ou pagãs, pudesse incidir no sacrilégio de se abrir para a mesma praça da Igreja e Convento do Carmo.
Como? Pensava eu, que vontades teriam conseguido a autorização da sociedade conservadora para colocar uma estátua de nu feminino em pose sedutora, diante e tão próxima da fachada e da porta principal do templo maior da Igreja?
Ora, em Meu próprio romance Graça Aranha confessa que ainda menino vivia um permanente estado de magia, com a sua febricitante e fértil imaginação, enlevada pelas fábulas populares transmitidas de forma dramatizada por sua velha ama, a cozinheira Militina e seu amo Sabino, mateiro e pescador, ambos a serviço da casa de seus pais.
Com os dois viajou no universo fantástico das lendas e mistérios. Em suas memórias ele os reconhece como dois de seus maiores mestres, lado a lado com o papel de grande e principal educador que atribui a seu próprio pai e o dos iluminados professores que teve ao longo de sua vida.
Veio dos dois serviçais, no entanto, o seu primeiro contato com as assustadoras histórias do Currupira, do Saci-pererê, da Mula-sem-cabeça. Todas impressionaram tanto o menino que o marcaram para o resto da vida na sua atividade de artista criador de textos. Mas em seu próprio intimo como revela em suas memórias, nenhuma lenda fora mais impactante do que a poesia da Mãe-d’água.
O sabido Sabino, lhe descrevia com tanto deslumbramento a maravilhosa mulher encantada de longos cabelos sedutores, garantindo inclusive que a vira em suas próprias pescarias, nos poços e nos rios, que fez com que ele, Graça, menino, criança ainda, por ela se apaixonasse, ao ponto de acreditar também tê-la visto no reflexo fugaz da superfície do poço do quintal de sua primeira infância. Ainda segundo o texto memorialista do seu magistral romance pessoal, este amor platônico e obstinado pela mãe-d’água o perseguiu por toda vida.
Assim pude eu encontrar o verdadeiro sentido daquela estátua, chantada para sempre na fonte que está na frente da Igreja da Sé. É que ela, não está propriamente na frente da Igreja da Sé. Dependendo da perspectiva de quem a observa, ela está mesmo é na frente do grande casarão onde viveu Graça Aranha.
Como foi colocada tempos depois que a família se afastou dali podemos imaginar que tenha sido uma homenagem intencional ou não. O fato é que a magia da mãe-d’água prevaleceu e ali está ela eternizada em frente da casa onde ele viveu o primeiro e fecundo período de descobertas e aprendizado de sua vida. Ali ela funde o amor do homem pelas memórias de sua infância e pela cidade que carregou consigo.
Ao relacionar o homem ao espaço urbano em que viveu, recorro a poesia de Ferreira Gular “um pássaro está numa árvore como a árvore está no pássaro que a deixa voando“. “o homem está na cidade como a cidade está no homem”. Com sua predestinada sensibilidade Graça Aranha impregnou-se da cidade de sua infância e quando daqui partiu levou consigo, aonde foi, a cidade de São Luís. E assim é que fui lendo e entendendo com que têmpera foi formado um intelectual de peso e reconhecimento internacional nascido em São Luís no último quartel do século dezenove.
Na medida em que ele descreve sua convivência com a casa paterna e o ambiente urbano privilegiado dos conjuntos arquitetônico de São Luís, e todo o cenário humano que o habitava, e que havia sido apenas meio século antes reconhecido como uma das quatro mais importantes metrópoles do império brasileiro, pelos sábios alemães Spix e Martius,  entendi quão precoce revelou-se, desde a mais tenra idade, vocacionado para as atividades da criação literária, ferramenta e forma de expressão de ideias criativas e ideais revolucionários e arrebatadores.
