23 de novembro de 2003

Guajajaras e internet

Jornal O Estado do Maranhão
Há invenções que admiramos permanentemente, como se tivessem sido criadas há pouco tempo e, portanto, ainda causassem surpresa. O avião é uma delas. Sempre me fascinou a capacidade de andar no meio das nuvens de uma máquina criada pelo homem, mas que, reparando bem, não voa, apenas imita um vôo, nem tem asas como as dos pássaros, porque, diferentemente das do avião, aquelas, as asas de verdade, se movimentam, fazem ondulantes e graciosos movimentos e são movidas a sangue e ar, não a petróleo, o pai de todas as guerras no mundo de hoje, a julgar pela última no Iraque.
O fascínio desse invento reside precisamente nesse prodígio de, com seu peso de muitas toneladas metálicas e brilhantes, conseguir, em seu deslocamento aéreo, dar a impressão de leveza e beleza, presentes em todo equilíbrio instável, como o do equilibrista de corda-bamba sobre um precipício. Está na iminência de sofrer uma queda, mas a evita no momento seguinte. No caso do avião, é a aerodinâmica e a força dos motores empurrando-o para cima e a de gravidade puxando-o para baixo. O resultado é uma legítima clonagem de vôo.
Mas, qual a razão de eu estar falando de invenções e de clonagem? Não sou capaz de inventar coisa alguma nem entendo de clonar gente ou ovelha e, muito menos, sei pilotar aviões, apesar de gostar de viajar neles. É que não consegui ainda achar banal a invenção da internet, a rede mundial de computadores, ou web, que significa teia em inglês, e não rede, a despeito de usá-la diariamente. Por uma curiosa associação de idéias, sua invenção e a do objeto voador caminham juntas na minha mente como exemplo do ditado: “A necessidade é a mãe da engenhosidade”. Ao pensar em uma, inevitavelmente lembro da outra e acabo falando das duas. E eu vinha pensando ultimamente exatamente sobre o papel social das invenções e a importância da internet como meio de comunicação hoje em dia.
Como ela surgiu, afinal? Por causa da competição entre os Estados Unidos e a União Soviética, os americanos criaram nos anos 60 a Agência de Projetos de Investigação Avançada. No final da década, o órgão implantou uma rede experimental de computadores chamada Arpanet, com a utilização de uma tecnologia do packet switching, ou troca de pacotes, para o transporte de informação. Se, durante um ataque militar, parte da teia fosse destruída, ela seria ainda capaz de transmitir informações por meio dos computadores restantes devido às características de sua arquitetura e à tecnologia em uso.
Inicialmente, apenas instituições militares e de pesquisa científica faziam parte do sistema. Ele foi crescendo e passou a incluir empresas e suas próprias redes. Depois, expandiu-se até o usuário doméstico, principalmente após a adoção da interface gráfica que permitiu a visualização das chamadas páginas web. Formou-se, assim, uma grande rede de redes, como a de hoje.
Dizia-se, quando o uso do telefone para ligações a longa distância difundiu-se, que as cartas tradicionais desapareceriam. Com a internet, elas voltariam através do correio eletrônico. Nada disso aconteceu. Houve, sim, neste último caso, a proliferação de meros bilhetes, escritos, em geral, em uma língua difícil de identificar. O que eu quero dizer é que a tecnologia toma, muitas vezes, rumos inesperados, levada pelo uso social dela, e se revela frágil em alguns aspectos.
Agora mesmo, em Santa Inês, no Maranhão, os índios guajajaras, cansados de esperar o cumprimento das promessas do homem branco, de pagamento de uma indenização, resolveram, escaldados por 500 anos de história de compromissos não cumpridos e bem informados pela própria internet, cortar os cabos de fibra ótica que servem à teia, instalados em suas terra. A maravilha tecnológica deixou de funcionar em vários Estados.
Não haverá aí o simbolismo de que a tecnologia, não importando seu grau de sofisticação, deverá estar sempre subordinada às relações sociais, devendo levar em consideração o interesse de todos, sobretudo dos grupos mais vulneráveis?

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