24 de novembro de 2002

Pedaços de eternidade

Jornal O Estado do Maranhão
Um buraco negro está viajando em direção ao sistema solar à espantosa velocidade de quatrocentos mil quilômetros por hora. Pelos padrões da astronomia, ele passará a pequena distância do Sol, de “apenas” mil anos-luz. Não será capaz de causar qualquer dano ao nosso planeta ou aos outros do nosso sistema, na hipótese de manter sua atual trajetória que, segundo os especialistas, pode ser imprevisível. Caso ele mude, entretanto, vindo diretamente em nossa direção, poderemos cair nele. Seria quase como entrar pelo cano ou descer pelo ralo, negro ou não.
Buracos negros não são buracos, no sentido de serem uma cavidade em uma superfície. Mas, dão a impressão de sê-lo porque, sendo estrelas extremamente compactas, têm uma descomunal força de gravidade. Sugam tudo que passa em sua proximidade, aprisionando, até mesmo, a luz. Esta, uma vez capturada nunca mais sai do interior deles. O resultado é tornarem-se completamente negros, ficando invisíveis aos instrumentos de observação astronômica. Sua presença somente pode ser percebida por seus efeitos gravitacionais sobre outros corpos celestes. Por exemplo, quando os astrônomos vêem um astro aparentemente girando em torno do nada concluem pela existência de um deles.
Pois bem, esse que se aproxima tão velozmente da Terra está a uma distância de seis mil anos-luz. Ele somente chegará nas “proximidades” do Sol e, portanto, da Terra, daqui a 230 milhões de anos. Para comparar, é interessante mencionar os cálculos sobre a idade do universo que o dão como tendo até quatorze bilhões de anos. Vê-se, dessa forma, como são relativas as coisas.
O que parece uma eternidade, visto da nossa perspectiva humana, não passa de uma pequena parte do tempo decorrido desde a explosão chamada Big Bang, marco do início do universo, ressalvada a outra hipótese, de o mundo ter sido criado em sete dias, sem explosão nenhuma, além da explosão da vontade do criador de tudo, conforme os relatos tradicionais das religiões. Mas, antes daqueles quatorze bilhões de anos, não existia o tempo? Haveria talvez uma espécie de tempo negativo, com respeito ao qual se poderia fazer uma contagem regressiva até o zero do começo de tudo?
A enganosa sensação de eternidade da caminhada do buraco negro é semelhante às ilusões inscritas nas lápides vistas freqüentemente nos cemitérios, como as que vi no Dia de Finados há poucas semanas. Falam de saudades e lembranças eternas de mortos queridos e recentes. Dos antigos, daqueles desaparecidos há tempo suficiente para uma ou duas as gerações terem passado, as lembranças vão pouco a pouco sumindo. Nós lembramos dos pais mortos, menos dos avós, menos ainda, ou quase nada, dos bisavós e, recuando mais, nem sequer o nome dos pais destes guardamos. Da mesma forma, visitamos os mortos de um mês, pouco os de um ano e quem sabe quantas vezes os de dez.
Há não muito tempo, aqui em São Luís, uma lista foi divulgada com os nomes de defuntos cujas famílias tinham débitos relativos à falta de pagamento de taxas do cemitério do Gavião. Entre os mencionados estavam alguns que em vida haviam sido importantes homens de negócios ou políticos poderosos. Mas, por terem morrido havia bastante tempo, que já começava a parecer uma eternidade, não tinham ninguém mais, entre seus descendentes, para zelar por sua memória. Morreram uma vez, fisicamente, morreram novamente quando foram esquecidos pela própria descendência e morreram a terceira vez quando, sem culpa nenhuma, tiveram seus nomes expostos daquela forma. Cansaram-se de morrer, certamente.
Pensar sobre isso tudo serve para nos mostrar não a transitoriedade da vida, mas, em um certo sentido, da morte. Primeiro, existe o sentimento de que será lembrada eternamente. A dor pela perda recente parece nunca passar. Depois, a própria morte vai morrendo nas lembranças dos que ficaram vivos, dando novamente a sensação, embora momentânea, de sermos eternos e não apenas pedaços de uma eternidade que gostaríamos de possuir.

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