Seu pai, Temístocles da Silva Maciel Aranha, foi um grande intelectual e homem de posses e de letras.  Para alimentar seu gosto pela palavra escrita e garantir a divulgação de suas ideias e de seu partido político, criou O País um dos maiores jornais de São Luís, cujas oficinas de redação e tipografia foram instaladas em sua própria casa. O menino cresceu assim assistindo o modo de fazer palavras. Ao pé da letra cresceu ele, tendo às mãos a palavra concreta dos tipos de chumbo com os quais se compunham os textos impressos. 
Certo dia, ainda com apenas dez anos de idade na emergência de lançar edição extra do jornal O País, num domingo em que estavam ausentes os tipógrafos, ele foi capaz de montar sozinho os tipos e dirigir a impressão do boletim do jornal, para merecer inesquecíveis elogios de seu idolatrado pai. Graça Aranha manobrava literalmente com palavras desde a mais tenra idade.
Preferi abordar esta primeira etapa da vida de Graça Aranha por acreditar que foi neste período em que se definiu o homem que viria a ser e se desenhou o roteiro de vida que iria cumprir. Mais sobre ele poderíamos falar por toda esta noite, mas vou apenas lembrar que Graça Aranha foi contemporâneo e privou da amizade e de tertúlias com os grandes intelectuais que ficaram na história do País. Além de Tobias Barreto, Joaquim Nabuco e o próprio Barão do Rio Branco, teve o privilégio de conviver com Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de todos os tempos, com quem trocava cartas em debates calorosos. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, mas por seu espírito irrequieto e contestador manteve com ela uma relação de amor e ódio.
Ali encontrava o convívio estimulante com os intelectuais de seu tempo, mas frequentemente questionava os aspectos que considerava ultrapassados. Fez uma proposta de renovação. Ele queria uma reforma do espírito e do pensamento acadêmico. Neste ponto foi ingênuo. Aquela ingenuidade própria que se mistura com os arroubos dos idealistas. Como constatara o filósofo Giordano Brunno, antes de morrer queimado pela inquisição em 1600, por haver defendido ideias muito avançadas para o seu tempo. “Quanta ingenuidade a minha em pedir aos donos do poder a reforma do poder”. Graça Aranha não encontrou ressonância entre seus pares que não aprovaram o seu projeto, por isto renunciou à Academia Brasileira de Letras. Mas ali, por sua atividade e participação constantes nos movimentos acadêmicos já havia inscrito seu nome.
Foi neste momento que se envolveu profundamente com o movimento de jovens artistas reunidos em São Paulo e acabou prestando significativa contribuição para a realização da Semana de 22. Ao regressar de sua experiência europeia, seu nome era reconhecido em todo o país e sendo muito bem relacionado, circulava com desenvoltura nas altas esferas do poder republicano.
Por esta importância social e capacidade de liderança logo foi aceito entre os jovens artistas e intelectuais que em São Paulo organizavam aquele que seria um dos principais eventos da história da arte no Brasil. A Semana de 22, clímax da insatisfação com a cultura dominante submissa aos modelos importados, e por antagonismo a busca de uma arte verdadeiramente nacional, assinalando o surgimento do Modernismo Brasileiro. 
Aí Graça Aranha identificou no grupo de artistas e intelectuais a mesma inquietação que nutria em relação ao passadismo que imperava no cenário artístico e contra o qual ele se voltara no âmbito da Academia. Uniu-se então a Paulo Prado e a Di Cavalcanti, tornando-se um dos principais articuladores do movimento que preconizava a renovação da arte e a temática nativista.
Além de sua profícua e irrequieta vida intelectual, de sua produção literária e da experiência humana enriquecedora de sua carreira diplomática, Graça Aranha encontrou tempo para ser em diferentes momentos de sua vida, promotor, juiz e procurador. Bem perto daqui nascido, na rua da Estrela, sua primeira morada,  conheceu grande parte do nosso país, pois trabalhou em Campos, no Rio de Janeiro, São Paulo e no Espírito Santo, onde ambientou seu romance Canaã.  Foi promotor e juiz no interior do Maranhão, nas cidades de Guimarães, Vitória e Arari. Foi professor de direito e jamais transigiu de seus princípios e ideais.  
