21 de setembro de 2003

Boletins

Jornal O Estado do Maranhão 
Um dia desses meti-me a desencavar papéis antigos de dentro de pastas antigas. A cor amarelada delas, junto com o acúmulo de poeira que nelas se viam e sentiam, revelaram a marca da passagem de pelo menos uns quarenta anos. Aí, dei com boletins da época em que eu cursava os antigos ginásio e científico no Colégio Maranhense, dos Irmãos Maristas. Pus-me, então, a pensar nessas intromissões repentinas do passado no nosso dia-a-dia como a fonte da incômoda sensação de que o tempo passou apressadamente por nós e não fomos capazes de realizar muitos de nossos projetos de vida.
Não sei se atualmente ainda se usam esses livrinhos nas escolas. Era neles que o irmão titular, como era chamado o responsável por cada turma, registrava não só as notas dos alunos, isto é, os julgamentos objetivos feitos com a utilização de rigorosas provas mensais, como também as avaliações subjetivas, expressas por uma outra nota, dada à chamada “aplicação”.
Eu sempre achei curioso esse sistema porque, para mim, a dura dedicação aos estudos, deveria resultar, com raras exceções, na obtenção de bons resultados nos exames. Parecia-me, desse modo, haver uma redundância nesse procedimento, embora a “aplicação”, no final, não contasse para a aprovação ou reprovação de ninguém.
Mas, uma outra avaliação dos boletins, aquela sobre o comportamento dos alunos, estava na origem de grande nervosismo em todos ao final de todo mês, maior, até, do que a ansiedade criada pelas provas. Um comportamento minimamente fora dos padrões era motivo de chamamento dos pais para uma conversa com o irmão titular, ou até com o próprio diretor geral. Ter os pais convocados era quase a condenação definitiva do pobre coitado do estudante ante os professores e os colegas. Os olhares de reprovação pelos corredores eram inevitáveis depois.
Mas o que eu queria dizer era isto. Apesar dos sobressaltos e das constantes preocupações com resultados, ou até por causa disso, os anos passados naquele colégio foram de inestimável valia para mim. A ênfase na honestidade e no trabalho duro e persistente, a noção de disciplina, a importância conferida ao estudo, a recompensa do mérito, todas esses princípios eram, e ainda são, cultivados diuturnamente pelos maristas que os transmitiam a seus alunos. Serviram-me muito durante minha vida após minha saída do colégio. Se não me ficou a fé, se me restaram dúvidas, não foi culpa deles nem de ninguém. Nem foi falta de terço e missa diários e obrigatórios, talvez em excesso, ambos.
Pelo menos do ponto de vista dos estudantes, o grande defeito do colégio, comum a vários outros daquele tempo, era ser exclusivamente masculino. Hoje, isso mudou para melhor. Quem quisesse paquerar (não tinha ainda o vantajoso ficar) deveria voltar as vistas em direção às meninas do Colégio Santa Teresa, dirigido pelas Irmãs Dorotéias, do Colégio Rosa Castro ou do Liceu Maranhense. Outros tempos, outros costumes.
Os professores tinham sólida formação intelectual e eram de uma dedicação extraordinária à sua missão educativa. Mas, um me parece um bom símbolo de tudo que a Ordem Marista sempre realizou pela educação dos jovens: o irmão Pio Jerônimo Barroso. Eu devo a ele tudo, que não sei se é muito, que aprendi de análise sintática. Ele dedicava a maior parte do tempo das suas aulas de português ao exame, junto com os alunos, de textos dos autores clássicos e modernos da língua, usando um sistema de incentivos e punições, pelo qual aplicava “pontos bons” àqueles capazes de responder corretamente a perguntas sobre a função sintática de palavras tiradas de um daqueles textos, mostrados de improviso, e “pontos maus” no caso oposto, todos somados ou subtraídos da nota de cada um no fim do mês.
A educação perdeu muito de sua qualidade, sufocada pela comercialização sem limites e pela ênfase na quantidade. Recuperá-la deve ser a meta de qualquer governo preocupado com o bem-estar material e espiritual do nosso povo. Sem ela estaremos condenados ao fracasso permanente.

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