14 de outubro de 2001

Um liberal

Jornal O Estado do Maranhão
É do cientista político Nicola Matteucci a afirmação de que as dificuldades de uma definição consensual do que seja liberalismo são de três ordens. A primeira está na história do liberalismo, de ligação estreita com a democracia. Isso torna difícil distinguir um da outra porque é exatamente o liberalismo o critério utilizado para distinguir a democracia de cunho liberal da não-liberal.
A segunda é que o liberalismo, nos diversos países, não apareceu simultaneamente. Na Inglaterra é um fenômeno do fim do século XVII. No resto da Europa, é do século XIX. Terceiro, as experiências liberais encontraram culturas e problemas políticos específicos que criaram diferentes perfis da doutrina em cada país. É por isso que ser liberal nos Estados Unidos é ser de esquerda. Aqui é ser de direita. No entanto, há algo constante nessas idéias.
O liberalismo lutou sempre por instituições representativas e por ampla autonomia econômica e cultural da sociedade civil. Na ética e na política, sustentou a defesa do indivíduo contra o poder opressor do Estado. Recentemente, não tem se preocupado apenas com as liberdades clássicas de reunião, imprensa, participação, mas também com o direito de ser livre da ignorância, medo, etc.
Essa é a essência da visão de um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX, Roberto Campos, falecido na terça-feira passada. Diplomata, ministro, senador, deputado e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, ele foi não apenas um economista, mas um homem de vasta erudição, um teórico brilhante, um polemista de incisiva ironia e um homem de ação.
Era natural de Cuiabá.Quando a família transferiu-se para Guaxupé, em Minas Gerais, foi estudar em um seminário católico. A seguir, estudou Teologia em Belo Horizonte, mas não chegou a ordenar-se. Depois, em Batatais, São Paulo, ensinou Latim e Astronomia. Foi diplomata de carreira desde 1939. Tornou-se adido comercial da Embaixada do Brasil em Washington em 1942, quando estudou economia na Universidade George Washington. Em 1949, concluiu seu doutorado na Universidade Columbia.
Em 1951, passou a integrar a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos para o Desenvolvimento Econômico, durante o Governo Vargas. Ali, sob influência dele, foram elaborados os estudos que resultaram na criação do BNDE, órgão com importante papel nas políticas de apoio à substituição de importações e na modernização da indústria brasileira. Durante o Governo Kubitschek, influenciou na formulação da política econômica do governo, elaborando o Plano de Estabilização Monetária e esboçando o Plano de Metas. Foi para a presidência do BNDE em 1958. Durante o Governo Goulart foi embaixador nos Estados Unidos.
Ministro do Planejamento, de 1964 a 1967, do primeiro presidente militar, Castelo Branco, promoveu, junto com Gouveia de Bulhões, a reorganização das finanças públicas, com as reformas tributária, bancária e administrativa. Criou, ou ajudou a criar, nesse período, o Banco Central, o BNH e outras empresas estatais, do que, em parte, arrependeu-se depois.
Foi um defensor da privatização dos “dinossauros”, como ele dizia, estatais, do fim dos monopólios, da abertura da economia e da disciplina monetária. Combateu com brilhantismo a irracionalidade que, durante muito tempo, comandou a implantação de políticas econômicas no país. Essa mentalidade chegou ao apogeu em 1988, quando foi inserido na nova Constituição um dispositivo que limitava os juros da economia a 12% ao ano, com a renúncia ao uso de qualquer política monetária. Restos esquerdistas da ancestral moral judaico-cristã.
Ele viveu o suficiente para ver a maioria de suas idéias adotadas no Brasil. Se o país mudou e hoje está melhor do que em 1994, como acredito estar, é por causa, em boa parte, de sua incansável luta pela adoção de políticas econômicas racionais e pela rejeição de arrogantes irracionalismos ideológicos de pretensos monopolistas da sensibilidade social. No fim, a vitória foi dele, um liberal.

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