Mesmo tendo sido provocado com propostas tentadoras na política, não aceitou as sinecuras, preferindo a aposentadoria simples desde que sua liberdade e dignidade de pensar e se expressar não sofresse arranhões.
Ainda meditando sobre a delicada tessitura que nos conduz pela vida afora, encontro hoje uma sutil ligação que se estabelece entre mim e o patrono da cadeira. A primeira crônica publicada por minha mãe, Cordélia Andrès, fala da viúva de Graça Aranha. Elas duas conviveram, durante os anos 1940, num mesmo pensionato da Rua São Clemente no Rio de Janeiro, sendo minha mãe uma jovem estudante de ciências sociais na PUC.
Ali ela descreve os últimos anos de existência solitária de dona Iaiá. Já viúva, a companheira de Graça Aranha, que compartilhara intensamente de toda sua vida e que foi a grande mulher por trás do grande homem e que discretamente o apoiava nos momentos difíceis em suas andanças pelo exterior, era quem de fato fazia o trabalho árduo de passar a limpo seus manuscritos em permanente revisão para as editoras.
O texto da lavra de minha mãe, portanto serviu para mim como um derradeiro capítulo praticamente desconhecido do grande público, fechando as informações biográficas do meu patrono, completando a verdadeira saga de humanidades por ele protagonizada, percebida nos estudos que compulsei sobre sua obra, inclusive sua biografia denominada Um senhor modernista que é uma tese de doutorado de autoria da historiadora Maria Helena de Castro Azevedo.
Mas é do depoimento de Nazaré Prado nas apresentações de uma das edições de Meu próprio romance que retiro as palavras finais e definitivas sobre Graça Aranha. “Exemplo da grandeza de uma figura extraordinária, esplendor de uma personalidade fulgurante”.
Senhoras e Senhores
Vejo que minha trajetória pessoal cumpriu uma rota no sentido geograficamente oposto ao de Graça Aranha que saiu daqui do meio-norte brasileiro para o sul do país passando pelo Rio de Janeiro e daí para a Europa, onde realizou parte de sua obra através da qual se imortalizou.
Obviamente que, sem nenhuma pretensão de me comparar, no que tange à dimensão de seus feitos, eu vim de lá do sul, das alterosas serras das Minas Gerais em busca dos horizontes abertos do mar oceano, para me encontrar, adotar e ser adotado pelo Maranhão, sua gente amiga e acolhedora.
Acredito que nada acontece por acaso em nossas vidas e que há sempre um sutil liame construído com a delicada e muitas vezes incompreensível tessitura dos eventos que, dentro de um caos aparente, costumam desenhar uma lógica só compreendida muitos anos mais tarde, quando a perspectiva do tempo e a sorte nos bafejam com o privilégio da visão do todo e da compreensão dos fatos.
Quando fui fazer faculdade no Rio, costumava andar por uma das mais importantes artérias da metrópole carioca, a Av. Graça Aranha. E quando em 1977 aqui cheguei e me engajei na pesquisa sobre os Monumentos Históricos do Maranhão, fui encontrar a inscrição lapidar com os seguintes dizeres “Sobrado onde viveu Graça Aranha”. Sei agora que estes sinais balizavam desde então, a trajetória que vem se clareando aqui e agora.
Para mim este é também um emocionante momento de reflexão e me remete ao início de tudo: Assim é que sempre fico matutando sobre os caminhos da vida. Após muitas horas de caminhada solitária, fazendo um inventário de episódios e relacionando-os, sinto que consegui reconstituir os eventos que foram mais determinantes e delinear o principal percurso.
Quando era bem pequeno e nunca podia imaginar que viria viver tão longe de minha terra natal, tínhamos em casa uma “vitrola” e alguns discos de 78 rotações. Meu predileto era o de uma cantora chamada Vanja Orico. Eu ouvia e ouvia e gostava especialmente de uma determinada música. A única que decorei para sempre. Nunca esqueci.
O canoeiro do Itapecuru
Leva na sua canoa coco babaçu.
Cantando o coco muito bem cantado
Sendo assim balanceado é bonito ver.
Fiquei de perto só apreciando,
Canoeiro me chamando,
Não fui aprender.
OBS: (eu achava coerente esta parte porque nunca fui menino de entrar em conversa de canoeiro)
Canoeiro,...
Que leva na sua canoa
Um montão de coisa boa
Do sertão pra São Luís.
Bebe ( Perdi esta rima)
E come farinha d´água,
No seu peito não tem mágoa
Por isto rema feliz!!!!
E assim segue a musica. Sempre que a ouço, nos corais que se apresentam no Festival Maranhense de Coros, me transporto ao passado, numa época em que, sem que eu soubesse, Vanja Orico acendia uma longínqua centelha de um farol que eu iria seguir até bater nas praias do Maranhão.
Assim também cresci eu, ouvindo ou lendo histórias como as de Viriato Correia em seu livro de história do Brasil para crianças, e mais tarde, residindo no Rio, quando voltava da Faculdade de Engenharia da Ilha do Fundão, invariavelmente às seis da tarde, ouvindo pelo radio uma maravilhosa “Ave Maria”. Era uma pausa calmante no calor do trânsito turbulento e que se encerrava com a voz de Eliakin Araújo anunciando: “Ave Maria, de Dunshee de Abranches” e eu imaginava que aquele clássico fosse obra de um grande compositor europeu. 
Aqui chegando ao tomar contato com os primeiros livros de autores maranhenses, me deparei com O cativeiro, obra denunciadora dos horrores da escravidão de um dos mais atuantes abolicionistas cujo autor é.... Dunshee de Abranches! Seu descendente, o compositor daquela clássica Ave Maria fora também fundador de um dos mais tradicionais periódicos da grande imprensa brasileira, o Jornal do Brasil.
Assim fui descobrindo que o Rio Itapecuru, Graça Aranha, Viriato Correia e, Dunshee de Abranches eram de fato originários do Maranhão, e observo que, para além de seu significado universal, pelo que representam para a cultura, todos passaram a ter um significado especial para mim particularmente. Foram os primeiros sinais longínquos de luz a indicar um norte no oceano em que eu iniciava, sem saber, a minha navegação.
Na minha infância fui estudante no Colégio dos Jesuítas e tive como professor de história, Murílio de Avellar Hingel  que depois foi Ministro da Educação no governo feliz de Itamar Franco na presidência do País, onde se gestou o Plano Real. Ter um bom mestre, todos sabem, é meio caminho andado para se tomar gosto por uma disciplina. E eu então passei a gostar de história.
Mas nisto houve a imensa contribuição do exemplo dentro de casa. É que na minha casa paterna, lembramo-nos, os cinco filhos que aqui estamos, a biblioteca sempre foi o cômodo mais frequentado. Meu pai Alberto Andrès Junior, médico de corpo e alma foi também um obstinado pesquisador das origens de sua cidade mineira, que por sua vez se confundia com a da Santa Casa de Misericórdia da qual ele foi dedicado diretor por mais de 35 anos. 
Minha mãe, Cordélia de Carvalho Castro Andrès, cronista dos tempos em que os circos mambembes percorriam as ruazinhas das cidades do interior mineiro, por suas crônicas, publicadas na imprensa local, foi eleita titular da Cadeira nº 19 da Academia Juiz-Forana de Letras, cuja Patrona é a escritora mineira Cosette de Alencar. Ligada à literatura desde que fez o curso de ciências sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ali minha mãe teve o privilégio de ser aluna de Alceu de Amoroso Lima.
Meus pais me legaram por seu exemplo o gosto pela leitura e pelo estudo da história.
Meu batizado maranhense se fez com a participação na pesquisa sobre os monumentos históricos na qual me engajei voluntariamente. Mas foi a partir daí que comecei o encantamento pela riqueza da história do Maranhão e por sua gente. Saber de Bequimão como líder do primeiro movimento libertário, antes de Tiradentes e da Revolução Americana. Saber de Graça Aranha antes para mim apenas um nome de avenida importante no centro da capital carioca. Saber que durante um século e meio após a descoberta em 1500 o Brasil fora dividido em dois e que o Maranhão e o Grão Pará não faziam parte do Estado do Brasil.
Que Odorico Mendes era o avô de Maurice Druon, autor do clássico mundial O menino do dedo verde, e presidente eterno da Academia Francesa de Letras inspiradora do formato da Academia Brasileira e das demais, inclusive da nossa, Maranhense, e a quem tive, um pouco mais adiante, já como Secretário de Estado da Cultura, a honra de recepcionar quando de sua visita a São Luís em 1993, a convite do Presidente Sarney, no encontro com suas origens maranhenses, eternizadas no busto de seu avô na Praça Odorico Mendes.
Impressionava-me saber, quão cosmopolita fora a São Luís, percorrendo o Panteão Maranhense cujas efígies se encontram nas varandas do Museu Histórico e Artístico do Maranhão, e que no século dezenove os maranhenses nascidos em Alcântara se formavam na Sorbonne e voltavam para brilhar no resto do país.
E finalmente entender que o autor de Morte da memória nacional, o livro que me indignou por suas contundentes e corajosas denuncias e aguçou meus sentidos para a causa da preservação do nosso patrimônio, o jornalista e escritor Franklin de Oliveira, era maranhense.
Enfim tudo que hoje posso transmitir aos meus alunos em sala de aula é o resultado do aprendizado que aqui tive o privilégio de exercitar nas lides ininterruptas de minhas atividades profissionais ao longo destes intensos 36 anos.
Quando à frente da Secretaria da Cultura tive a sorte de conhecer os municípios do interior e sua diversidade cultural. Ampliei os contatos com a classe cultural e artística. Através das 25 casas, dentre museus, bibliotecas, teatros, centros de criatividade, escola de música. Fui travando enriquecedor intercâmbio com os representantes da rica cultura popular e com valorosos artistas do Maranhão.
Ao mesmo tempo nas missões que tenho tido como Conselheiro do Conselho Consultivo do IPHAN, a instituição mais tradicional do país para a defesa do nosso patrimônio, com quase um século de existência à qual tenho a subida honra de pertencer há 13 anos, como representante da sociedade civil, fui designado diversas vezes para elaborar pareceres de tombamentos de outros núcleos urbanos por este país a fora.
Oportunidade de enriquecer meus conhecimentos sobre outras regiões do Brasil com sua imensa diversidade cultural. Mas sobretudo de estabelecer parâmetros de valor e me tornar cada vez mais convicto da enorme expressividade e relevância do acervo cultural maranhense, não só o de São Luís mas incluindo-se uma rede de antigos núcleos que mantém estruturas urbanas do vasto período de ocupação do território, das quais devo citar apenas as principais começando por Alcântara e passando por Caxias, Viana e Carolina. 
No caso exemplar de São Luís, onde tive o privilégio e a sorte de atuar diretamente desde que aqui cheguei, foi gratificante participar de alguns resultados do indiscutível valor deste acervo, que obteve o reconhecimento da UNESCO, não só pelo seu valor intrínseco, mas também graças ao esforço que vem sendo realizado pela sua preservação.
Em dezembro de 1997, o plenário do Comitê do Patrimônio Mundial aprovou em Nápoles, o dossiê “São Luís Maranhão” e a recomendação do ICOMOS, oficializando assim a inclusão de São Luís na lista do Patrimônio Mundial.
          Os critérios adotados foram: Testemunho excepcional de tradição cultural; Exemplo destacado de conjunto arquitetônico e paisagem urbana que ilustra um momento significativo da história da Humanidade; e, Exemplo importante de um assentamento humano tradicional que é também representativo de uma cultura e de uma época.
Diz o parecer do ICOMOS que: “O Centro Histórico de São Luís do Maranhão é um exemplo excepcional de cidade colonial portuguesa adaptada às condições climáticas da América do Sul equatorial e que tem conservado dentro de notáveis proporções o tecido urbano harmoniosamente integrado ao ambiente que o cerca”.
Os detalhes desta trajetória de trabalho estão registrados no meu segundo livro que o IPHAN lançou em dezembro passado e que é a revisão crítica de todo o Programa, resumo de minha dissertação de mestrado.
 Esta experiência de três décadas nos legou uma massa de conhecimentos acumulados que tem contribuído nas negociações para as próximas e grandes etapas, que já estão em curso através do IPHAN, governo do Estado, Prefeitura e o Ministério das Cidades.  
Mas ao mesmo tempo, as velas coloridas das embarcações me atraíram o olhar desde que aqui cheguei e me levaram à descoberta daquilo que para um mineiro do interior, desprovido da paisagem e do cheiro do mar desde a infância, era outro fascínio. Embarcações do Maranhão. Beleza rústica, de aparência simples, mimetizadas no horizonte e no arvoredo manguezal, tesouro escondido.
 O próprio Padre Vieira, quando chegou a estas terras nos primórdios do século dezessete, julgou estar encontrando o paraíso descrito nos textos do Profeta Isaías e por seu turno escreveu:
“A terra de que fala (Isaías) é terra que tem nome de sinos e estas são, pontualmente, os maracatins dos Maranhões”.
Aqui encontrara indígenas navegando em canoas que portavam uma espécie de sino (maracás ou maracatins) pendurado na proa como recurso para espantar os maus espíritos das águas. Julgou então que estas eram as embarcações com nome de sinos a que o Profeta Isaías se referia em seus textos nas Escrituras Sagradas. E o Maranhão, o paraíso. Acho que acreditou nisto até o fim, pois embora tenha feito duras críticas, no final de sua vida desejou ser enterrado aqui.
Para falar sobre este assunto prefiro rememorar o capítulo que escrevi para o livro do fotógrafo Edgar Rocha. “Embarcações de Sentimentos”:
O Maranhão, universo encantado onde vivem as embarcações, tem mar até no próprio nome. Tem o mar em si e pode-se dizer que nasceu do mar e das embarcações. Desde os tempos imemoriais a presença de gente nestas terras se fez através da saga cotidiana do navegar e velejar pelas águas de seu litoral, rios e lagos.
Em poucos pontos do planeta, as águas se confundem tanto com as terras. Aqui é onde as duas se misturam no desenho recortado da linha de costa, extremamente sinuosa, formando labirintos e uma renda de caminhos e contornos inextricáveis, uma penetrando a outra, escondendo incontáveis ilhas, baías, lagos, reentrâncias furos e igarapés.
A foz de dezenas de rios navegáveis determina uma paisagem sem limites, onde a forte amplitude de marés faz as águas avançarem e recuarem no ritmo eterno do vai e vem dos oceanos. O que era mar em poucas horas não é mais e o que era terra vira mar nas regiões litorâneas e ribeirinhas.
A areia fina é um estado insólito da matéria que fica entre o sólido da terra e o vento, é vento feito matéria, é matéria que se volatiliza em vento e se movimenta em ondas. Cobre extensões, penetra nos olhos como a água, muda a paisagem em horas. Quem palmilha, tal como as aves marinhas, as extensões arenosas, pisa em solo virgem a cada maré recolhida porque o mar vem e arranja os grãozinhos da areia em novo lençol a cada madrugada.
A lama dos manguezais onde se esconde o caranguejo é mistura de água com terra preta, lodo, pântano onde brota a siriba e os mangues brancos e vermelhos. Lado a lado com os praturás e o junco. Logo vem a transição para as veredas, com os juçarais, buritizais e as capoeiras.
Nestas regiões isoladas de inconstante mutação há muita gente cuja sobrevivência se faz nas práticas da navegação. A pesca artesanal é o cotidiano das famílias, assim como o transporte de cargas e passageiros para a capital São Luís.
Nas vastidões sem fim dos manguezais, habitam os guarás, aves de rara beleza que tiram a cor vermelho-sangue, que tinge suas plumas, do pequeno marapanin, o caranguejo que lhe serve de alimento e que por sua vez a retira da essência do mangue vermelho, o mesmo tanino que por outros caminhos dá a coloração forte do tingimento dos panos vermelho-ferrugem das velas das canoas. 
O que se vê da matéria são as cores. As velas de barcos ao longe, tingidas de mangue são asas de guará. As canoas de pano, que sucederam aos maracatins do tempos de Vieira, hoje são várias, como as bianas, as costeiras, os botes, os boiões, os cascos e casquinhos, as curicacas e os igarités. Ganham nomes de gente, de mulher, de santo, de promessas, de propósitos, de votos, de vaticínios, de natureza.
Quando a noite cai, uma canoa passa sob a ponte do São Francisco com o rumor das águas e dos ventos. Pela última vez o grande pano do mastro principal se abaixa em reverência ao mundo real. Dali em diante embarcações e marinheiros se fundem em uma só entidade e se desfazem na penumbra da Baia de São Marcos.
Não falam mais com as palavras dos homens, são outros seres que mergulham na noite, numa viagem dentro da viagem. Navegação ancestral, de quatrocentos anos passados, não utilizam nenhum instrumento. Em comunhão com o infinito se orientam pelas estrelas. As croas de areia mudam de lugar a cada tempo e fazem armadilhas aos navegantes. Velejar por aqui é um contínuo descobrimento. Em poucos pontos do planeta as águas se confundem tanto com as terras.
Aqui é o Maranhão.
O fato é que o deslumbramento com a beleza das embarcações me motivou a iniciar pesquisas. E como solução para não deixar perder este conhecimento, criamos as estratégias de valorização da arte. O livro, o projeto Barco na Praça e a melhor de todas, a Escola. Apostar na educação e criar um espaço onde o velho mestre possa ter orgulho de sua profissão e o jovem volte a ter interesse em aprendê-la. Cheio de sabedoria, Mestre Pedro Alcântara, prodigioso construtor de canoas costeiras dizia: “O barco é feito assim todo torto pra ficar direito na água”. 
Assim é que ao idealizar o Estaleiro Escola, talvez por um impulso atávico, esteja eu repetindo o gesto de meu bisavô, Joseph “Louis” Andrès, que nos anos 1870 partiu da pequena cidade de Giromagny na região da Alsácia Francesa e veio para o Brasil para fundar uma escola que já na virada do século vinte havia se tornado o maior colégio na cidade de Juiz de Fora. Colégio onde estudou Pedro Nava, da família dos Nava, originária do Maranhão, mas que nascido em Juiz de Fora fez história na literatura nacional, hoje reconhecido por sua obra, como o maior memorialista do país. Meu bisavô bem como sua temida palmatória e o relógio de pêndulo estão minuciosamente descritos nas páginas do primeiro volume de sua vasta memória.
Sinto-me em paz e feliz ao celebrar com tantos amigos estes momentos de solene alegria, pois aqui e agora compreendo que tudo se fecha num ciclo coerente.
Senhoras e Senhores
Finalmente, dirijo mais uma vez meu olhar a este auditório e sou capaz de sentir aqui, na primeira fila, inseparáveis, Alberto Andrès Junior e Cordélia de Carvalho Castro Andrès, que aqui também vos falaram agradecidos, por meio de minha fala. Sem a segura orientação e estímulo amoroso que nos propiciaram ao longo de suas vidas eu não poderia sequer sonhar com este dia. Eu os vejo nesta solenidade com o mesmo sentimento de gratidão nas pessoas dos meus quatro irmãos, Luiz Alberto, Ana Cristina, Luiz Otávio, e Luiz Camilo. Assim como, Maria Helena mãe de meu filho querido Luiz Francisco e Maria Eugenia minha esposa e mãe de minha querida filha, Christiana.
Muito obrigado.

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